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METODOLOGIAS ATIVAS: UMA PROPOSTA DIFERENCIADA PARA ENSINAR PROCESSO CIVIL

  1. Introdução

O objetivo deste trabalho não é, de forma alguma, apresentar dados estatísticos ou mesmo comprovar cientificamente que esta ou aquela metodologia de ensino seja mais ou menos eficaz para o ensino do Processo Civil. Trata-se, na verdade, de um relato da experiência vivenciada no ensino das disciplinas de Direito Processual Civil I, II e III, no curso de Direito da FATEB – Faculdade de Telêmaco Borba, que se destina a oferecer à comunidade acadêmica um exemplo que vem dando bons resultados.

 

  1. Relato de experiência

Antes de tudo, convém que se faça uma breve apresentação do perfil da instituição e do curso, a fim de que se possa compreender o contexto em que se deu a experiência a ser relatada.

A FATEB é uma instituição relativamente jovem, fundada no ano 2000, que teve suas atividades iniciadas em 2001 e, em 2005, deu início à oferta do seu curso de Direito. É uma instituição privada, de pequeno porte, a primeira do ramo privado a oferecer ensino superior na cidade de Telêmaco Borba, situada nos Campos Gerais do Estado do Paraná (Centro-Norte). A cidade, que possui cerca de 76 mil habitantes[1], é situada na região mais pobre do estado que, consequentemente, é a que apresenta os índices mais preocupantes de desenvolvimento humano, incluída aí a questão educacional.

O curso é composto, em sua grande maioria, por acadêmicos advindos da rede pública de ensino, que residem na cidade sede da instituição e em outras cidades menores no seu entorno.

Antes da utilização das metodologias ativas, as aulas de Processo Civil na instituição eram baseadas na metodologia da aula expositiva, intercalada com eventuais pesquisas sobre temas teóricos e alguns poucos trabalhos de ordem prática.

O autor deste trabalho lecionou as disciplinas de Processo Civil na referida instituição desde o ano de 2008 até o ano de 2017 e, por isso, teve a oportunidade de conhecer desde a primeira turma do curso de Direito. A inquietação com o resultado das aulas expositivas no aprendizado era recorrente, desde a primeira turma. O perfil dos acadêmicos indicava que boa parte deles não tinha a oportunidade de frequentar estágios desde os primeiros anos da faculdade e, por consequência, muitos tinham grandes dificuldades de assimilar aquilo que era tratado nas disciplinas de Processo, uma matéria sabidamente técnica e com linguagem bastante específica.

Boa parte dos acadêmicos trabalha em áreas bastante diversas da jurídica, até mesmo porque a cidade em que está instalada a faculdade tem perfil operário e sua economia depende quase que totalmente da indústria de celulose e papel. Não é incomum, portanto, que alunos do curso de Direito passassem seus dias no chão de uma fábrica de celulose e papel e à noite frequentassem as aulas.

Essa realidade cria um distanciamento dos acadêmicos com a disciplina de Direito Processual Civil, já que, apesar de esta ter um viés prático acentuado, não se conseguia estabelecer essa ligação com a realidade vivida pelos acadêmicos fora da sala de aula. Em razão disso, não é raro que determinados alunos consigam notas altas em Direito Civil, por exemplo, e não logrem o mesmo êxito na área processual.

E isso ficou claro para o autor deste trabalho, quando teve a oportunidade de lecionar uma disciplina de Direito Civil. Como se tratava da abordagem de temas que faziam parte do dia-a-dia dos acadêmicos (personalidade jurídica, bens, responsabilidade civil etc.), estes conseguiam assimilar o conteúdo de forma muito mais eficaz.

Em razão disso e considerando que seria impossível alterar a realidade do trabalho dos acadêmicos, já que grande parte dependia disso para subsistência própria e de sua família, é que se começou a pensar em uma forma diferenciada para a apresentação dos conteúdos do Direito Processual.

Outro ponto fraco das aulas expositivas era a concorrência gerada pela utilização de celulares, tablets e notebooks com acesso à internet durante as aulas. Este é um dos grandes dilemas dos professores atualmente: competir com aplicativos de celular para trocas de mensagem, com redes sociais da internet que tiram a atenção dos acadêmicos e com a quantidade imensa de informações que está disponível na internet a apenas um clique. Esse cenário indicava, ao menos para o caso que se narra, a derrota da aula expositiva como método eficaz de aprendizagem.

O grande objetivo foi o de aproximar os acadêmicos do conteúdo do Direito Processual. Para isso, alterou-se o foco. Enquanto antes pensava-se em transmitir a maior quantidade possível de conteúdo, depois, a preocupação tornou-se descobrir um meio de desenvolver nos acadêmicos determinadas habilidades e competências que possibilitassem o entendimento das razões de ser de cada instituto do Direito Processual Civil, de maneira que fosse possível a eles enxergarem o porquê das discussões teóricas havidas sobre os temas e como aplicar o conhecimento na prática jurídica.

Com o objetivo definido, o próximo passo foi a busca do instrumental para possibilitar que o objetivo fosse atingido e aí passou-se a pesquisar a respeito das metodologias ativas de ensino.

A temática das metodologias ativas é algo que vem sendo debatido nos meios educacionais há muitos anos, mas, ao que parece, o ensino jurídico ainda continua refratário dessas mudanças. É comum que se ouçam acadêmicos reclamando de determinadas aulas em que professores saem da posição de protagonistas e passem a coadjuvar no processo de ensino-aprendizagem. Vale dizer: quando professores fornecem textos a seus alunos para que, em sala de aula, seja realizada uma leitura, seguida de discussão ou mesmo para responder um determinado questionário, é comum que se diga, por parte dos acadêmicos, que se está desperdiçando tempo ou que o professor não sabe “dar aula”.

A ação de “dar aula” no ensino jurídico parece significar apenas “dar aula expositiva”, o que coloca o professor no centro do processo de ensino-aprendizagem, o protagonista e, por vezes, o solista, ficando o aluno em uma posição mais confortável de receptor de informações.

E as metodologias ativas, por seu turno, desejam retirar esse protagonismo do professor e fazer com que o aluno entenda que é sua a responsabilidade pelo seu aprendizado, sendo o professor um guia nesse processo.

Obviamente, isso gera atritos. A posição de receptor de informações é bastante cômoda para o acadêmico de Direito. E isso fica cada vez mais evidenciado com o que se observa na prática da docência. É comum que haja alunos que queiram apenas estar no curso sem grandes esforços, seja porque não souberam escolher ou não puderam escolher o curso que queriam fazer.

Então, não bastava que fossem aplicadas metodologias ativas pura e simplesmente. Era necessário que o ambiente da turma propiciasse essa mudança, porque as metodologias exigem novas posturas do professor e dos acadêmicos e exigem daquele um preparo muito maior, porque até mesmo as dúvidas sobre a matéria passam a ser mais qualificadas.

Na busca pelas metodologias ativas de ensino, optou-se pela utilização de uma mescla de três delas: o aprendizado por pares, a sala de aula invertida e a aprendizagem baseada em problemas.

O aprendizado por pares é uma metodologia desenvolvida pelo professor de Física da Universidade de Harvard, Eric Mazur, que intercala suas conferências com a distribuição de questões conceituais entre os alunos divididos em grupos de três ou quatro pessoas, que discutem sobre as questões em um tempo pré-determinado, a fim de encontrarem uma resposta para o problema e depois submetem isso à classe para discussão sobre o assunto[2].

De acordo com o autor do método, ele pode ser utilizado por qualquer professor em qualquer área que envolva pensamento crítico. Apesar de, na sua realidade, Mazur utilizar ferramentas tecnológicas avançadas para a aplicação do seu método, ele afirma que não se trata de um método tecnológico e, sim, pedagógico, o que, vale dizer, permite que seja aplicado mesmo sem a tecnologia[3].

E aí despontava a primeira centelha de esperança. A instituição, por ser de pequeno porte, não dispunha de ferramentas tecnológicas que permitissem, por exemplo, que o professor entremeasse suas aulas com questões a serem disponibilizadas aos acadêmicos por meio de um aplicativo de celular ou de computador. Era necessário adaptar o sentido do método para a realidade local.

Em razão disso, a essência da metodologia é que foi extraída, a fim de ser mesclada com as demais, de modo que os acadêmicos fossem colocados para trabalhar em grupos e assim pudessem encontrar as respostas adequadas para os problemas apresentados pelo professor no decorrer do desenvolvimento das atividades da disciplina.

Ao lado do aprendizado por pares ou peer instruction, foi utilizada a metodologia da sala de aula invertida. E foi a partir da sala de aula invertida que se deu o que educadores têm definido de blended learning, que é um “programa de educação formal que mescla momentos em que o aluno estuda os conteúdos e instruções usando recursos on-line, e outros em que o ensino ocorre em uma sala de aula, podendo interagir com outros alunos e com o professor”[4].

A metodologia da sala de aula invertida ou flipped classroom pode ser sintetizada da seguinte forma:

(…) é uma modalidade de e-learning na qual o conteúdo e as instruções são estudados on-line antes de o aluno frequentar a sala de aula, que agora passa a ser o local para trabalhar os conteúdos já estudados, realizando atividades práticas como resolução de problemas e projetos, discussão em grupo, laboratórios etc. A inversão ocorre uma vez que no ensino tradicional a sala de aula serve para o professor transmitir informação para o aluno que, após a aula, deve estudar o material que foi transmitido e realizar alguma atividade de avaliação para mostrar que esse material foi assimilado.[5]

No caso que se relata, inverteu-se a sala de aula da seguinte forma: o professor passou a gravar videoaulas e disponibilizá-las no YouTube[6], de modo que ficassem acessíveis a quem desejasse assisti-las e no momento em que achasse oportuno (o canal conta atualmente com mais de 60 vídeos, mais de 68 mil inscritos e quase 6 milhões de visualizações).

Além disso, a instituição de ensino disponibiliza um ambiente virtual de aprendizagem aos seus alunos (plataforma Moodle), criando campos para cada disciplina, de maneira que os professores possam disponibilizar materiais, realizar atividades virtuais e comunicar-se com seus alunos. Os links desses vídeos são disponibilizados de forma ordenada pelo professor a cada determinado período de tempo, fixando-se uma data limite, anterior ao encontro presencial, para que os acadêmicos pudessem ter contato com o material e fossem devidamente preparados para a realização de atividades práticas na sala de aula.

É sabido que há instituições que modificam a arquitetura de suas salas de aula para a aplicação da metodologia da sala de aula invertida. É abolida a organização da sala de aula com as carteiras ordenadas em filas e são disponibilizadas mesas redondas com vários lugares, distribuídas de forma estratégica, com acesso a computadores conectados à internet etc.

No caso que se relata, não havia essa estrutura, então, para que os acadêmicos sentissem a mudança física, que favorecesse a mudança de atitude, os encontros presenciais passaram a ocorrer em uma ampla sala de convenções que estava disponível na instituição. Nesta sala eram disponibilizadas mesas e cadeiras móveis e os acadêmicos organizavam-se da forma como lhes convinha.

Por fim, a terceira metodologia ativa utilizada foi a da aprendizagem baseada em problemas (problem based learning). Esta é uma metodologia bastante comum em cursos de Medicina, entretanto, pode ser facilmente aplicada em cursos como Direito, ainda mais em disciplinas como Processo Civil.

A aprendizagem baseada em problemas possibilita que o processo de ensino-aprendizagem ocorra de forma contextualizada, “já que através de situações problemas que devem ser relevantes, reais ou passíveis de serem reais, o aluno constrói o conhecimento crítico necessário à resolução da situação proposta, integrando conhecimentos prévios às informações novas adquiridas durante a prática”[7].

E prosseguem os autores alertando que:

Ao reconhecer o problema como ponto de partida para a aprendizagem, a ABP sofre influência da metacognição e de fatores sociais. Contudo, o objetivo da ABP não é solucionar o problema e sim propor uma forma colaborativa, integrada e estruturada de se conceber o conhecimento, “aprender a aprender”. O problema é apenas a mola propulsora que instigará a produção do saber, levando o aluno a discutir, organizar ideias, perguntar, classificar dados em ordem de importância, formular e expor conhecimentos de forma conjunta, além é claro de avaliar-se no percurso da atividade, sendo capaz de até mesmo mudar o foco de ação a fim de obter um resultado; instaurando assim um processo de auto-gestão e gestão entre discentes.[8]

Estabelecidas as bases conceituais de cada uma das metodologias, passa-se à narrativa do que se deu no caso concreto.

Já no primeiro dia de aula, a fim de que sentissem a mudança que estava por vir, os acadêmicos foram levados para a sala de convenções onde seriam realizados os encontros presenciais, que conta com um palco. A sala estava vazia, com as cadeiras e mesas empilhadas. Os acadêmicos foram convidados a entrar e escolher um lugar para sentar. Como era de se esperar, cada um pegou uma cadeira e sentou-se formando uma plateia em frente ao palco.

Depois que todos chegaram, o professor solicitou que eles deixassem seus materiais na cadeira e que fossem até o palco. O pedido foi seguido de grande estranhamento. Todos subiram no palco e demonstravam claramente um incômodo e uma certa curiosidade com o ocorrido. O professor solicitou que eles ocupassem o palco como bem lhes aprouvesse. Quem  desejasse sentar, poderia sentar no chão, quem desejasse levar uma cadeira, que o fizesse, quem quisesse ficar em pé, poderia ficar.

Quando todos estavam acomodados, passou-se à apresentação dessa nova proposta metodológica para a disciplina. Foram apresentados os conceitos das metodologias que seriam utilizadas, explicadas as finalidades que se desejava atingir e os meios que seriam utilizados ao longo do semestre e tudo isso com os acadêmicos ocupando o palco, de modo que entendessem que, a partir dali, seriam eles os protagonistas de seus próprios aprendizados e que estariam aliados aos seus colegas e receberiam o auxílio do professor e de monitores já formados em Direito.

Quando já estavam cientes disso tudo, o professor perguntou a todos se haveria interesse em que as aulas ocorressem daquela forma. Como houve aceitação, prosseguiu-se o trabalho.

O professor solicitou que a turma fosse dividida em grupos. Foi estabelecido um número de grupos na turma e uma quantidade máxima de participantes em cada um deles, de maneira que os grupos tivessem numericamente uniformidade.

Considerou-se importante que a divisão não fosse feita pelo próprio professor, mas que os próprios acadêmicos escolhessem com quem desejavam trabalhar, pois o objetivo era de que esses grupos permanecessem unidos ao longo de todo o semestre. Então era importante que houvesse confiança entre os seus membros e, além disso, frisou-se desde o primeiro momento que a liberdade de escolha dos membros de cada grupo implicava em uma responsabilidade: cada grupo deveria gerenciar seus conflitos internos e que não haveria interferência do professor a respeito disso.

Ainda, foram os acadêmicos alertados sobre as competências que se desejava desenvolver a partir dos trabalhos em grupo: identificar problemas processuais práticos e resolvê-los adequadamente; conviver com as diferenças de forma pacífica; resolver conjuntamente os problemas que eventualmente pudessem surgir; adquirir a noção de responsabilidade pelo aprendizado próprio e de todos os componentes do grupo; adquirir a noção de solidariedade entre os membros do grupo; gerenciar os conflitos humanos que pudessem surgir internamente e com outros grupos.

Além disso, foram cientificados a respeito das habilidades que deveriam desenvolver ao longo da disciplina: interpretar textos legais, doutrinários e jurisprudenciais; redigir textos técnicos adequadamente com argumentação correta formal e materialmente; produzir as principais peças processuais corretamente; compreender os institutos processuais e sua aplicabilidade prática; atuar corretamente na qualidade de cada um dos atores processuais; construir estratégias processuais, planejar a prática dos atos e executá-los corretamente; analisar criticamente o próprio desempenho e o desempenho dos demais colegas.

Feito o alerta, deu-se a divisão dos grupos. Depois disso, a cada um dos grupos foi distribuído um determinado caso hipotético que resultaria em uma ação cível. A responsabilidade de cada grupo seria elaborar uma estratégia processual e construir uma petição inicial e todos os documentos necessários para dar início a um processo judicial.

Nesse primeiro momento, cada grupo, então, atuaria como advogado do autor e deveria distribuir as tarefas internas da forma como achasse conveniente, devendo, entretanto, assegurar-se de que todos participassem e aprendessem, já que a avaliação seria feita a partir da observação de todas as atividades realizadas nos encontros presenciais, além daquilo que fosse entregue pelo grupo e, eventualmente, em provas orais para aqueles acadêmicos que apresentassem rendimento inferior ao esperado pelo professor. Desse modo, a avaliação era pelas atividades em grupo e individualmente. Além disso, haveria uma avaliação pelo grupo e uma autoavaliação de cada acadêmico.

Todos esses dados eram depois reunidos pelo professor e considerados no momento da atribuição da nota bimestral.

Passada a fase da construção da petição inicial, as ações foram propostas e cada um dos grupos passou a desempenhar a função de escrivão. Por exemplo: o grupo 1 era advogado do autor no caso A e passou a ser escrivão no caso B.

Depois disso, realizados os atos do escrivão, os processos simulados seguiram seu trâmite e os autos foram remetidos aos respectivos juízes. Então, o grupo 1, na continuação do exemplo acima, que era advogado do autor no caso A e escrivão no caso B, passou a ser juiz do caso C e, depois, recebeu a incumbência de ser advogado do réu no caso D.

Com isso, cada um dos grupos teve a oportunidade de acompanhar, em posições diferentes, quatro casos diversos ao longo do semestre.

É importante destacar que estes casos, obviamente, não apresentavam complexidade alta, já que se tratava de acadêmicos do quarto período do curso, ou seja, que estavam no segundo ano de faculdade e haviam completado apenas dois semestres no estudo do Direito Civil. Havia uma grande limitação na construção dos problemas de direito material.

E ainda que se tenha tomado o cuidado de elaborar casos hipotéticos em que a problemática de direito material não fosse tão complexa, em todos os casos os acadêmicos foram forçados, de alguma maneira, a buscar conhecimento sobre alguns pontos que ainda não haviam sido estudados. De todo modo, não há, em regra, um prejuízo nisso. Ao contrário, é própria das metodologias ativas essa característica de instigar o acadêmico a buscar um conhecimento de que ele ainda não dispõe.

Nessa empreitada, os acadêmicos contaram com o apoio do professor, dos seus monitores, além dos demais professores do curso, que colaboraram com os trabalhos, até mesmo porque o projeto pedagógico do curso prevê a interdisciplinaridade como uma das suas políticas de ensino.

Foram, então, feitas as simulações de vários processos judiciais, desde a petição inicial até a sentença. E cada um dos grupos participou de quatro processos diferentes, ocupando as mais diversas funções.

A experiência objeto deste relato iniciou-se no ano de 2015, na disciplina de Direito Processual Civil II, cuja ementa exigia que fossem tratados assuntos relativos ao processo de conhecimento, da petição inicial até a sentença.

A turma que inaugurou essa nova sistemática, doravante chamada T1, era composta por cerca de 70 acadêmicos. A dificuldade de trabalhar com uma turma tão numerosa, nesse caso, foi relativizada pelo fato de que a turma encampou a ideia e apresentou dedicação acima da média na realização das atividades requeridas.

Nesse aspecto, convém destacar a peculiaridade de a T1 já ter sido, nos dois primeiros períodos do curso, conscientizada sobre a importância da pesquisa. Na época, a instituição de ensino investiu fortemente na ideia da pesquisa no curso de Direito e o colegiado optou por concentrar esforços nos alunos ingressantes. Essa turma, então, passou a contar com um professor-pesquisador, que lecionava a disciplina de Teoria Geral do Estado e coordenava um grupo de pesquisa. E foi a partir disso que se desenvolveu na classe uma característica essencial para o sucesso das metodologias ativas em Processo Civil: a tendência para a pesquisa, que, de certa maneira, gerou um grau maior de emancipação dos acadêmicos, já habituados que estavam às atividades de autoestudo.

Ao longo de Processo Civil II (4º período) a turma apresentou um rendimento fora do comum se comparada com as turmas anteriores que haviam tido o mesmo conteúdo a partir de aulas expositivas. O índice de reprovação, embora tenha reduzido depois da utilização das metodologias ativas, não teve redução considerável a ponto de indicar um diferencial digno de nota. Continuou girando em torno de 10%.

O que, de fato, mostrou-se uma evolução foi o rendimento efetivo dos acadêmicos e isso ficou evidente a partir das impressões que se teve das avaliações que foram realizadas. Seja por meio dos trabalhos em sala de aula, seja a partir dos autos dos processos simulados, da participação dos acadêmicos nas audiências simuladas, seja através das provas orais que foram aplicadas, o que se percebeu foi que os acadêmicos desenvolveram uma maior capacidade argumentativa (escrita e falada); que se criou um espírito de grupo e de pertencimento na turma; que os acadêmicos passaram a escrever melhor; que a grande maioria compreendeu as razões de cada um dos institutos processuais que foram estudados (esses institutos passaram a fazer sentido prático para eles); que cresceu a compreensão a respeito do papel de cada um dos atores processuais e das dificuldades sentidas em cada profissão; que muitos passaram a compreender efetivamente a aplicabilidade da carga teórica da disciplina do semestre anterior, que havia abordado a teoria geral do Processo Civil; que houve um aumento considerável do senso crítico dos acadêmicos a respeito dos atos processuais.

Com a T1 o trabalho continuou na disciplina de Processo Civil III, cuja carga horária era inferior (36h) e que se destinava ao estudo dos recursos. O trabalho prosseguiu com a simulação de recursos de apelação e suas respectivas contrarrazões dentro daqueles processos que haviam sido simulados no semestre anterior.

A ideia original era de que fossem realizadas sessões de julgamento desses recursos, em que acadêmicos dos períodos mais avançados fossem recrutados para atuarem como desembargadores e que depois fossem simulados recursos especiais e extraordinários para que outros acadêmicos, os formandos, fossem chamados para simularem sessões nos tribunais superiores. Entretanto, esse planejamento não foi executado por uma série de fatores que impediram isso de ocorrer, todos alheios à vontade do professor, da instituição e da turma.

A grande dificuldade encontrada no período em que foi ofertada a disciplina de Processo Civil III para a T1 foi o tempo escasso. Enquanto que Processo Civil II contava com 72 horas, Processo Civil III dispunha de apenas metade dessa carga horária, o que inviabilizou que o planejamento fosse executado.

Em Processo Civil II, as atividades eram realizadas da seguinte forma: a coordenação de curso havia instituído o horário de maneira que a disciplina contasse com as suas quatro aulas semanais geminadas, em uma única noite. Isso possibilitava que em uma semana não houvesse encontro presencial, de modo que os acadêmicos tivessem tempo para assistir às videoaulas postadas no YouTube e, com isso, tivessem contato com o conteúdo básico para a realização das atividades práticas. A fim de assegurar que todos realizassem essa atividade, o professor estabelecia um prazo para que cada acadêmico postasse no ambiente virtual de aprendizagem um relatório da aula assistida. Na semana seguinte, os acadêmicos compareciam na instituição para a realização de atividades presenciais. E neste momento era realizado feedback, tiradas dúvidas sobre o conteúdo e o professor organizava atividades para auxiliar os acadêmicos a entenderem os problemas dos processos simulados e os encaminhava para que encontrassem as resoluções adequadas.

A mesma sistemática, entretanto, não foi possível de ser implantada na disciplina de Processo Civil III, pois ela contava com duas aulas semanais e não quatro, de maneira que seria impossível, considerada a conjuntura da instituição, que em uma semana fossem realizadas atividades virtuais e na outra atividades presenciais, pois isso prejudicaria a presença dos acadêmicos em outras disciplinas.

Desse modo, os acadêmicos tinham encontros presenciais toda semana e, em razão de a maioria trabalhar durante todo o dia, tiveram dificuldades em encontrar tempo livre para assistir às videoaulas antes dos encontros presenciais.

Esse fato prejudicou sobremaneira a realização das atividades práticas em sala de aula e os encontros presenciais acabavam sendo aulas expositivas de reforço às videoaulas que já haviam sido disponibilizadas no ambiente virtual de aprendizagem.

Essas razões impediram que o projeto de metodologias ativas tivesse sucesso total na sua continuação na T1.

Em 2016, optou-se por iniciar o projeto das metodologias ativas já na disciplina de Processo Civil I (3º período), cuja ementa prevê o conteúdo relativo à teoria geral do Processo Civil. A turma (doravante T2) era composta por cerca de 30 alunos, bem menor do que a T1, como se vê.

As metodologias foram apresentadas de forma similar à do ano anterior, com o diferencial de que o enfoque foi direcionado não para o estudo e solução de problemas práticos, mas para a leitura e compreensão de textos jurídicos processuais que tratassem dos temas que deveriam ser estudados naquele período.

Seguiu-se o mesmo protocolo: em uma semana, os acadêmicos não compareciam na aula e assistiam às videoaulas postadas pelo professor e na outra compareciam para encontros presenciais, em que eram realizadas atividades das mais variadas ordens, para aprofundamento do conhecimento a respeito daquele tema, inclusive utilizando-se dos autos dos processos simulados produzidos pela T1 para compreensão da aplicabilidade prática dos institutos processuais.

Muito embora a T2 tenha se mostrado receptiva em um primeiro momento, assim que surgiram as primeiras dificuldades decorrentes da necessidade de leitura e interpretação de textos mais complexos, assim como as dificuldades de se criar uma rotina de estudos sem a supervisão do professor, em casa, com autodisciplina, iniciaram-se algumas reclamações. Basicamente, uma parte da turma queixava-se da ausência de aulas presenciais e dizia que não conseguia compreender o conteúdo daquela forma.

Para solucionar o problema e apresentar as mudanças de uma forma menos brusca, passou-se a aumentar o número de encontros presenciais, de maneira que os acadêmicos fossem estimulados a criar a disciplina necessária para as atividades de autoestudo.

Já na disciplina de Processo Civil II, com a T2, seguiu-se o mesmo protocolo da T1 quando estudava a mesma disciplina: processos simulados desde a petição inicial até a sentença.

Nesse caso da T2, apesar de ser uma turma menor, o que possibilitava um acompanhamento mais aproximado por parte do professor, o rendimento não foi tão bom quanto na T1 e isso se deve, acredita-se, ao perfil da própria turma, que, diferentemente da T1, não teve a mesma influência em seus primeiros períodos para a pesquisa acadêmica. Isso gerou uma maior dificuldade nas atividades de autoestudo.

Outra diferença que se reputa fundamental para o rendimento menor foi o próprio relacionamento da turma com o professor e entre os próprios alunos. Enquanto que na T1 o relacionamento deu-se de forma mais aproximada, com um número reduzido de conflitos, na T2 houve um número maior de conflitos entre o professor e a turma e entre os próprios alunos, seja entre os grupos ou dentro dos próprios grupos. Esses conflitos, certamente, prejudicaram a convivência e causaram um efeito negativo no rendimento.

De todo modo, o rendimento da T2 é, sem dúvidas, superior ao rendimento de turmas anteriores, do mesmo curso, que tiveram contato com a disciplina a partir de aulas expositivas.

O quesito avaliação da aprendizagem foi um grande complicador ao longo do processo. Como se tratava de algo novo na instituição, embora o seu Conselho Superior tivesse dado liberdade ao professor para avaliar de forma diversa daquela prevista no Regimento Geral, as amarras da avaliação convencional ainda limitavam o trabalho.

Como se viu acima, a avaliação era realizada não apenas por provas ou trabalhos formais, ela se deu de forma pulverizada ao longo de todo o semestre.

Os acadêmicos eram avaliados pelos seus trabalhos em grupo por aquilo que apresentavam nos processos simulados e pela avaliação que o grupo fazia de cada um de seus componentes.

Além disso, outra parcela da avaliação era feita de forma individual, a partir da observação que o professor fazia nas atividades em sala de aula, nos eventuais trabalhos individuais que eram solicitados e na autoavaliação.

Ao final do bimestre, ao analisar todas essas variáveis, se o professor entendesse que o acadêmico não havia conseguido um bom rendimento, dava a ele a oportunidade de realizar uma prova oral, em que seria questionado sobre algum dos pontos estudados naquele período. E aí residia o grande problema: a dificuldade de os acadêmicos entenderem que a prova oral não era uma punição e, sim, uma chance para a recuperação da nota.

Essa dificuldade é sentida porque ainda impera o sentimento de que prova é uma forma de punição de que os professores dispõem. E, infelizmente, essa é uma máxima que vem sendo há muito tempo corroborada pelo comportamento de muitos professores.

Apesar e por causa disso, as provas orais eram realizadas de maneira a demonstrar para o acadêmico que se estava ali para ajudá-lo a consolidar seu conhecimento. Então, dependendo do comportamento de cada acadêmico, era feita uma abordagem diferente, de modo que ele se sentisse à vontade e conseguisse mostrar aquilo que sabia. Em muitos casos, a primeira pergunta feita era sobre se ele sabia a razão de estar ali. E em grande parte desses casos a sinceridade aflorava e o acadêmico acabava “confessando” que não havia demonstrado rendimento adequado neste ou naquele assunto e era então encorajado a falar o que sabia sobre aquilo, com perguntas que o estimulavam a encontrar a resposta.

Não houve condescendência nessas avaliações. Buscou-se sempre avaliar, de fato, o nível de conhecimento obtido por cada acadêmico, considerando-se inclusive as suas características individuais, conhecidas pelo professor em razão de se tratar de uma instituição de ensino pequena, o que possibilita um convívio mais aproximado.

No entanto, pelos acadêmicos essa subjetividade na avaliação nem sempre foi bem vista e algumas vezes encarada como arbitrariedade e esse é um dos pontos fundamentais em que se deve buscar uma adequação, de maneira que aos acadêmicos fiquem claros os critérios de avaliação, sem gerar desconforto ou insegurança que possa prejudicar o processo de aprendizagem.

[1] BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=412710&search=parana|telemaco-borba>. Acesso em: 22/01/2017.

[2] MAZUR, Eric. Instruction: A User’s Manual. EUA: Pearson, 2014.

[3] MAZUR, Eric. O homem que inverteu a sala de aula antes da tecnologia. Entrevista dada a Tatiana Klix, em 19/03/2014. Disponível em: http://porvir.org/homem-inverteu-sala-de-aula-antes-da-tecnologia/. Acessado em 23/01/2017.

[4] VALENTE, José Armando. Blended learning e as mudanças no ensino superior: a proposta da sala de aula invertida. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, Edição Especial n. 4/2014, p. 79-97. Editora UFPR, p. 84.

[5] VALENTE, José Armando. Blended learning e as mudanças no ensino superior: a proposta da sala de aula invertida. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, Edição Especial n. 4/2014, p. 79-97. Editora UFPR, p. 85-86.

[6] https://www.youtube.com/user/RFHMAN

[7] PEREIRA, Eduardo Ramos de Assis e outros. Aprendizagem baseada em problemas. O jurídico. Disponível em: http://sistemas.unipacbomdespacho.com.br/ojs/index.php/ojuridico/article/view/12. Acessado em: 23/01/2017.

[8] PEREIRA, Eduardo Ramos de Assis e outros. Aprendizagem baseada em problemas. O jurídico. Disponível em: http://sistemas.unipacbomdespacho.com.br/ojs/index.php/ojuridico/article/view/12. Acessado em: 23/01/2017.

A PROVA DE OFÍCIO, A LEALDADE PROCESSUAL E O CONTRADITÓRIO: ANÁLISE DO RESP 1.693.334 – RJ

No findar do ano judiciário de 2021, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu interessante decisão no Recurso Especial n. 1.693.334 – RJ. Tratava-se de ação civil pública que foi julgada improcedente por falta de provas. Uma das discussões travadas no julgamento do recurso disse respeito à atividade instrutória do juiz e os seus limites.

Naquele caso concreto, o Ministério Público, autor da ação, defendeu a tese de que o juiz possui amplos poderes instrutórios para a busca da verdade real e caberia a ele requisitar, de ofício, ao CADE a documentação necessária para o julgamento da causa.

A posição do STJ, entretanto, foi em outro sentido, a saber:

(…) 5- De fato, existência de regras disciplinando o ônus da prova não autoriza a conclusão de que o juiz está adstrito a uma posição de inércia no campo probatório, permanecendo estanque diante da iniciativa probatória das partes.  Pelo contrário, o magistrado, consoante as regras previstas no art.  130 do CPC/73, compartilha com elas o dever de evitar os efeitos do non liquet.

6- Contudo, essa presunção não é absoluta, devendo, pois, ater-se às hipóteses nas quais, diante de um mínimo juízo de convicção quanto aos fatos narrados, a insuficiência de provas impede que o encontre de uma resposta jurídica para o julgamento.

7-  O  juízo  de  conveniência  quanto  às  diligências  necessárias,  além  de  ser  exclusivo do  julgador,  deve  considerar  os  seguintes  elementos:  i)  mínima  certeza  da  prática delituosa,  ii)  existência,  ainda  que  mínimos,  de  elementos  probatórios  que  indicam  a prática  de  infração  a ordem  econômica  por  formação  de  cartéis,  iii)  ativa  atuação  do autor  da  ACP,  notadamente  quanto  a  delimitação  dos  fatos  narrados  e  com  intensa participação  na  fase  instrutória  do  feito.

8- Deixar de requerer diligências possíveis ao tempo da ação e atribuir responsabilidade instrutória ao magistrado, desrespeita a lealdade processual um dos deveres anexos criados pela boa-fé objetiva e direcionada a todos os partícipes do processo.  Sua incidência no campo instrutório, indica ser dever das partes apontar todos os elementos probatórios, de forma a permitir que a parte ex adversa exerça o contraditório de forma eficaz. (…)

A partir dessa decisão que, embora tenha considerado dispositivos do CPC/1973, observa-se discussão importante e ainda atual, pois o CPC/2015, em seu artigo 370, continua prevendo a possibilidade de determinação de produção probatória de ofício pelo juiz.

A doutrina do processo civil brasileiro, fincada nas noções publicistas de instrumentalidade do processo, em sua acachapante maioria defende com bastante a produção probatória de ofício pelo juiz.

Por todos, vale citar Cândido Dinamarco e Barbosa Moreira. O primeiro defende que “as forças que impelem o juiz ao ativismo probatório são (a) o dever de promover a igualdade entre os litigantes, (b) a dignidade da jurisdição, que quer o juiz como agente da justiça e não mero refém das condutas e omissões das partes e (c) a indisponibilidade dos direitos e relações jurídico-substanciais em certos casos.”[1]

Barbosa Moreira, por sua vez, defendia que em matéria de produção probatória “o papel do juiz e o das partes são aqui complementares; absurdo concebê-los como reciprocamente excludentes. E não custa reconhecer que, de fato, ao menos no comum dos casos, por óbvias razões, dos próprios litigantes é que se obterá, com toda a probabilidade, aporte mais substancioso.”[2]

Por outro lado, a doutrina garantista do processo civil faz severa crítica a essa posição predominante na dogmática, na jurisprudência e na própria legislação infraconstitucional. Eduardo José da Fonseca Costa defende que:

(…) quando o juiz ordena prova à míngua de requerimento da parte, só pode haver cinco resultados possíveis: 1) prova de fato constitutivo do direito do autor; 2) prova de fato impeditivo do direito do autor; 3) prova de fato extintivo do direito do autor; 4) prova de fato modificativo do direito do autor; 5) prova de nada. Ora, se o juiz tem dúvida somente sobre a existência do fato constitutivo do direito do autor, o único beneficiário real da prova de ofício é o autor, porquanto os resultados (2), (3), (4) e (5) revelam dilação probatória inútil: posto que favoreçam o réu, há tempos a demanda já poderia ter sido rejeitada por ausência de provas. Esse mesmo raciocínio se aplica à hipótese em que o juiz tem dúvida geral (ou seja, dúvida tanto sobre o fato constitutivo quanto sobre o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor). Por sua vez, se o magistrado tem dúvida sobre a existência do fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, o único beneficiário real da prova de ofício é o réu, uma vez que os resultados (1) e (5) revelam dilação probatória inútil: embora favoreçam o autor, há tempos a demanda já poderia ter sido julgada procedente. Em suma: a prova ex officio iudicis sempre favorece a parte que tinha o ônus de provar, mas não provou.[3]

Também aqui no espaço do Contraditor alguns textos já foram publicados com críticas ao posicionamento majoritário. Por todos, vale citar a crítica sempre bem construída de Diego Crevelin de Sousa, para quem “os poderes instrutórios são sempre incompatíveis com as garantias da imparcialidade (e, antes, da impartialidade) – seja qual for o procedimento, a natureza do direito discutido ou a condição dos sujeitos envolvidos –, donde inconstitucionais.”[4]

Na continuação de sua abordagem sobre o tema da prova de ofício, Diego Crevelin de Sousa aborda julgados do STJ e enfrenta a questão que se coloca sobre a natureza jurídica: há um dever do juiz ou é sua faculdade determinar a produção de prova de ofício? A conclusão, a partir dos julgados analisados, foi de que a jurisprudência do tribunal consolidou-se no sentido de que há uma faculdade do juiz; havendo dever apenas nos casos envolvendo direitos indisponíveis[5].

Todas essas discussões são altamente pertinentes, entretanto, outro ponto há que ser destacado e ele tem relação com a decisão proferida pela Segunda Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.693.334 – RJ, a que se fez referência no início deste texto.

Como se viu lá, o posicionamento da Turma foi no sentido de que o juiz tem poderes instrutórios, mas que eles são residuais. O destaque que se quer dar aqui diz respeito à associação entre o tema da produção de prova de ofício com o da lealdade processual.

O relator expôs assim o seu posicionamento a respeito dessa associação:

A lealdade processual é um dos deveres anexos criados pela boa-fé objetiva. Direcionada a todos os partícipes do processo, indica ser dever das partes – no campo probatório – narrar os fatos objeto da demanda, com indicação de todos os elementos probatórios, de forma a permitir que a parte ex adversa exerça o contraditório de forma eficaz. Como bem ensina o professor Arruda Alvim “(…) a lealdade é um paradigma ético, que informa a atividade, no sentido do litigante agir de frente, sem chicanices, sem providências inesperadas, mesmo que tais providências sejam legítimas.” Deixar de apresentar documentos já conhecidos ao tempo da ação e atribuir responsabilidade instrutória ao magistrado, repito, fere de morte, os deveres anexos da boa-fé objetiva na seara processual.

No caso concreto, a partir do que se infere do acórdão, a parte autora tinha conhecimento a respeito da existência de prova documental que poderia ser útil para o julgamento do caso, mas não requereu a sua produção. Após ser proferida sentença de improcedência por falta de provas, em recurso de apelação, a parte autora argumentou que a instrução fora incompleta, pois o juiz não teria determinado a juntada da prova documental.

A conclusão da Turma é irretocável no ponto em que indica não ter o juiz dever de produzir a prova de ofício. Não há, efetivamente, dever. Mas, de qualquer modo, a associação com o tema da lealdade processual é perigosa.

Limpando o campo da análise, é preciso dizer desde já que quando a parte sabe da existência de determinada prova, deixa de requerer a sua produção e, após sentença em seu desfavor, busca atribuir ao julgador a responsabilidade pela produção probatória, tem-se claramente deslealdade processual. Nisso não há como discordar do tribunal.

Entretanto, a afirmação anterior do relator é que pode revestir-se de algum perigo: “indica ser dever das partes – no campo probatório – narrar os fatos objeto da demanda, com indicação de todos os elementos probatórios, de forma a permitir que a parte ex adversa exerça o contraditório de forma eficaz”.

Para o relator, é dever das partes indicar os elementos probatórios. Entretanto, quando se trata de produção de provas, o que se tem não é dever e, sim, ônus.

Quando a parte tem ônus de produzir prova não se pode imputar a ela um dever de indicar os elementos probatórios, ainda que se queira conectar essa indicação com a exigência de lealdade processual e com o exercício do contraditório da parte contrária.

Se há um ônus de provar, a indicação dos elementos probatórios é também um ônus. E, obviamente, a não desincumbência desse ônus acarreta consequências. Se a parte autora, como se viu no caso concreto julgado pelo STJ, não produziu provas suficientes para a formação do convencimento do magistrado, a consequência será fatalmente a improcedência dos seus pedidos.

Essa dinâmica ônus-consequência funciona bem e demonstra a desnecessidade de se trazer para este campo a noção de dever de provar conectada com lealdade processual e contraditório.

Digo isso não porque o contraditório não seja importante na dinâmica da prova. Ele é, mas a conexão que se quis fazer no acórdão é dispensável, porque em nada agrega. Ao contrário, turva a compreensão. O conceito de ônus de provar já satisfaz a noção de contraditório que se quer implantar nessa dinâmica, até mesmo porque toda ela é construída a partir de preclusões sistemáticas, que vão ocorrendo desde a fase inicial do processo até o momento da prolação da decisão de saneamento.

É nesta decisão em que o juiz irá estabelecer os pontos controvertidos e decidir sobre as provas a serem produzidas. E o saneamento vai estabilizar-se, gerando preclusão[6], inclusive, para o juiz, pois não caberia cogitar-se de decisão estável cujo conteúdo pudesse ser alterado/acrescentado pelo magistrado.

Com esse sistema de preclusões, o contraditório fica plenamente preservado, pois a parte adversa tem a segurança de que não será surpreendida por provas que poderiam ser produzidas ou cuja produção poderia ter sido requerida desde antes. E não será surpreendida nem mesmo pelo juiz que deseje produzir prova de ofício.

E também a conexão com a ideia de lealdade processual nada agrega a essa dinâmica, pois a prova, não sendo um dever e, sim, um ônus, caso não produzida, não pode gerar consequência danosa para aquele sobre o qual o ônus não recaía e isso, automaticamente, gerará consequência danosa para aquele que não se desincumbiu desse ônus.

Não há que se falar em deslealdade processual porque uma parte deixou de indicar todos os elementos probatórios. É como pensar o processo judicial de forma romântica, retirando dele a essência do que ele representa na prática: um conflito. Nesse âmbito, impor um dever às partes de indicar todos os elementos probatórios, mesmo os contrários aos seus interesses, é um descompasso com a própria realidade e uma forma de captura de um argumento jurídico por um argumento moral.

Essa captura não pode ser tolerada porque em nada acrescenta ao bom andamento do processo. Há uma sistemática que já permite a imposição de consequências danosas para a parte que não indica todas as provas possíveis e não as produz e isso ficou claro a partir do resultado do processo que chegou ao STJ e que motivou este texto: improcedência do pedido.

A improcedência, naquele caso, decorre da básica e funcional equação ônus da prova-consequência, não havendo qualquer necessidade de se misturar aí um argumento moral de deslealdade processual por desrespeito a um inexistente dever de indicação de elementos probatórios.

[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 56.

[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo. In: ____ Temas de direito processual: 3ª série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 55.

[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Tese (Doutorado em Direito Processual Civil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo: 2016, p. 124-125.

[4] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e Sempre a Prova de Ofício: o silencioso sepultamento dos poderes instrutórios supletivos no CPC/15. Disponível em: https://www.contraditor.com/52-ainda-e-sempre-a-prova-de-oficio/. Acesso em 02/03/2022. Vale também a leitura de outro texto relevante, de autoria de Luís Gustavo Reis Mundim: https://www.contraditor.com/prova-ex-officio-e-preclusao-a-volta-dos-que-nao-foram/.

[5] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e Sempre a Prova de Ofício: é correto dizer que o STJ atribui caráter de dever aos poderes instrutórios do juiz? Disponível em: https://www.contraditor.com/79-ainda-e-sempre-a-prova-de-oficio-2/. Acesso em 02/03/2022.

[6] “Permitir que o juiz possa determinar a produção de prova após a preclusão para a parte que não a requereu a tempo e modo ou após ter indeferido a prova e reconsiderado em momento procedimental posterior, é o mesmo que transformar uma garantia das partes em um instrumento do poder estatal, que mantém a violência judicial.” (MUNDIM, Luís Gustavo Reis. A prova ex officio e a preclusão: a volta dos que não foram. Disponível em: https://www.contraditor.com/prova-ex-officio-e-preclusao-a-volta-dos-que-nao-foram/. Acesso em 02/03/2022).

OS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS E AS CAUSAS DE VALOR ELEVADO

Neste ano de 2022, dentre os vários temas de grande repercussão que o Superior Tribunal de Justiça irá enfrentar está a discussão sobre o alcance da previsão do art. 85, § 8º do CPC/2015.

A partir do Tema Repetitivo n. 1076 a Corte Especial do STJ deverá definir se é possível a fixação equitativa dos honorários advocatícios de sucumbência naquelas hipóteses em que o valor da causa ou o seu proveito econômico sejam elevados. Foram afetados para apreciação no STJ os Recursos Especiais n. 1.850.512/SP, 1.877.883/SP, 1.906.623/SP e 1.906.618/SP.

O CPC/2015, em seu art. 85, estabelece as regras para a fixação dos honorários advocatícios de sucumbência. O § 2º disciplina os critérios para tanto: mínimo de 10% e máximo de 20% sobre o valor da condenação, do proveito econômico ou do valor atualizado da causa, devendo o juiz atentar-se para o grau de zelo do profissional, o lugar em que o serviço foi prestado, a natureza e a importância da causa, o trabalho realizado e o tempo que ele demandou. Essas são as regras gerais.

Indo além, o § 8º contempla previsão para aqueles casos que não possam ser enquadrados nas disposições do § 2º, quais sejam: causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou naqueles casos em que o valor da causa for muito baixo. Nessas hipóteses, o juiz deixará de fixar o valor a partir de um percentual que incida sobre o valor da causa ou sobre o proveito econômico e fixará os honorários por equidade.

Em outra sede, o dispositivo foi assim comentado:

“Excepcionando a regra geral, o CPC/2015, art. 85, § 8º dá a possibilidade de o julgador fixar o valor dos honorários por apreciação equitativa, desde que considerados os requisitos de avaliação do trabalho do advogado do vencedor estabelecidos no CPC/2015, art. 85, § 2º.

Trata-se de uma exceção que se justifica quando for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou quando o valor da causa for muito baixo e, com isso, o valor dos honorários de sucumbência não cumprir a finalidade de remunerar o trabalho do advogado.

Não se trata de um salvo-conduto ao julgador para arbitrar o valor dos honorários de sucumbência em qualquer caso. Há casos em que o magistrado deixa de seguir o parâmetro mínimo de 10% e arbitra valor inferior quando verifica que o montante da condenação é bastante alto. Trata-se de uma ilegalidade, pois a apreciação equitativa é destinada àqueles casos em que o valor dos honorários de sucumbência seria extremamente baixo e isso fica bem claro a partir da leitura do CPC/2015, art. 85, § 8º.”[1]

Os honorários advocatícios de sucumbência servem claramente para remunerar o trabalho do advogado e possuem natureza alimentar, conforme prevê o CPC/2015, art. 85, § 14. É por isso que o legislador estabeleceu os critérios para a fixação do valor no § 2º, retirando, ao máximo possível, do juiz o espaço de manobra interpretativa que pudesse, de alguma maneira, descaracterizar a importância dos honorários.

Ao fixar os percentuais mínimo e máximo, a lei deixou claro que havendo valor de condenação, valor da causa ou proveito econômico definido, os critérios para a fixação do valor são aqueles constantes do § 2º.

Excepcionalmente, quando os critérios do § 2º não forem suficientes para garantir a remuneração básica adequada ao advogado da parte vencedora, entrará em cena o § 8º, permitindo ao juiz a fixação equitativa dos honorários, sem vinculação ao valor da causa ou do proveito econômico.

E isso será possível em situações bastante específicas, como se viu acima.

Parece não haver na doutrina e na jurisprudência grandes discussões a respeito dos termos “proveito econômico irrisório” ou “valor da causa muito baixo”. A grande celeuma encontra-se na interpretação da expressão “proveito econômico inestimável”.

No julgamento do REsp n. 1.746.072-PR travou-se interessante debate na Segunda Seção do STJ a respeito do tema da fixação dos honorários advocatícios de sucumbência. O julgado restou assim ementado:

“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. JUÍZO DE EQUIDADE NA FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA. NOVAS REGRAS: CPC/2015, ART. 85, §§ 2º E 8º. REGRA GERAL OBRIGATÓRIA (ART.  85, § 2º). REGRA SUBSIDIÁRIA (ART. 85, § 8º). PRIMEIRO RECURSO ESPECIAL PROVIDO. SEGUNDO RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1.  O novo Código de Processo Civil – CPC/2015 promoveu expressivas mudanças na disciplina da fixação dos honorários advocatícios sucumbenciais na sentença de condenação do vencido. 2. Dentre as alterações, reduziu, visivelmente, a subjetividade do julgador, restringindo as hipóteses nas quais cabe a fixação dos honorários de sucumbência por equidade, pois:  a) enquanto, no CPC/1973, a atribuição equitativa era possível: (a.I) nas causas de pequeno valor; (a.II) nas de valor  inestimável;  (a.III)  naquelas  em  que  não  houvesse  condenação  ou fosse  vencida  a  Fazenda  Pública; e (a.IV) nas execuções,  embargadas  ou não  (art.  20, § 4º); b) no CPC/2015 tais hipóteses são restritas às causas: (b.I)  em  que o proveito econômico for  inestimável  ou  irrisório ou,  ainda, quando  (b.II)  o  valor  da  causa  for  muito  baixo  (art.  85, § 8º). 3.  Com isso, o CPC/2015 tornou mais objetivo o processo de determinação da verba sucumbencial, introduzindo, na conjugação dos §§ 2º e 8º do art. 85, ordem decrescente de preferência de critérios (ordem de vocação) para fixação da base de cálculo dos honorários, na qual a subsunção do caso concreto a uma das hipóteses legais prévias impede o avanço para outra categoria. condenação 4.  Tem-se, então, a seguinte ordem de preferência: (I) primeiro, quando houver, devem ser fixados entre 10% e 20% sobre o montante desta (art.  85, § 2º); (II) segundo, não havendo condenação fixados entre 10% e 20%, das seguintes bases de cálculo,: serão  também (II.a)  sobre  o proveito  econômico  obtido  pelo  vencedor  (art.  85, § 2º); ou (II.b) não sendo possível mensurar o proveito econômico obtido, sobre o valor atualizado da causa (art.  85, § 2º); por fim, (III) havendo ou não condenação, nas causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou em que o valor da causa for muito baixo, deverão, só então, ser fixados por apreciação equitativa (art.  85, § 8º). 5.  A expressiva redação legal impõe concluir: (5.1) que o § 2º do referido art.  85 veicula a regra geral, de aplicação obrigatória, de que os honorários advocatícios sucumbenciais devem ser fixados no patamar de dez a vinte por cento, subsequentemente calculados sobre o valor: (I) da condenação; ou (II) do proveito econômico obtido; ou (III) do valor atualizado da causa; (5.2) que o § 8º do art.  85 transmite regra excepcional, de aplicação subsidiária, em que se permite a fixação dos honorários sucumbenciais por equidade, para as hipóteses em que, havendo ou não condenação: (I) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (II) o valor da causa for muito baixo. 6.  Primeiro recurso especial provido para fixar os honorários advocatícios sucumbenciais em 10% (dez por cento) sobre o proveito econômico obtido. Segundo recurso especial desprovido.”

Embora tenha prevalecido a posição de que o § 8º somente deve ser aplicado em caráter excepcional, a relatora originária do recurso, ministra Nancy Andrighi, defendeu tese diversa. Para ela, o entendimento consolidado no STJ, na vigência do CPC/1973, no sentido de que é possível a fixação de honorários por equidade nas causas de valor irrisório ou exorbitante, embora merecesse nova reflexão à luz do CPC/2015, ainda persistiria, sendo possível ao STJ, em caráter excepcional, reduzir honorários exorbitantes fixados nas instâncias ordinárias.

Para construir sua tese, a relatora invocou os significados da palavra “inestimável” nos dicionários de língua portuguesa e concluiu que ela também diz respeito àquelas situações em que se estiver diante de um valor muito alto. Ademais, invocou a semelhança entre os textos do art. 20, § 4º do CPC/1973 e do art. 85, § 8º do CPC/2015.

No voto-vista, que acabou vencedor ao final do julgamento, o ministro relator para o acórdão Raul Araújo fez a correta distinção entre o sistema de fixação de honorários de sucumbência estabelecido pelo CPC/1973 e aquele que foi instituído pelo CPC/2015.

Ocorreram sensíveis alterações nessa sistemática e elas não podem ser desconsideradas. A simples comparação entre os textos do art. 20, § 4º do CPC/1973 e do art. 85, § 8º do CPC/2015, sem considerar os demais dispositivos da atual legislação, não é suficiente para que se possa compreender adequadamente a construção do vigente sistema de fixação dos honorários.

Para tanto, vale destacar trecho do voto vencedor:

“Logo, em face de redação tão expressiva, a conclusão lógica é a de que o § 2º do art.  85 do CPC de 2015 veicula a regra geral e obrigatória de que os honorários advocatícios sucumbenciais devem ser fixados no patamar de 10% a 20%: (I) do valor da condenação; ou (II) do proveito econômico obtido:  ou (III) não sendo possível mensurá-lo, do valor atualizado da causa. Nessa ordem de ideias, o Código de Processo Civil relegou ao § 8º do art. 85 a instituição de regra excepcional, de aplicação subsidiária, para as hipóteses em que, havendo ou não condenação: (I) for inestimável ou irrisório o proveito econômico obtido; ou (II) for muito baixo o valor da causa. Assim, em regra:  a) os honorários devem ser fixados com base no valor da condenação; b) não havendo condenação ou não sendo possível valer-se da condenação, utiliza-se (b.1) o proveito econômico obtido pelo vencedor ou, como última hipótese, (b.2) recorre-se ao valor da causa. A aplicação da norma subsidiária do art.  85, § 8º, verdadeiro “soldado de reserva”, como classificam alguns, somente será cogitada na ausência de qualquer das hipóteses do § 2º do mesmo dispositivo. Assim, a incidência, pela ordem, de uma das hipóteses do art.  85, § 2º, impede que o julgador prossiga com sua análise a fim de investigar eventual enquadramento no § 8º do mesmo dispositivo, porque a subsunção da norma ao fato já se terá esgotado.”

Como se pode ver, o § 2º deixa claras as hipóteses em que ele deve incidir. Se uma delas se faz presente, não cabe que se aplique o § 8º, ainda que o valor dos honorários seja de grande monta.

Há um fato claro: se a parte autora atribui à causa um alto valor, conhece desde já o risco da sucumbência e o assume. Não há falar-se em proporcionalidade para reduzir uma eventual condenação da parte autora ao pagamento dos honorários que eventualmente possam sobre ela recair, se a fixação se deu em respeito aos critérios do § 2º.

Há outro fato claro: a parte ré, embora não tenha domínio sobre o valor da causa, tem a possibilidade de buscar reduzi-lo por meio de defesa processual (impugnação ao valor da causa), quando isso couber, e também por meio de defesa material, buscando demonstrar que a demanda é improcedente total ou parcialmente. Há meios efetivos de influência sobre a base de cálculo da sucumbência. Se o réu os usa mal, não os usa ou, usando-os, não logra êxito em convencer a respeito da correção da sua defesa, também não há falar-se em proporcionalidade para reduzir uma eventual condenação sua ao pagamento de honorários que incidam sobre esses valores determináveis, ainda que eles sejam muito altos.

Ações de grande monta implicam em grandes riscos para ambas as partes e não cabe ao Poder Judiciário fazer desvios interpretativos para escapar da regra e aplicar a exceção a partir de juízos de valor abstratos baseados em um arremedo de critério de julgamento como é a tal da “proporcionalidade”.

Se o valor da condenação é milionário, proporcionais são os honorários fixados com base o art. 85, § 2º, ainda que eles impliquem em enriquecimento do advogado “sortudo” do vencedor. Não se trata de enriquecimento indevido, pois resultante de um trabalho de alto risco.

Desproporcional seria reduzir arbitrariamente a verba honorária. E, de consequência, ter-se-ia, aí sim, enriquecimento indevido da parte sucumbente, que se livraria de suportar a condenação que lhe caberia relativa à verba honorária.

O “inestimável” a que se refere o legislador, nesses casos, não pode ser buscado no dicionário pura e simplesmente. É preciso que ele seja compreendido dentro da sistemática em que foi incluído na legislação. E o caminho correto que se deve seguir nessa interpretação é justamente o de considerar que a regra do § 8º, de caráter excepcional, deve ter aplicação nos casos em que não seja possível a incidência do § 2º.

[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 85 «in» JuruáDocs n. 201.0730.5002.4400. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-85. Acesso em: 30/01/2022.

O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS: PARA UMA ANÁLISE DA FUNÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Parte III

O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS parte III

Introdução

Chegamos agora à terceira e última parte deste ensaio a respeito do processo, da jurisdição e da tutela dos direitos, oportunidade em que serão analisadas as funções recursal e de uniformização da interpretação sobre o direito infraconstitucional que se atribuem ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Na primeira parte, tratou-se da necessidade de superação da noção de processo como instrumento da jurisdição[1], enquanto que na segunda foram debatidas as noções de jurisdição como poder e como serviço, de tutela dos direitos como função da jurisdição e de processo como método de trabalho da jurisdição[2]. Tudo isso para que se pudesse, nesta parte final, de forma mais objetiva, identificar o papel que o STJ desempenha no sistema jurisdicional brasileiro.

 

A função recursal do STJ

A Constituição Federal, em seu artigo 105, estabelece as competências do Superior Tribunal de Justiça. O inciso I dispõe sobre a competência originária do tribunal para processamento e julgamento de ações e de conflitos de competência.

O inciso II dispõe sobre a competência recursal ordinária do STJ. O recurso ordinário está para o STJ como a apelação está para os tribunais estaduais e regionais: “É recurso de forma livre, podendo ser nele analisadas questões de fato (provas) e questões de direito”[3].

Já o inciso III disciplina sobre a competência recursal extraordinária do STJ, quando estabelece as hipóteses de cabimento do recurso especial.

A lei federal infraconstitucional também estabelece a respeito de recursos que também são cabíveis para o STJ. É o caso do agravo interno, previsto no art. 1.021 do CPC/2015, a ser interposto em face de decisão monocrática do relator, para oportunizar a análise colegiada da questão. Assim também o art. 1.022 do CPC/2015, que trata do recurso de embargos de declaração e do art. 1.042 do CPC/2015, que disciplina sobre o agravo em recurso especial.

Ao julgar tais recursos, o STJ exerce a sua função recursal que é múltipla e diversificada, como se pode ver a partir das hipóteses recursais acima elencadas.

A grande questão que se coloca diante da função recursal do STJ diz respeito em essência ao recurso especial, dada a sua natureza extraordinária. Para Flavio Cheim Jorge, os recursos dessa natureza, “por tutelarem o direito objetivo, são considerados recursos de estrito direito ou mesmo excepcionais. Não buscam a correção da ‘injustiça’ da decisão. Visam, tão somente, averiguar se a lei foi corretamente aplicada ao caso vertente”[4].

Nessa linha, o STJ, tribunal criado pela Constituição Federal de 1988 para desafogar os escaninhos do STF, passou a padecer do mesmo mal daquela corte: a quantidade de processos.

Se a Constituição Federal estabelece uma série de competências legislativas para a União, como consequência tem-se uma produção massiva de textos legais federais, que, por sua vez, são interpretados nos âmbitos específicos da Justiça Comum Estadual e da Justiça Comum Federal, de onde partem os recursos especiais dirigidos ao STJ, para que este exerça as suas funções constitucionais de preservação da integridade do direito federal infraconstitucional e da promoção da uniformidade da interpretação.

O recurso ao STJ encontra-se no âmbito da garantia ao devido processo legal. Ou seja, cumpridos os requisitos formais, de cabimento recursal, tem a parte direito de acessar a jurisdição no âmbito extraordinário do STJ, a fim de que este desempenhe a sua função de julgar recursos.

O recurso, com isso, tem uma função voltada aos jurisdicionados e não à jurisdição. Recurso, nesse caso, é mecanismo de acesso a uma instância superior, para levar a ela a insurgência da parte. É dizer, não é do recurso a função de uniformizar o entendimento sobre o direito federal infraconstitucional e nem de preservar a sua integridade. Essas são funções da jurisdição.

E isso precisa ser dito claramente, porque uma afirmação diferente dessa pode gerar uma série de conclusões prejudiciais ao direito de recorrer.

Quando se compreende que o recurso é um mero mecanismo para que o STJ uniformize entendimentos e preserve a integridade do direito federal, faz-se letra morta do próprio texto constitucional, que impõe ao STJ a competência de julgar as causas decididas nos tribunais de instância inferior naquelas hipóteses do art. 102, III.

O recurso, naquelas hipóteses, é direito da parte. A consequência da sua interposição, cumpridos os requisitos formais de admissibilidade, é o dever de julgamento pelo tribunal competente. Desse modo, o tribunal exerce sua função (presta seu serviço) recursal. Como decorrência do exercício dessa função é que se tem, em tese, a preservação da integridade e a uniformização da interpretação sobre o direito federal infraconstitucional.

Em resumo: o recurso especial não é mecanismo para o STJ e, sim, direito/garantia do jurisdicionado para acessar o tribunal e impor a ele o dever de julgamento. Isso faz concluir que, não pertencendo o recurso especial ao tribunal, não pode ser ele encarado como algo à sua disposição, o que impede, principalmente, a criação de filtros recursais fora daqueles casos previstos na lei e a manipulação do trâmite recursal com vistas tão somente ao estabelecimento de teses vinculantes.

E isso nos leva à segunda função do tribunal.

 

O STJ como tribunal de uniformização da interpretação

Como se viu anteriormente, o STJ tem também a função de uniformizar a interpretação dada pelos tribunais brasileiros a respeito do direito federal infraconstitucional. E isso conclui-se a partir da forma como a Constituição Federal estruturou o sistema judiciário brasileiro e estabeleceu as competências do STJ.

A partir da noção de que ao STJ cabe uniformizar a interpretação sobre o direito federal, tem-se uma abertura para aqueles que buscam oferecer saídas voltadas para a redução do acervo de processos no tribunal.

É muito comum que se ouça falar do STJ como uma “corte suprema” ou uma “corte de precedentes”, que produz provimentos com caráter vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário.

Daniel Mitidiero, por exemplo, fincado na ideia de processo como instrumento para a tutela dos direitos, defende que se abandone a noção de STJ como “Corte Superior” e, em seu lugar, seja erigida a ideia de STJ como “Corte Suprema”. O objetivo dessa Corte seria “orientar a aplicação do Direito mediante a justa interpretação da ordem jurídica, sendo o caso concreto apenas um pretexto para que essa possa formar precedentes[5].

Na mesma linha, Luiz Guilherme Marinoni advoga a tese da necessidade de superação da ideia de uma Corte que faça o controle da legalidade ou da correção das decisões, com o advento da noção de uma Corte de interpretação, que “naturalmente é uma Corte de Precedentes”[6].

Tanto em Marinoni quanto em Mitidiero, percebe-se uma preocupação com a racionalização do sistema. A defesa da ideia de cortes supremas é calcada na busca pela adequada tutela jurisdicional dos direitos, que acaba por ser prejudicada pela quantidade de feitos que chegam ao STJ e impossibilitam que o tribunal, com qualidade, desempenhe a sua função.

São preocupações legítimas.

Entretanto, como se viu nos textos da primeira e da segunda parte deste ensaio, há uma confusão entre os conceitos de processo e jurisdição, que acaba por prejudicar a exata compreensão do problema e, por consequência, turva a visão sobre as possíveis soluções.

O STJ, órgão jurisdicional, deve prestar seus serviços de forma adequada e eficiente. As normas processuais, e dentre elas enquadram-se as normas relativas aos recursos, servem como limite para a atuação do órgão jurisdicional, geram direitos e estabelecem garantias em favor dos jurisdicionados.

Dessa maneira, seja como um tribunal de controle de legalidade, seja como um tribunal que produz precedentes, o STJ não pode ser encarado como uma corte capaz de instituir filtros recursais que não estejam previstos na lei e de decidir sem considerar aspectos do caso, apenas para a produção de tese de natureza vinculante.

Ainda que fosse uma corte suprema, o caso não poderia ser um mero pretexto para a construção do precedente. O caso é o ponto central para a construção da decisão judicial. E o caso é fator importantíssimo para a interpretação do precedente, pois não há como encontrar os fundamentos determinantes de um precedente sem bem compreender o conflito que deu origem àquela decisão.

O caso vincula o julgamento da corte, estabelece balizas fáticas muito claras que não podem ser ultrapassadas.

A incompreensão da importância do caso e a deturpação da noção de precedente acabam por engrandecer o poder do tribunal, que passa a ser impossível de controlar, já que é dele a prerrogativa de dar a última palavra sobre a interpretação do texto legal infraconstitucional e, ao fim e ao cabo, resulta na própria deslegitimação democrática da corte, desapegada que está da sua função constitucional, instituída no art. 105, III: julgar as causas.

E nessa linha, considerando que é do STJ a prerrogativa de dar a última palavra sobre o direito federal infraconstitucional, é de suma importância que se reconheça a ideia de processo como garantia do jurisdicionado e de limite ao poder jurisdicional, pois as regras processuais são instituídas por lei federal infraconstitucional, aquelas mesmas a quem o STJ “atribui sentido”.

Ao não reconhecer o processo como aquilo que a Constituição estabelece que é (uma garantia) e ter a prerrogativa de dar a última palavra sobre a interpretação das normas processuais infraconstitucionais, o STJ passa a desempenhar poder, de certa forma, incontrolável, pois se o processo é visto como um instrumento da jurisdição, o tribunal passa a poder, inclusive, deturpar o conceito das garantias processuais e diminuir seu âmbito de incidência. É o que vem ocorrendo historicamente, por exemplo, com a garantia da fundamentação das decisões judiciais.

Mais amplitude ganha esse poder na medida em que se reconhece que este mesmo tribunal tem a competência de produzir provimentos vinculantes, por meio das teses que edita.

É sempre bom frisar que a tese é consequência do julgamento da causa. Não há tese sem causa. Quando a causa é desconsiderada, a pretexto de se instituir tese que oriente ou vincule a interpretação da norma federal infraconstitucional, o tribunal não presta adequadamente os seus serviços jurisdicionais e exerce o seu poder de forma arbitrária, fazendo letra morta das normas processuais que deveriam limitá-lo.

Para além disso, essa compreensão é autoritária na medida em que a construção das teses pela corte passa pela desconsideração de tudo aquilo que foi feito nas instâncias inferiores. É como se o STJ tivesse a última palavra, mas também a primeira, o que não reflete a realidade e nem representa uma visão democrática da estruturação do Poder Judiciário.

A causa precisa ser considerada e precisa ser parte fundamental para a construção das teses (e não mero pretexto), pois o STJ tem um dever democrático de levar em conta o trabalho das instâncias jurisdicionais inferiores.

A tese da corte deve ser uma construção de todo o organismo judiciário, mas para que isso ocorra é necessário que sejam bem compreendidas as diferenças entre os conceitos de jurisdição, de processo e de tutela dos direitos, que foi o que se tentou esquadrinhar neste ensaio.

 

Conclusões

Diante disso tudo, conclui-se que: 1) o processo é direito e garantia do jurisdicionado; 2) a jurisdição é poder e serviço públicos; 3) a tutela dos direitos é função da jurisdição e não escopo do processo; 4) o escopo do processo é a limitação do poder jurisdicional, estabelecendo um método de trabalho para o Judiciário; 5) especificamente, como órgão jurisdicional, o STJ tem as suas funções estabelecidas na Constituição, que não se confundem com as funções da norma processual; 6) de natureza processual, o direito ao recurso dado aos jurisdicionados, impõe limites à atuação do tribunal e garante o julgamento sempre que atendidos os requisitos formais estabelecidos na legislação; 7) sendo direito do jurisdicionado, o recurso impõe a análise do caso; 8) o caso não é pretexto para a elaboração da tese e, sim, seu fundamento básico; 9) a tese é consequência do julgamento do caso e produto do trabalho de todo o organismo judiciário, não apenas do STJ; 10) o caso é primordial para interpretação do precedente.

[1] Disponível aqui: https://www.contraditor.com/o-processo-a-jurisdicao-e-a-tutela-dos-direitos/

[2] Disponível aqui: https://www.contraditor.com/o-processo-a-jurisdicao-e-a-tutela-dos-direitos-parte-ii/#_ftn1

[3] NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Constituição Federal Comentada. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1117.

[4] JORGE, Flavio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 55.

[5] MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 53.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 80.

O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS – Parte II

O processo, a jurisdição e a tutela dos direitos

Introdução

Na continuidade das ideias que já foram expostas na primeira parte deste ensaio[1], nesta segunda parte serão debatidas as noções de jurisdição como poder e como serviço, de tutela dos direitos como função da jurisdição e de processo como método de trabalho da jurisdição.

A jurisdição como poder e como serviço

A jurisdição é um dos braços do poder estatal e, como tal, deve sempre estar submetida ao controle democrático, se o que temos é um Estado Democrático de Direito. Jurisdição é poder e processo é limite ao poder. Para Calmon de Passos, a jurisdição “será organizada e terá o perfil ajustado ao modelo de Estado em que se insere”[2], razão pela qual combatia com vigor a ideia de instrumentalidade do processo.

Calmon identificava dois interesses que se confrontam na dimensão jurisdicional: “de um lado, o poder que não suporta sua deslegitimação” e, “de outro lado, os governados”, que buscam “o máximo de previsibilidade das consequências dos comportamentos sociais e o máximo de garantias no processo para que esse objetivo seja alcançado”.[3]

Nessa complicada dinâmica, o ativismo do Judiciário recebia fortes críticas, porque Calmon entendia que este poder só consegue atuar em nível micro, assemelhada a sua atuação “à esmola que antigamente se dava”. “Engana a fome, mas não elimina a mendicância”[4], vaticinava.

O agigantamento da jurisdição, como se vê, é indicativo de uma sociedade que ainda não concluiu o seu processo democrático e faz retornos ao autoritarismo. Nesse contexto, surgem as discussões a respeito da eficiência dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.

Com números assombrosos em mãos, os defensores da eficiência do Poder Judiciário advogam a necessidade de reformas constantes da lei processual, buscam saídas no direito comparado, importam conceitos como o de “precedentes”, sugerem “novos” modelos de processo e de solução de conflitos etc.

E nesse ponto residem grandes problemas. A confusão conceitual entre a jurisdição, que é poder que presta um tipo específico de serviço público (resolução de conflitos e tutela dos direitos), e o processo, que é garantia dos jurisdicionados e não instrumento da jurisdição, faz com que as saídas encontradas para os problemas do Poder Judiciário sejam, no mais das vezes, baseadas em alteração das normas processuais, com a restrição das garantias e o aumento do poder dos magistrados.

Para além das críticas formuladas no âmbito do Direito Processual, Calmon de Passos dirigia sua insurgência com relação também à configuração do próprio Estado brasileiro e à forma como a Constituição de 1988 fez promessas (muitas sem cumprimento até os dias de hoje – e sem perspectivas de cumprimento, inclusive)[5]. Certamente, esses problemas de constituição do Estado acabaram por gerar, aliados a outros tantos fatores, a judicialização dos conflitos e um Poder Judiciário que se vê derrotado diante de milhões de processos judiciais.

A Constituição Federal, em seu art. 37, estabelece os princípios que regem a atividade da Administração Pública. Dentre eles figura a eficiência. Trata-se de um princípio próprio do Direito Administrativo. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.”[6]

Como se vê, exige-se eficiência do agente público e na estruturação dos órgãos públicos, de modo que o serviço seja prestado com o alcance dos melhores resultados possíveis.

Então, enquanto princípio da Administração Pública, a eficiência impõe condutas ao Estado-administrador (no âmbito do Executivo e no do Judiciário) e ao Estado-legislador, no sentido de criar estrutura suficiente para atender às demandas que chegam ao Poder Judiciário. Por outro lado, a eficiência se impõe individualmente a cada um dos magistrados e demais servidores que compõem os quadros do Judiciário, que devem pautar sua atuação na compreensão de que são funcionários públicos e que devem prestar bons serviços.

Nesse contexto, quando se fala em eficiência, é preciso compreender que ela não alcança o campo do processo (garantia) e, sim, a jurisdição (poder), enquanto administradora e prestadora de um serviço público.

O processo há de ser efetivo enquanto garantia contrajurisdicional que é, ou seja, deve ser um limite ao poder do Estado-juiz na relação jurídica processual.

Fincando bases na obra de Manuel Alcântara Saez, Calmon de Passos diferencia os conceitos de efetividade e eficiência: a primeira deve ser entendida “como a habilidade para alcançar objetivos preestabelecidos, enquanto a eficiência se refere à qualidade que produz o serviço melhor, com as mesmas quantidades de recursos empregados”[7]. A partir disso, recusa veementemente a ideia tecnocrática que predomina nas reformas legislativas que buscam conferir maior agilidade aos serviços prestados pelo Poder Judiciário: “descomprometemo-nos com a verdadeira qualidade e procuramos nos justificar despolitizando o que é, por essência, político”[8].

Bem compreendidas essas distinções, é imperativo que não se arraste para dentro do processo um conceito que não lhe pertence. Da mesma forma, não se pode trazer para o âmbito do Poder Judiciário, um ramo do serviço público, uma lógica que foi fabricada para a prestação de serviços privados. Embora pareça atrativa a ideia de eficiência (fazer mais com menos recursos), a sua essência é a da geração de lucro, o que não é visado pela Administração Pública quando presta serviços essenciais como os de jurisdição.

A “eficientização” do Poder Judiciário pode oferecer sérios riscos às garantias processuais, notadamente quando se confundem os conceitos de processo e de jurisdição ou quando se coloca o processo a serviço da jurisdição, como um meio de efetivação de direitos materiais pura e simplesmente.

 

A tutela dos direitos como função da jurisdição e o processo como método de trabalho

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira desenvolve a noção de direito de tutela, que se constitui em um “direito fundamental frente ao Estado para ser protegido da intervenção de terceiros”, “para que este realize ações positivas fáticas ou normativas, que tenham como objeto a delimitação das esferas dos sujeitos jurídicos de igual hierarquia como também a imponibilidade e a imposição dessa demarcação”[9].

E nessa linha, o professor gaúcho segue para incorporar o que chama de “constitucionalização do direito ao processo e à jurisdição” ao denominado direito fundamental de efetividade e de processo justo, para justificar que o processo efetivo implica num resultado: “aspecto que ressalta o nexo teleológico fundamental entre o ‘agir em juízo’ e a ‘tutela’ jurisdicional (efetiva) do direito afirmado, ao final reconhecido”.[10]

Disso tudo, vê-se que ainda é forte na construção de Alvaro de Oliveira aquela noção instrumentalista de Cândido Dinamarco. O processo segue sendo visto como meio para tornar eficaz o direito material e, embora seja reconhecida a existência de garantias processuais, elas acabam por ceder diante do conceito de processo justo, que seria aquele processo em que o direito material é efetivado.

As garantias processuais não são vistas em si mesmas, elas somente fazem sentido, nessa construção teórica, se estiverem a serviço do direito material (efetividade da tutela). A finalidade do processo seria efetivar o direito material.

Entretanto, isso somente é possível quando se confundem os conceitos de jurisdição e processo. Não é do processo a função de efetivar o direito material, essa função é da jurisdição.

O Estado-juiz exerce um poder, a jurisdição. Este poder tem limites, que são fixados pelo processo. O exercício da jurisdição, ao mesmo tempo, implica na prestação de um serviço público, que é o de resolver conflitos e tutelar os direitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Esse serviço é do Poder Judiciário, que não o prestará de qualquer modo, havendo um método de trabalho imposto pelas normas processuais, que, ao mesmo tempo, guiam a atuação do Estado-juiz e restringem o seu arbítrio, servindo como um escudo em favor dos jurisdicionados.

O processo, então, não é do Estado-juiz e não serve como instrumento para o exercício do seu poder e nem como meio de prestação do seu serviço. O processo (garantia do devido processo legal) é estabelecido em favor dos jurisdicionados, de modo a limitar o poder que o ordenamento conferiu ao Estado-juiz. É dizer: O Judiciário exercerá seu poder para de resolver conflitos e tutelar direitos, mas não o fará de qualquer modo e nem de forma ilimitada. Sua atuação para atingir esses objetivos (que são da jurisdição), será guiada pelas normas processuais, que limitarão o exercício do poder durante a prestação do serviço jurisdicional.

Com isso, as garantias processuais protegem os jurisdicionados de eventuais abusos do poder, ainda que não intencionais, a fim de que a atuação desse poder seja democrática.

Não fossem esses limites, a jurisdição ainda assim poderia resolver conflitos e tutelar os direitos materiais, mas o faria de forma autoritária, o que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.

Ou seja, a jurisdição, a resolução dos conflitos e a tutela dos direitos materiais podem existir sem as garantias processuais. E disso decorre a importância da separação entre esses conceitos. Nesse contexto, o devido processo legal é garantia ao jurisdicionado de exercício democrático do poder jurisdicional, ao mesmo tempo em que se configura como um método de trabalho para a jurisdição e não como um instrumento para que ela atinja seus objetivos.

Os objetivos ou escopos do processo estão sempre vinculados à limitação do poder estatal.

Os objetivos ou escopos da jurisdição são outros: resolver conflitos e tutelar os direitos.

São importantes os escopos da jurisdição e isso é inegável. Entretanto, considerá-los mais importantes do que os objetivos garantísticos do processo é um equívoco, pois isso equivale a dotar o Estado-juiz de um poder exacerbado, que acaba por inviabilizar a essência mesma da garantia fundamental do devido processo legal.

O que há nessa relação entre os objetivos do processo e os escopos da jurisdição é justamente uma necessária tensão. A garantia do devido processo legal serve para impor barreiras ao exercício da jurisdição e isso gera um desagrado em quem exerce o poder. Se isso ocorre, atingiu-se o objetivo da norma processual.

Dar ao detentor do poder a possibilidade de moldar a norma processual para adequá-la aos escopos da jurisdição é eliminar o caráter de barreira da garantia constitucional do devido processo legal. Se ela deixa de ser barreira de contenção, perde a natureza de garantia, deixando de ser aquilo que a Constituição previu que fosse.

Ao Estado-juiz não se dá a prerrogativa de moldar o método de trabalho. O processo é um “como fazer” estabelecido pela lei e a atuação processual da jurisdição deve se submeter a ele, de maneira que o seu poder seja exercido de forma contida e que o serviço prestado esteja de acordo com as imposições do Estado Democrático de Direito.

O estabelecimento dessas premissas é fundamental para que se possa compreender o tema central deste ensaio, que será objeto de apresentação na terceira e última parte, no próximo texto desta coluna: qual a função do Superior Tribunal de Justiça?

[1] Disponível aqui: https://www.contraditor.com/o-processo-a-jurisdicao-e-a-tutela-dos-direitos/

[2] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 60.

[3] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 62.

[4] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 63.

[5] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Reforma do Poder Judiciário. In: ___. Ensaios e artigos, vol. I. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 484.

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 83.

[7] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 205.

[8] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 206.

[9] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 83.

[10] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 84.

O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS

O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS

Introdução

Este é um ensaio que será construído em diferentes partes. A finalidade não é oferecer nenhuma resposta original, mas organizar e debater algumas ideias que vêm sendo colocadas pela doutrina processualista ao longo do tempo, a fim de culminar com uma discussão muito cara a esta coluna, que diz respeito à função do Superior Tribunal de Justiça dentro da organização do Estado brasileiro e, mais especificamente, do Poder Judiciário.

Para que se alcance a finalidade, este ensaio será dividido em três partes. Na primeira, serão apresentadas as noções de processo como direito/garantia, à luz da Constituição Federal, superando-se as noções instrumentalistas do processo.

Na segunda parte do ensaio, serão debatidas as noções de jurisdição como poder e como serviço, de tutela dos direitos como função da jurisdição e de processo como método de trabalho da jurisdição.

Por fim, na terceira parte, serão analisadas as funções recursal e de uniformização da jurisprudência sobre o direito infraconstitucional que se atribuem ao Superior Tribunal de Justiça.

 

O instrumentalismo processual e sua força

É comum na doutrina brasileira que se associe o conceito de processo ao de instrumento da jurisdição e isso se deve à grande influência das lições de Cândido Rangel Dinamarco e seu clássico “A instrumentalidade do processo”.

Para Dinamarco, a terceira fase da evolução metodológica do Direito Processual seria marcada por uma compreensão do processo permeada por valores, em superação à segunda fase, que era marcada pelo formalismo.[1] Nessa terceira fase, Dinamarco enxerga uma “preponderância metodológica da jurisdição, ao contrário do que se passa com a preferência pela ação ou pelo processo”, sendo que este último é visto “como instrumento do Estado, que ele usa para o cumprimento de objetivos seus”.[2]

Nessa linha, Dinamarco defende a ideia de “processo civil de resultados”. Para ele, é vaga a afirmação de que o processo é um instrumento, pois ela precisa vir acompanhada de objetivos. E são, basicamente, três os escopos do processo na teoria de Dinamarco: 1) o escopo social, que se manifesta a partir da pacificação das pessoas e da educação para o respeito aos direitos alheios e para o exercício dos próprios direitos; 2) o escopo político, que se perfectibiliza a partir da estabilidade das instituições políticas e do exercício da cidadania, sendo o processo “um meio de culto às liberdades públicas mediante defesa dos indivíduos e das entidades em que se agrupam contra os desmandos do Estado”; e 3) o escopo jurídico, que se opera a partir da atuação da vontade concreta do direito.[3]

Diante dessa compreensão, a chamada tutela dos direitos não é vista por Dinamarco como um escopo do processo, pois, para ele “o processo não é um modo de exercício de direitos pelo autor, mas instrumento público para o exercício da jurisdição e consecução de seus escopos”, o que significa que se deve falar em tutela jurisdicional às pessoas, “qualificada como o amparo que, por obra dos juízes, o Estado oferece a quem tem razão em uma causa posta em juízo”.[4]

A partir disso, é possível identificar na teoria de Dinamarco que há uma confusão entre os conceitos de processo e de jurisdição, na medida em que o autor ora trata dos escopos como sendo do processo, ora vincula-os à jurisdição.

Como se tratam de dois institutos diversos, processo e jurisdição, é fundamental que haja dissociação entre eles, pois a vinculação dos objetivos de um e de outro pode até se dar, desde que de forma metodologicamente correta.

Dinamarco assume a proeminência do instituto jurisdição na terceira fase metodológica da evolução da ciência processual e constrói a sua noção de processo à luz dessa proeminência, mas isso não justifica, por si só, que possa haver confusão entre os institutos.

Quando o autor destaca que o processo é um instrumento público para o exercício da jurisdição e seus escopos e não um meio de exercício dos direitos pelo autor, ele busca afastar-se da noção privativa de processo, assumindo a sua versão publicista. Mas mesmo a partir de um viés publicista seria possível ver o processo e a jurisdição como institutos diferentes, com escopos diferentes.

No Estado brasileiro, notadamente a partir da Constituição de 1988, que buscou salvaguardar direitos fundamentais de natureza social, é possível pensar a jurisdição com os escopos que Dinamarco atribui ao processo, mas não é possível pensar o processo como tendo esses objetivos.

A jurisdição tem o escopo social de pacificar os conflitos e até mesmo, numa visão mais romântica, de promover educação sobre os direitos das pessoas. Também se pode cogitar do escopo político da jurisdição, bastante ligado ao anterior, na medida em que o reconhecimento judicial de direitos é também uma forma de promoção da cidadania. Por fim, a jurisdição tem o escopo jurídico de produzir a norma para o caso concreto, a partir da interpretação do ordenamento e da causa a ela levada.

Isso tudo conjugado produziria uma jurisdição de resultados, parafraseando Dinamarco. Ou seja, um Poder Judiciário que atinge os objetivos que lhe são atribuídos pela ordem jurídica. E, em alguma medida, ter-se-ia a tão falada eficiência jurisdicional.

E nesse contexto, o processo não pode ser tido como mero instrumento posto à disposição da jurisdição. Há algo nele de maior, que impede essa compreensão.

Apesar de buscar superar a noção de instrumentalidade do processo com o denominado formalismo valorativo, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira parte da “natureza instrumental do direito processual, chamado a intervir ao se verificar alguma crise, efetiva ou virtual, no plano do direito material”, enxergando no processo, dentre algumas de suas finalidades, a pacificação e a “efetiva realização do direito material, de modo a se alcançar a necessária justiça do caso concreto”.[5]

O professor gaúcho, assim como Dinamarco, também promove com sua teoria uma simbiose entre processo e jurisdição. Ao tratar das finalidades desta última, assim leciona:

“… além de outras finalidades atingidas com o exercício da jurisdição (realização do direito objetivo, pacificação social), satisfaz-se com o processo também o direito subjetivo, aspecto geralmente minimizado na doutrina brasileira, a evidenciar nítida conexidade entre a atividade judicial e o direito material.”[6]

E daí em diante o autor busca investigar a influência do direito material na atividade jurisdicional e desenvolver a sua noção de tutela jurisdicional, definida como “o resultado da atividade desenvolvida pelos órgãos do Estado que exercem a jurisdição ou a tanto autorizados, visando à proteção do patrimônio jurídico.”[7]

Ao desenvolver a sua destacada obra sobre o tema da tutela dos direitos, Luiz Guilherme Marinoni defende a necessidade de se pensar a tutela jurisdicional na perspectiva do direito material, exigindo resposta sobre o “resultado que é proporcionado pelo processo no plano do direito material”, de modo que a efetividade da tutela englobaria “o direito à pré-ordenação de técnicas processuais capazes de dar respostas adequadas às necessidades que dele decorrem”.[8]

Nesse sentido, o direito material conforma o processo e o autor, preocupado com a efetividade dos direitos materiais por meio da efetividade da tutela jurisdicional, visto por ele como um direito fundamental, aposta no poder do juiz de adaptar procedimentos legalmente previstos sempre que entender serem estes insuficientes para a efetiva tutela jurisdicional:

“Imaginar que o direito à tutela jurisdicional é o direito de ir a juízo por meio do procedimento legalmente fixado, pouco importando a sua idoneidade para a efetiva tutela dos direitos, seria inverter a lógica da relação entre o direito material e o direito processual. Se o direito de ir a juízo restar na dependência da técnica processual expressamente presente na lei, o processo é que dará os contornos do direito material.”[9]

É verdade que Marinoni pressupõe que a adaptação da técnica processual pelo juiz, com base no chamado direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional, não pode violar o direito de defesa e outras garantias processuais básicas, como o contraditório, a igualdade, a publicidade, a motivação das decisões etc.[10], mas a sua teoria é construída sobre a mesma base de Dinamarco e Alvaro de Oliveira, a do processo como instrumento: “Se o processo pode ser visto como instrumento, é absurdo pensar em neutralidade do processo em relação ao direito material e à realidade social. O processo não pode ser indiferente a tudo isso. Nesse sentido, é correto dizer que nunca houve autonomia do processo, mas uma relação de interdependência entre o direito processual e o direito material.”[11]

O desacerto de atribuir ao processo a pecha de instrumento já vinha sendo indicado por Calmon de Passos, em célebre e não respondido texto intitulado “Instrumentalidade do processo e devido processo legal”. Lá, Calmon alertava sobre o equívoco metodológico de dar ao processo a qualidade de instrumento e sobre a necessidade de se pensar o processo à luz da norma constitucional que o consagrou:

“A noção de devido processo legal, já anteriormente trabalhada pela doutrina, ganhou dimensão nova, revestindo-se do caráter mais abrangente de garantia do devido processo constitucional. Compreendido o direito como algo não dado aos homens pela natureza mas por eles produzido, revelou-se fundamental entender-se o processo de sua produção, que se percebeu ter matrizes políticas, devendo, portanto, para legitimar-se, adequar-se a quanto estabelecido constitucionalmente para sua produção, em qualquer de seus níveis. Disso resultou, por exemplo, e para mencionar apenas uma das mais significativas conseqüências no âmbito do processo, erigir-se o direito de ação, cuja autonomia fora teorizada no século XIX, à categoria de direito fundamental, cujo objeto passou a ser o dever do Estado-juiz de prestar sua atividade jurisdicional com vistas a produzir o direito aplicável ao caso concreto, fazendo-o não de modo arbitrário ou pretensamente racional, mas sim com obediência irrestrita a quanto disposto como devido processo constitucional.”[12]

Calmon resgata a construção teórica da ciência processual brasileira e ressalta não se ter ouvido falar em instrumentalidade do processo em Pontes de Miranda, em Lopes da Costa, em Frederico Marques, em Buzaid, em Amilcar de Castro e em Luís Eulálio de Bueno Vidigal, “pioneiros no tratamento moderno de nosso direito processual”[13].

E, indo para além do direito, chega na filosofia da linguagem e denuncia que se falar em instrumentalidade do processo é “indutor do falso e perigoso entendimento de que é possível dissociar-se o ser do direito do dizer sobre o direito, o ser do direito do processo de sua produção, o direito material do direito processual”[14].

Para Calmon, o Direito não é objeto da natureza e nem fruto do trabalho do homem, pois está situado “no mundo da ação e do discurso, da atividade especificamente humana pela qual nós, mortais ditos racionais e não determinados de forma absoluta, compelidos a optar, buscamos dar sentido e significação ao nosso agir”, de modo que não faria sentido falar-se em instrumento no âmbito jurídico, pois este conceito não pode ser importado para o Direito com o mesmo significado que possui em seu âmbito de origem. Para que se use o termo instrumentalidade no Direito, haveria que se alterar o seu sentido e aí, alerta Calmon, “dar ao mesmo vocábulo sentidos tão radicalmente contrapostos é incidir em graves riscos de incomunicabilidade e ambigüidade”.[15]

A fragilidade da noção de processo como instrumento da Jurisdição, dessa maneira, fica evidente.

A preocupação de Calmon de Passos era com o controle do arbítrio, daí a sua virulência em criticar as ideias de instrumentalidade do processo, que colocam este como condicionado pela jurisdição ou pelo direito material. Com Calmon se afirma que o direito é “linguagem, texto, proposição descritiva ou proposição prescritiva, extremamente vulnerável e impotente”, que resulta de um processo para definição de seu conteúdo, que deve ser disciplinado, para que se alcance o resultado desejado.[16]

Desse modo, “antes de o produto condicionar o processo é o processo que condiciona o produto”, de maneira que não se privilegie o arbítrio daqueles que detêm o poder de dizer o direito nesse processo de construção da norma para o caso concreto.[17]

Esse processo de construção do direito é complexo e requer disciplina nas suas duas grandes fases, seja na de construção do texto legislativo, seja na de interpretação/aplicação da norma no caso concreto. Em ambas as fases, “não podemos dissociar o produto do processo de sua produção, que reclama, como antes, rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos – agentes, organização e procedimentos – sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores.”[18]

Daí porque falar-se em devido processo legal como uma garantia que condiciona o trabalho do intérprete/aplicador da norma no caso concreto.

 

O processo como direito/garantia

Sendo o processo um condicionante democrático da atuação do Estado-juiz, não pode ser ele, ao mesmo tempo, considerado instrumento dado para esse mesmo órgão para o alcance de seus objetivos.

Quando a Constituição Federal estabelece a norma-base do processo, o faz no seu art. 5º, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O vocábulo “ninguém” refere-se às pessoas em geral, físicas ou jurídicas, enfim, a todos os jurisdicionados e, ao impor uma proibição, direciona-se aos órgãos estatais que possuem o poder de privar as pessoas de sua liberdade ou de seus bens jurídicos.

Enquanto proibição dirigida ao Estado, o devido processo legal firma-se como um direito dado às pessoas que ao mesmo tempo opera como garantia de liberdade.

Sobre isso, já há inúmeros textos que são publicados aqui no Contraditor semanalmente na coluna “Garantismo Processual”, além de livros que vêm sendo escritos para posicionar o processo como uma garantia.

Por todos, vale mencionar as lições de Eduardo José da Fonseca Costa, para quem “a função da jurisdição é aplicar imparcialmente o direito” e “a função do processo é garantir que essa aplicação não se faça com desvios e excessos”[19].

Indo além, Eduardo Costa esclarece que o ponto de vista do processo não é o da jurisdição e, sim, o do jurisdicionado, configurando-se como uma “garantia de liberdade contrajurisdicional” e não uma instituição do poder, pois se assim o fosse estaria disciplinada no Título II da Constituição Federal, que trata da organização do Estado.[20]

Feita a separação entre o que seja processo e o que seja jurisdição, é preciso refletir sobre a noção de devido processo legal. Autores instrumentalistas, embora admitam a magnitude da norma encerrada no art. 5º, LIV da Constituição Federal, quando tratam do devido processo legal, dão ele um outro sentido que queda por desvirtuar o qualificativo “legal”, o que gera consequentemente a descaracterização do qualificativo “devido”, porque justamente partem de uma noção equivocada do que seria o “processo”.

Recolocando as coisas como elas são, Eduardo Costa é definitivo:

“De acordo com o inciso LIV do artigo 5º da CF-1988, ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’ (d. n.). Isso significa que o hífen do binômio jurisdição-jurisdicionados deve ser um procedimento em contraditório regulado exclusivamente em lei. Enfim, é obrigatório que a zona friccional entre o Estado-juiz e as partes seja ocupada por um procedimento em contraditório desenvolvido sub lege. Por isso, um juiz nunca deve regular procedimentos. As partes não atuam sob diretrizes fixadas pelo juiz para o bom andamento processual. O procedimento não e regra por dupla normatividade, (i) uma composta de leis procedimentais (civis, penais, trabalhistas, eleitorais etc.) [marco regulatório originário], (ii) outra de resoluções judiciais criativas [marco regulatório derivado]. Enfim, o procedimento se arma segundo a lei [sub legem], jamais à margem dela [praeter legem]. Ele não é ejetado da dupla matriz legislativo-jurisdicional; afinal, não se trata de ‘devido processo legal+jurisdicional’, mas apenas de ‘devido processo legal’. Só a ‘lex’, não o ‘iudex’, institui as condições procedimentais do debate. A trajetória do debate é planejada ante causam na lei, não improvisada post causam pelo julgador. Logo, o juiz não cria marcos regulatórios, mas garante às partes os marcos já fixados em lei. Nesse sentido, não é ele um agente propriamente regulador, mas GARANTIDOR.”[21]

Assim sendo, pode-se cogitar de escopos a serem perseguidos pela jurisdição, já que ela presta serviços públicos às pessoas em geral (tema que será de análise na segunda parte), entretanto, para atingir esses objetivos, a função jurisdicional fica limitada pela garantia do devido processo legal dada às pessoas.

O escopo do processo, nesse contexto, não é pacificar, nem educar, mas é o de limitar o âmbito de atuação da jurisdição e garantir a liberdade das pessoas que, eventualmente, estejam em algum dos polos de uma relação jurídica processual ou que possam ser atingidas por uma decisão jurisdicional.

Atuando como um limite ao poder, o processo efetiva-se e confere efetividade à cidadania[22], já que garante às pessoas a possibilidade de influência direta na tomada de decisão pelo Estado. Não se trata, então, o processo de um meio de efetivação do direito material, já que ele próprio, o processo é um direito em si e não depende de outro direito a ele subjacente.

Isso não significa que o direito material que seja objeto de discussão entre as partes na relação processual goze de menor importância em relação ao direito ao processo. Não se colocam as coisas dessa maneira. O direito material e o seu reconhecimento na decisão judicial terão sua legitimidade democrática vinculada diretamente à obediência das regras processuais, que condicionam esse processo de construção da norma para o caso concreto.

Essa é a base teórica para a compreensão do processo que irá nortear o desenvolvimento deste ensaio: processo como instituição de garantia das pessoas e de limitação do poder a partir da contenção do arbítrio.

[1] DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 11.

[2] DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 81.

[3] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 20.

[4] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 22.

[5] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pp. 92-93.

[6] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 95.

[7] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 108.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, pp. 114-115.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 147.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, pp. 147-148

[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, pp. 149.

[12] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 58.

[13] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 60.

[14] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 62.

[15] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 64.

[16] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 56.

[17] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 56.

[18] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo, vol. 102, p. 55-67, Abr-Jun/2001, p. 57.

[19] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. In: ____. Processo e garantia. Vol. I. Londrina: Editora Thoth, 2021, p. 19.

[20] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade (freedom) e garantia de “liberdade” (liberty). In: ____. Processo e garantia. Vol. I. Londrina: Editora Thoth, 2021, p. 137.

[21] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Breves meditações sobre o devido processo legal. In: ____. Processo e garantia, vol. I. Londrina: Editora Thoth, 2021, p. 71.

[22] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Cidadania e efetividade do processo. In: ___. Ensaios e artigos, vol. I. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 393.

O ANO É 2021 E O CARIMBO AINDA É UM PROBLEMA

O ANO É 2021 E O CARIMBO AINDA É UM PROBLEMA

Apesar de todo o avanço tecnológico experimentado pela humanidade e de já haver vários sistemas virtuais para o processamento das ações judiciais, ainda há tribunais no Brasil que trabalham com remanescentes autos em papel.

Para que os autos, nesses casos, possam ser enviados ao STJ, após a interposição de recurso especial, é feita a digitalização por alguma secretaria do tribunal local.

Nesse processo de digitalização, vez ou outra, podem ocorrer problemas de legibilidade, que impactam no juízo de admissibilidade recursal. Foi o que ocorreu recentemente no bojo dos autos do Recurso Especial n. 1.880.778 – PR. Vamos ao caso.

Interposto o recurso especial, feito o prévio juízo de admissibilidade no tribunal local, foi ele recebido e enviado, por meio de autos digitalizados, ao STJ. Lá chegando, foi proferida decisão pela presidência do tribunal, negando seguimento ao recurso, em razão da intempestividade, nos seguintes termos:

“Mediante análise do recurso de FEDERAÇÃO DOS HOSPITAIS E ESTABELECIMENTOS DE SERVIÇOS DE SAÚDE NO ESTADO DO PARANÁ e OUTROS, a data do protocolo do recurso especial está ilegível, não sendo possível verificar a sua tempestividade.

Este Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento jurisprudencial no sentido de que é dever da parte, constatada a ilegibilidade do carimbo de protocolo, providenciar certidão da Secretaria de Protocolo do Tribunal de origem a fim de possibilitar a verificação da tempestividade recursal.

Nesse sentido, os seguintes precedentes: AgInt nos EDcl no REsp 1664579/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe de 09/10/2017; AgInt nos EDcl no AREsp 771.083/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 15/05/2017; e AgRg nos EDcl no AREsp 737.702/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 06/04/2016. (e-STJ fl. 4.559).”

Contra essa decisão monocrática foi interposto agravo interno em que a parte alegou basicamente que “após o protocolo do Recurso, os autos foram digitalizados pela Secretaria do e. Tribunal de origem (v. fl. 4.247 dos autos e-STJ e Doc. 01) que deixou de digitalizar o carimbo comprobatório do protocolo. (…) É evidente, portanto, que o vício que impediu a aferição da tempestividade recursal foi causado pelo próprio Tribunal de origem em momento posterior à interposição do Recurso Especial cujo conhecimento foi negado”, conforme consta do relatório feito pela ministra Nancy Andrighi.

Ao julgar o agravo interno, a Terceira Turma do STJ decidiu que, por não ser legível o protocolo do recurso especial, não seria possível aferir a sua tempestividade, impossibilitando o recebimento do recurso. Além disso, asseverou-se no acórdão que seria dever da parte “providenciar certidão da secretaria ou outro documento equivalente que possibilite a verificação da tempestividade do recurso, fazendo a juntada no ato de interposição do recurso”. E com base nisso, manteve-se a decisão monocrática.

Contra esse acórdão foram opostos embargos de declaração e ao julgá-los a Terceira Turma, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, entendeu por fazer um melhor exame da matéria e reconheceu que a parte juntou certidão emitida pelo tribunal a quo que atestava a tempestividade com as razões de agravo interno, primeira oportunidade em que se manifestou nos autos após a digitalização. Nos termos do voto:

“De fato, o carimbo do protocolo e a digitalização da peça recursal são atos a serem praticados pelo Poder Judiciário. Desse modo, ainda que o advogado da parte diligencie no sentido de verificar a qualidade da digitalização da peça protocolada, a partir desse momento – protocolo -, qualquer comprovação ou manifestação acerca de eventual equívoco na digitalização será posterior ao ato da interposição do recurso: minutos, horas ou dias, mas lógica e cronologicamente posterior.”

Os declaratórios foram acolhidos e, com isso, revistas as decisões anteriores, para considerar tempestivo o recurso especial. O caso concreto foi resolvido, entretanto há questões subjacentes que merecem uma análise mais crítica.

Pelo que se narrou acima, percebe-se a reafirmação constante no STJ de um posicionamento de jurisprudência defensiva, que é verificado sempre que são proferidas decisões que negam seguimento a recursos com base em frágeis argumentos de “desobediência às formalidades”.

As formalidades são importantes, evidentemente. Mas a sua importância no processo está ancorada na ideia de que as formalidades são decorrências das garantias processuais e estas são destinadas às partes, à proteção das partes em face do arbítrio jurisdicional.

A Constituição estabelece o processo como uma garantia das pessoas (CF/1988, art. 5º, LV) e esse tema vem sendo semanalmente objeto de interessantíssimas análises na Coluna Garantismo Processual, aqui no Contraditor. É daí que se parte para compreender que todas as formalidades estabelecidas pela lei processual servem a esse propósito: reduzir o âmbito da discricionariedade judicial e ampliar a proteção das pessoas envolvidas nas relações jurídicas processuais.

Desse modo, as formalidades devem ser vistas não à luz da ideia de processo como instrumento, já que esta ideia deturpa a função mesma das formalidades e as torna trunfos na mão do juiz para decisões arbitrárias como as que foram vistas no caso acima relatado.

As formalidades devem ser lidas à luz da noção de processo como garantia, ou seja, destinadas às partes, para que estas tenham segurança jurídica e sejam blindadas contra o exercício arbitrário do poder jurisdicional. Se, desde o início, no caso narrado anteriormente, tivesse sido empregada a noção de formalidades vistas como garantias para as partes, não se teria essa série de decisões equivocadas a respeito desse que é um tema bastante simplório até.

É curioso que, no intento de bloquear a subida de novos recursos, o STJ tenha que proferir uma decisão monocrática e outros dois acórdãos sobre um tema que não deveria ter qualquer relevância: a legibilidade de um carimbo.

Ora, verificando-se a ilegibilidade e sabendo-se, desde sempre, que a digitalização foi feita por um órgão do Poder Judiciário, bastaria um ato ordinatório emanado do STJ para que o TJPR fizesse nova digitalização daquela folha dos autos físicos ou então emitisse uma certidão de tempestividade recursal e enviasse ao tribunal superior.

O Judiciário tem meios de fazer isso e de forma muito expedita, considerando a comunicação via internet.

Em poucos dias, esse suposto problema de intempestividade seria esclarecido e não haveria necessidade de três decisões, uma monocrática e duas colegiadas, a respeito desse tema.

O que se deu nesse caso – e se repete em inúmeros outros – foi um total desrespeito à ideia de processo como garantia das partes e também à economia processual, princípio tão invocado em decisões judiciais.

Eficiente é o Poder Judiciário quando otimiza o tempo e os recursos financeiros, materiais e humanos à sua disposição. No caso em comento, não houve eficiência. A partir de um simplório erro de digitalização de um carimbo, criou-se uma celeuma que seria facilmente evitada se a noção de eficiência no serviço público tivesse sido aplicada.

Mas o problema é ainda maior. Para reforçar essa noção defensiva em sua jurisprudência, é curioso observar que no caso analisado, o STJ presumiu a intempestividade.

Pela leitura das decisões, fica evidente que o carimbo que atestava a data do protocolo do recurso especial estava ilegível. E como assim o era, não havendo certeza sobre a data em que se deu o protocolo, presumiu-se o pior: o recurso era intempestivo.

De nada valeu para o STJ a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que recebeu o recurso especial e atestou ser ele tempestivo. Ao que parece, a afirmação, pelo desembargador competente para o juízo de admissibilidade prévio, de que o recurso era tempestivo, não tem qualquer relevância para o STJ.

Sabe-se que o juízo de admissibilidade feito pelo tribunal a quo não vincula o tribunal superior. Entretanto, é necessário que haja nos autos elementos concretos que indiquem o erro de julgamento do tribunal local. No caso que se analisa aqui, não havia nos autos qualquer elemento concreto que atestasse o erro do desembargador quando este afirmou ser o recurso especial tempestivo.

Não havia nada de concreto, pois o carimbo estava ilegível. E assim estava por erro do próprio Poder Judiciário. E mais: o erro foi cometido posteriormente ao protocolo do recurso especial, razão pela qual não poderia a parte tê-lo percebido e nem teria ela o dever de comprovar a tempestividade.

Mal comparando, é como se o STJ tivesse, no caso, presumido a má-fé da parte recorrente, ao presumir que o recurso era intempestivo porque o servidor público responsável pela digitalização do carimbo de protocolo do recurso não desempenhou com a eficiência esperada a sua função.

E é bom reforçar: erros assim são passíveis de ocorrer. O maior problema não está aqui em uma digitalização mal feita. O maior problema está em tornar esse que é um equívoco simplório e muito, mas muito fácil de ser resolvido, um problema objeto de discussões e debates em três pronunciamentos de um tribunal superior.

Há soluções no sistema processual para esse tipo de problema. Uma delas é o ato ordinatório sugerido acima. Simples, rápido e eficiente.

Outra, um tanto mais complexa, mas ainda assim menos dispendiosa, está na própria lei processual: CPC/2015, art. 932, parágrafo único: conceder prazo para que a parte corrija eventual defeito formal no recurso antes de considerá-lo inadmissível. Há nesse dispositivo um dever de sanar vícios processuais que é imposto ao relator:

“O dever de sanabilidade dos atos processuais manifesta-se em vários outros dispositivos ao longo do Código. Este, em específico, tem na mira a chamada jurisprudência defensiva e dá às partes o direito de corrigir eventuais vícios formais, impondo ao relator o dever de zelar para que isso ocorra. Dessa forma, se o relator identificar algum vício formal no recurso, deverá abrir o prazo de 5 dias para que a parte recorrente corrija o vício ou complemente o que estiver faltando.”[1]

Bastaria ao tribunal superior cumprir a determinação legal e obedecer ao seu dever de sanar defeitos processuais simples. Assim como não se presume a má-fé, também não se pode presumir a intempestividade. E mais: o desembargador que fez o juízo de admissibilidade no juízo a quo é um servidor público e os seus atos e afirmações presumem-se verdadeiros. Se ele afirmou na decisão que o recurso era tempestivo, não havendo nos autos qualquer informação em sentido contrário, presumir a intempestividade é equívoco sério do STJ.

Não haveria necessidade de tantas laudas e meses de vai-e-vem processual. Bastaria uma linha e o prazo de 5 dias. Simples como tem que ser a um órgão que se quer eficiente.

[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 932 «in» JuruáDocs n. 201.8655.8000.4100. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-932. Acesso em: 20/10/2021.

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O STJ E O ADITAMENTO DO PEDIDO NA EXECUÇÃO

O STJ E O ADITAMENTO DO PEDIDO NA EXECUÇÃO

No julgamento do REsp 1.546.430/RS, relatado pelo ministro Gurgel de Faria, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, entendeu ser possível aditar o pedido no processo de execução, mesmo após a citação do executado.

O julgado foi assim ementado:

“PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO CONTRA FAZENDA PÚBLICA. CITAÇÃO. ADITAMENTO DE PEDIDO. NOVA OPORTUNIDADE DE CONTRADITÓRIO. POSSIBILIDADE.

            1. O CPC/73 adotava como regra a impossibilidade de ampliação do pedido após a citação da parte contrária sem a anuência desta (art. 264).
            2. A limitação imposta pelo referido artigo dizia respeito à fase de conhecimento, tanto que inserida apenas no Livro I do Código, não havendo igual previsão na seção própria da fase de execução (Livro II).
            3. Justifica-se a existência do supracitado dispositivo no âmbito do conhecimento, pois é tal fase que está associada à incerteza do direito, pelo que nela é necessária a fixação de marcos legais para estabilização da lide, de sorte a se delimitar exatamente o que e quem será atingido pelos efeitos da decisão.
            4. Uma vez que o objetivo na fase de execução é a satisfação integral do título, já havendo a certeza do direito, nada impede que o pedido inaugural – inicialmente limitado a parcela da cobrança – seja posteriormente aditado para a perseguição da totalidade do crédito, desde que a pretensão não esteja fulminada pela prescrição e seja garantido à parte executada nova oportunidade de defesa.
            5. No caso, agiu com correção o juízo de origem ao permitir a ampliação do pedido, para inclusão de valores que não haviam sido cobrados desde o início da execução, oportunizando nova citação (art. 730 do CPC/73) da Fazenda Pública.
            6. Recurso especial não provido.”[1]

Como se pode perceber, o caso julgado pelo STJ invocava análise de dispositivos do CPC/1973: art. 264 e art. 730.

Tais dispositivos encontram semelhanças com as previsões do CPC/2015. O art. 730 do CPC/1973 tratava do cabimento de embargos na execução contra a Fazenda Pública. Há disposição semelhante no CPC/2015, em seu art. 535, que dispõe sobre o cabimento da impugnação ao cumprimento de sentença proferida em face da Fazenda Pública.

A regra que antes era fixada no art. 264 do CPC revogado agora consta de forma semelhante no art. 329 do CPC/2015. Senão veja-se:

CPC/1973, Art. 264. Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei.

Parágrafo único. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo.

CPC/2015, Art. 329. O autor poderá:

I – até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;

II – até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo à reconvenção e à respectiva causa de pedir.

Nos dois códigos, como se vê, a regra da estabilização objetiva da demanda diz respeito ao processo de conhecimento. E há razões para tanto.

É importante que a demanda seja estabilizada no processo de conhecimento porque nele tem-se um estado de dúvida a respeito do direito que se está a discutir. Então, é necessário que se delimite o objeto da discussão, para que possam ser produzidas as provas necessárias para os esclarecimentos que couberem no caso.

Por isso é que o limite final para o aditamento do pedido ou da causa de pedir é o saneamento do processo, já que depois dele inicia-se a fase instrutória, que depende de se ter delimitado o objeto das provas.

Já na fase de cumprimento de sentença ou no processo executivo não se tem esse estado de dúvida que permeia o processo de conhecimento. Na execução já há certeza sobre o direito, até mesmo porque este é um dos requisitos do título executivo (CPC/2015, art. 783).

Forte nessas razões, o STJ entendeu não valer para a execução a regra da estabilização da demanda que opera efeitos no processo de conhecimento, a saber:

“Uma vez que o objetivo na fase de execução é a satisfação integral do título, já havendo a certeza do direito, nada impede que o pedido inaugural – inicialmente limitado a parcela da cobrança – seja posteriormente aditado para a perseguição da totalidade do crédito, desde que a pretensão não esteja fulminada pela prescrição e seja garantida à parte executada nova oportunidade de defesa.”[2]

Não tivesse sido esse o entendimento prevalecente, sendo inadmitida a complementação do pedido formulado na execução, caberia ao credor a propositura de novo processo executivo ou o requerimento de novo cumprimento de sentença, fundado no mesmo título já executado parcialmente em data pretérita. Isso porque se está a admitir aqui que o credor não tenha expressamente renunciado ao direito objeto do aditamento.

A propositura de nova execução ou a apresentação de novo pedido de cumprimento de sentença ocasionaria mais despesas processuais e feriria a regra da economia processual.

Já a admissão do aditamento implicaria tão somente na necessidade de nova citação (se fosse execução por título extrajudicial) ou de nova intimação (se se tratasse de cumprimento de sentença), a fim de que ao executado fosse dada a oportunidade de adimplir a obrigação na parte em que aditada ou de promover a sua defesa, caso entendesse pertinente.

Entendimento semelhante o STJ já havia firmado no julgamento do REsp n. 504.168/SE[3], em que se admitiu a possibilidade de a Fazenda Pública substituir a Certidão de Dívida Ativa enquanto não tenha sido prolatada a sentença nos Embargos à Execução, com base na previsão da Lei de Execução Fiscal, em seu art.  2º, § 8º, que prevê, inclusive, a reabertura de prazo para novos embargos.

Nesse sentido, alinha-se a jurisprudência do STJ à legislação que dá à Fazenda Pública a prerrogativa de aditar o objeto da demanda executiva, conferindo essa prerrogativa para qualquer exequente, não apenas para o Estado cobrador de tributos.

Evidentemente, o aditamento do pedido na fase ou no processo executivo impõe a comunicação processual adequada ao executado, com a reabertura do prazo para que exerça o seu direito de defesa.

[1] BRASIL, STJ, REsp 1.546.430/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. em 24/08/2021, DJe 20/09/2021.

[2] BRASIL, STJ, REsp 1.546.430/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. em 24/08/2021, DJe 20/09/2021.

[3] BRASIL, STJ. REsp n. 504.168/SE, 2ª Turma, Rel. Min. Franciulli Neto, j. em 18/08/2003, DJ 28/10/2003.

RECURSO ESPECIAL E EXAURIMENTO DA INSTÂNCIA ORDINÁRIA

Recurso Especial e encerramento da instância ordinária

Curioso caso foi julgado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça no dia 24 de agosto de 2021. Trata-se do REsp 1.908.703/BA, relatado pela Ministra Assusete Magalhães. O acórdão ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO DE APELAÇÃO. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA, INTEGRADA, EM SEDE DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, POR DECISÃO COLEGIADA. AUSÊNCIA DE EXAURIMENTO DA INSTÂNCIA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 281 DO STF, POR APLICAÇÃO ANALÓGICA. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

I) Recurso Especial interposto contra decisão monocrática publicada na vigência do CPC/2015, integrada por Embargos de Declaração, igualmente processados sob a égide da nova lei processual.

II) Trata-se, na origem, de petição apresentada pela contribuinte, pretendendo a concessão de efeito suspensivo ao seu recurso de Apelação, que impugnava sentença que julgara parcialmente procedente ação por ela ajuizada, para “manter o lançamento fiscal no período de agosto de 2008 a dezembro de 2009, declarando que, nas operações de transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, a base de cálculo do ICMS é o valor da operação de entrada de mercadoria mais recente constante da nota fiscal da mercadoria com a exclusão ou abatimento dos impostos recuperáveis”. O pedido restou deferido, para atribuir efeito suspensivo ao seu recurso de Apelação, sustando os efeitos da sentença, até ulterior deliberação. De ofício, em posterior decisão unipessoal, o Relator, no Tribunal de origem, julgou prejudicado o pedido, em razão da perda do objeto, porquanto, posteriormente à decisão monocrática, foram acolhidos, com efeito infringentes, os Declaratórios opostos ao acórdão que improvera a Apelação aviada pela contribuinte, anulando-se o auto de infração e descontintuindo-se o crédito tributário, mantendo o decisum monocrático, porém, a anterior decisão, na parte em que atribuíra efeito suspensivo à Apelação da contribuinte e sustara os efeitos da sentença. O ora recorrente opôs Declaratórios à decisão monocrática, na origem, que foram rejeitados colegiadamente, ensejando a interposição do presente Recurso Especial.

III. Nos termos do disposto no art. 105, III, da Constituição Federal, compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em Recurso Especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. Assim, a orientação há muito traçada por esta Corte é no sentido de ser incabível o Recurso Especial interposto em face de decisão monocrática, porquanto não esgotada a prestação jurisdicional, pelo Colegiado de origem.

IV) Segundo entendimento desta Corte, “quando o órgão colegiado aprecia embargos de declaração opostos contra decisão monocrática, em verdade, não examina a controvérsia, mas apenas afere a presença, ou não, de um dos vícios indicados no art. 535, I e II, do CPC. Por conseguinte, o fato de existir decisão colegiada não impede nem inibe a subsequente interposição de agravo regimental, este sim, apto a levar ao órgão coletivo o exame da questão controvertida” (STJ, AgRg no REsp 1.231.070/ES, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, CORTE ESPECIAL, DJe de 10/10/2012).

V) Nesse contexto, “o julgamento colegiado dos embargos declaratórios opostos à decisão monocrática não acarreta o exaurimento da instância para efeito de interposição de recurso especial. Aplicação analógica da Súmula 281 do STF” (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 1.144.980/GO, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, DJe de 01/08/2018). No mesmo sentido: STJ, AgInt no AREsp 1.344.777/MA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 18/11/2020; AgInt no AREsp 921.127/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 11/10/2019; AgInt nos EDcl no AREsp 1.424.036/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 17/10/2019; AgInt no AREsp 1.267.031/CE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTATURMA, DJe de 26/06/2018; AgRg nos EDcl no AREsp 493.552/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, DJe de 11/03/2016; AgRg no REsp 1.527.836/RR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 16/11/2015; EDcl no AgRg no AREsp 540.238/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 29/10/2014.

VI) No caso, o pedido de concessão de efeito suspensivo ao recurso de Apelação, formulado pela contribuinte, foi julgado por decisão monocrática, seguindo-se Embargos de Declaração, opostos pela parte ora recorrente, que foram rejeitados, pelo Órgão colegiado. Contra esse acórdão, o recorrente interpôs o presente Recurso Especial. Incidência da Súmula 281/STF, por analogia.

VII) Recurso Especial não conhecido.[1]

Em resumo, o que se teve foi uma petição da parte para que fosse atribuído efeito suspensivo a um recurso de apelação. O pedido foi deferido pelo relator no tribunal local, em decisão monocrática. Contra a decisão foi interposto recurso de agravo interno que posteriormente foi julgado prejudicado, em razão da perda do objeto, por decisão monocrática do relator. Em face dessa decisão foram opostos embargos de declaração, julgados pelo colegiado e desprovidos.

Essa decisão colegiada motivou a interposição do recurso especial ao STJ que não foi conhecido, porque se considerou na Corte Federal que não houve o exaurimento da instância ordinária, pois o recurso especial, na verdade, dizia respeito a uma decisão monocrática.

Nos termos do voto da relatora, embora os embargos de declaração tenham sido julgados pelo colegiado, neles não há o exame da controvérsia em si, mas apenas da existência ou inexistência dos vícios formais que justificam a sua oposição (omissão, contradição, obscuridade ou erro material). Dessa maneira, esse tipo de recurso não tem efeito substitutivo em relação à decisão contra a qual foi oposto.

Por essas razões, entendeu a 2ª Turma que o objeto do recurso especial foi, na verdade, a decisão monocrática do relator e aí incidiria o bloqueio estabelecido pelo enunciado n. 281 da súmula de jurisprudência dominante do STF, por ainda caber recurso da decisão no âmbito da segunda instância.

Da leitura do acórdão conclui-se, então, que diante da decisão colegiada que julgou os embargos de declaração caberia a interposição do recurso de agravo interno.

Para justificar esse posicionamento, a ministra relatora lançou mão de precedente julgado pela Corte Especial do STJ no ano de 2012:

“Quando o órgão colegiado aprecia embargos de declaração opostos contra decisão monocrática, em verdade, não examina a controvérsia, mas apenas afere a presença, ou não, de um dos vícios indicados no art. 535, I e II, do CPC.

Por conseguinte, o fato de existir decisão colegiada não impede nem inibe a subsequente interposição de agravo regimental, este sim, apto a levar ao órgão coletivo o exame da questão controvertida”.[2]

No âmbito desse julgado, relatado pelo ministro Castro Meira, reconheceu-se que o exaurimento de instância haveria se os embargos de declaração tivessem sido recebidos como agravo interno ou se tivessem sido julgados como tal, a despeito da manutenção da nomenclatura original.

A compreensão, pelos tribunais locais, desse entendimento que parece estar consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a julgar pela quantidade de decisões nesse sentido após a definição da tese pela Corte Especial, é fundamental para evitar que não haja negativa de prestação jurisdicional e armadilhas processuais para as partes.

Quando se opõem embargos de declaração contra decisão unipessoal e eles, por algum motivo, são julgados de forma colegiada[3], deve ser garantido à parte o direito de interpor recurso de agravo interno, se assim ela entender necessário, não havendo que se falar em erro grosseiro nesse caso, pois o agravo é interposto contra a decisão monocrática que apenas foi integrada pela decisão colegiada resultante do julgamento dos embargos de declaração.

Se a decisão colegiada dos embargos de declaração não tem o efeito de substituir a decisão monocrática do relator, que foi aquela em que a controvérsia foi efetivamente resolvida, há de caber agravo interno, de modo a viabilizar que haja efetiva análise da controvérsia pelo colegiado, o que permitirá, se assim a parte entender necessário, a interposição do respectivo recurso especial.

Entendendo incabível o agravo interno nessas circunstâncias, o tribunal local estará colocando a parte recorrente em uma armadilha e negando-lhe, em certo sentido, a prestação jurisdicional, já que impedirá a análise da controvérsia por um colegiado e impedirá o exaurimento da instância ordinária.

A única saída para a parte, diante de uma decisão que entendesse incabível o agravo interno nessa situação, seria a oposição de novos embargos de declaração, “sob a alegação de erro no procedimento, o que viabilizaria a interposição do recurso especial para discutir, exclusivamente, a nulidade do julgado por ofensa ao art. 557 do CPC”[4] (assemelhado, em parte, ao art. 932 do CPC/2015).

Embora haja essa saída, ela serviria para fazer com que a discussão chegasse ao STJ em um recurso especial que, se fosse provido, geraria a anulação da decisão da instância inferior, do que resultaria o retorno dos autos, para que fosse julgado o agravo interno e, então, após a decisão colegiada sobre a controvérsia, fosse possível a interposição de novo recurso especial.

As questiúnculas processuais gerariam enorme desperdício de tempo e de recursos públicos, ferindo o direito fundamental à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII/CF).

 

Referências

BRASIL, STJ. AgRg no REsp 1.231.070/ES, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, j. em 03/10/2012, DJe de 10/10/2012.

BRASIL, STJ. REsp 1.908.703/BA, Rel. Min. Assusete Magalhães, 2ª Turma, j. em 24/08/2021, DJe 31/08/2021.

[1] BRASIL, STJ. REsp 1.908.703/BA, Rel. Min. Assusete Magalhães, 2ª Turma, j. em 24/08/2021, DJe 31/08/2021.

[2] BRASIL, STJ. AgRg no REsp 1.231.070/ES, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, j. em 03/10/2012, DJe de 10/10/2012.

[3] Uma saída que poderia abreviar esse calvário e livrar o jurisdicionado de uma situação de insegurança jurídica seria a de receber os embargos de declaração como agravo interno, nos termos do CPC/2015, art. 1.024, § 3º.

[4] BRASIL, STJ. AgRg no REsp 1.231.070/ES, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, j. em 03/10/2012, DJe de 10/10/2012.

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O CABIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA DO STJ

Embargos de declaração STJ

No julgamento do AgInt nos AREsp 1.636.360/MS, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, entendeu que: “o Agravo em Recurso Especial (art. 1.042 do estatuto processual civil de 2015) é o único recurso cabível contra decisão de inadmissão do Recurso Especial, razão pela qual a oposição, no tribunal de origem, de embargos de declaração, incabíveis, não interrompem o prazo para a interposição daquele.”[1]

Dessa decisão foram opostos embargos de divergência que acabaram por ser julgados, após agravo interno, pela Corte Especial do Tribunal, que por unanimidade reafirmou o entendimento da 1ª Turma, nos seguintes termos: “Os embargos de declaração, quando opostos contra decisão de inadmissibilidade do recurso especial proferida na instância ordinária, não interrompem o prazo para a interposição do agravo previsto no art.1.042 do CPC, único recurso cabível, salvo quando essa decisão for tão genérica que impossibilite ao recorrente aferir os motivos pelos quais teve seu recurso obstado.”[2]

Esse entendimento e essas decisões serão objetos de análise neste texto. Afinal, o STJ pode, de forma genérica, oferecer interpretação sobre o cabimento de recurso de embargos de declaração com relação a uma espécie de decisão judicial? E mais: pode o STJ estabelecer, também de forma genérica, uma exceção ao não cabimento do referido recurso?

No acórdão da 1ª Turma, a relatora invocou argumento de que na vigência do CPC/1973 o STJ firmou entendimento de que o único recurso cabível contra a decisão que inadmitisse o recurso especial seria o agravo, de modo que os embargos de declaração seriam incabíveis e, por consequência, não interromperiam o prazo para a interposição do agravo.

Para justificar o fundamento, listou outras decisões: AgRg no AREsp 162.026/RJ, AgRg no AREsp 534.841/ES, AgRg no AREsp 336.101/RJ, EDcl no AREsp 349.355/RJ.

Além disso, o acórdão reconhece uma exceção a esse entendimento, aplicável naqueles casos em que a fundamentação da decisão de inadmissibilidade é “tão genérica que sequer permite a interposição do agravo”[3].

Com a entrada em vigor do CPC/2015, o entendimento se manteve. É o que se vê a partir dos precedentes citados no acórdão: AgInt no AREsp 1.002.982/RS, AgInt no AREsp 1.030.934/RJ, AgInt no AREsp 946.600/RS e AgInt no AREsp 980.304/MS.

O acórdão é construído, assim, a partir da referência de uma série de julgados anteriores, mas não há fundamentação que logre justificar a decisão tomada. Mesmo a partir da citação das ementas dos julgados usados como referência não há como desvendar a fundamentação da decisão, pois as ementas apenas repetem o chavão de que há jurisprudência consolidada na corte a respeito do assunto.

Inclusive, um ponto curioso: em uma das ementas citadas no acórdão da 1ª Turma há a admissão do ministro relator de que se firmou um entendimento jurisprudencial sem que houvesse explícita fundamentação para sustentá-lo:

“Salvo melhor juízo, todas as decisões judiciais podem ser objeto de embargos de declaração, mas a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sem explicitar a respectiva motivação, tem se orientado no sentido de que os embargos de declaração opostos contra a decisão que, no tribunal a quo, nega seguimento a recurso especial não interrompem o prazo para a interposição do agravo previsto no art. 544 do Código de Processo Civil.”[4]

No acórdão da Corte Especial[5], a lógica da construção da fundamentação é a mesma. Faz-se menção a uma jurisprudência consolidada no tribunal a respeito do assunto, citando-se quatro ementas de julgados: AgInt no MS 26.127/DF, AgInt no AREsp 1.703.448/RS, EREsp 1.352.199/MG, EAREsp 275.615/SP.

A rigor, se fossem levadas a sério as regras de fundamentação previstas no CPC/2015, art. 489, § 1º, notadamente aquela disposta no inciso V, as duas decisões teriam que ser consideradas nulas, já que apenas limitam-se a invocar “precedentes” sem identificar seus fundamentos determinantes.

Em ambos os casos, os relatores recorrem a afirmações de jurisprudência consolidada sobre o assunto, mas não explicitam quais seriam as bases normativas para que o tribunal tenha chegado a essas conclusões.

É necessário, então, ir a cada um dos julgados mencionados como paradigmas para tentar encontrar os fundamentos determinantes que os relatores não lograram explicitar.

Cada um deles será analisado na ordem de citação. O primeiro paradigma mencionado no acórdão da 1ª Turma, o AgRg no AREsp 162.026/RJ, data de 2012 e foi julgado também pela 1ª Turma. Nele, o relator afirma que a decisão monocrática deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos e a reproduz. Na decisão monocrática, faz-se menção à jurisprudência consolidada no tribunal a respeito do assunto e citam-se duas ementas de acórdãos, fazendo-se referência a outras três decisões monocráticas no mesmo sentido. Nada há no acórdão além de cópia de outras decisões.[6]

No AgRg no AREsp 534.841/ES, julgado em 2014 pela 2ª Turma, o padrão se repete. Invoca-se a reiteração da jurisprudência, citam-se ementas para justificar o argumento e menciona-se, nesse caso, a exceção de cabimento dos embargos de declaração quando a fundamentação for genérica, citando-se a ementa do acórdão do EAREsp 275615/SP.[7]

No AgRg no AREsp 336.101/RJ, julgado pela 3ª Turma em 2014, o relator propõe a manutenção da sua decisão monocrática por seus próprios fundamentos. Nela, há argumentos que precisam ser considerados: de que não caberiam embargos de declaração porque as decisões de admissibilidade do REsp e do RE pelos tribunais a quo não resolvem incidentes processuais, não têm força própria e não serão passíveis de execução, não podendo ser comparadas às decisões interlocutórias e, além disso, os declaratórios não teriam utilidade, pois os tribunais superiores não estão vinculados ao juízo de admissibilidade feito pela instância inferior. No mais, cita a ementa de outro julgado.[8]

Nos EDcl no AREsp 349.355/RJ, julgado pela 4ª Turma em 2013, o padrão de fundamentação deficiente repetiu-se. Afirmou-se o descabimento dos embargos de declaração, com base em entendimento jurisprudencial do tribunal e foram citadas quatro ementas de julgados.[9]

Outro julgado citado no acórdão da 1ª Turma é o EAREsp 275.615/SP, julgado em 2014 pela Corte Especial. Nele, o relator, ministro Ari Pargendler, reconhece que a jurisprudência do STJ tem firmado entendimento de que o prazo para o agravo em recurso especial não é interrompido pela oposição de embargos de declaração, mas o fez “sem explicitar a respectiva motivação”. O relator aduz que essa orientação tem o efeito prático de coibir embargos declaratórios que veiculam matéria de outro recurso ou que tenham apenas efeito procrastinatório, entretanto, conclui que isso não ocorre no caso que está julgando e, por isso, decide pelo cabimento dos embargos de declaração. Em seu voto-vista, o ministro João Otávio Noronha reforça que o caso concreto analisado é excepcionalíssimo, razão pela qual também entende serem cabíveis os embargos de declaração.[10]

Nesse julgado, entretanto, embora se esteja diante de embargos de divergência e a decisão tenha sido no sentido de se criar uma exceção ao entendimento jurisprudencial dominante, não há análise dos fundamentos desse entendimento. O relator apenas assume-o como um fato e confessa não haver fundamentação.

Já com relação aos julgados proferidos após a entrada em vigor do CPC/2015, o primeiro citado pela relatora, AgInt no AREsp 1.002.982/RS, após buscas no site do STJ, não foi encontrado. Aparece com essa numeração um REsp cuja decisão transitou em julgado em 13 de agosto de 2008. Também aparece um Agravo de Instrumento cuja decisão transitou em julgado em 25 de fevereiro de 2008. Assim, foi impossível analisar o conteúdo do acórdão mencionado pela relatora.

No AgInt no AREsp 1.030.934/RJ, julgado pela 1ª Turma em 2017, o relator afirmou que a decisão de inadmissibilidade do REsp pelo tribunal a quo não foi genérica e repetiu o argumento de que somente caberia Agravo em REsp contra a referida decisão e não embargos de declaração. Citou duas ementas de julgados do STJ e duas do STF.[11] Pela análise da decisão não é possível desvendar os fundamentos determinantes da sua conclusão, pois ela segue o mesmo padrão já referido anteriormente, de escorar-se em outros julgados sem construir fundamentação analítica.

No AgInt no AREsp 946.600/RS, julgado pela 3ª Turma em 2016, também não se localiza fundamentação adequada. Afirma-se o descabimento do recurso e citam-se três ementas.[12]

Por fim, no AgInt no AREsp 980.304/MS, julgado em 2017 pela 4ª Turma, manteve-se a decisão monocrática e houve um cuidado maior com a fundamentação do voto.[13] Partiu-se da afirmação de que não são cabíveis os declaratórios, citaram-se cinco ementas de julgados para corroborar a afirmação e, de forma mais detida, colacionou-se trechos do voto da ministra Maria Isabel Gallotti no AgRg no Ag 1.341.818/RS.

Dada a maior profundidade da análise neste julgado citado, vale destacar alguns de seus trechos:

“As decisões de admissibilidade de recurso especial ou extraordinário limitam-se a decidir pelo seguimento ou trancamento do recurso dirigido à instância superior. Tais decisões não decidem questão incidente e jamais serão passíveis de execução, sequer a título precário, como as antecipações de tutela. Se não impugnadas, o trânsito em julgado acobertará a última decisão de mérito.

No sistema processual vigente, a decisão de admissibilidade do recurso especial ou extraordinário é proferida por delegação do Tribunal ad quem, sendo impugnável mediante agravo de instrumento dirigido ao STJ ou STF (CPC, art. 544). Uma vez proferida, exaure-se a delegação, devendo os autos ser remetidos à instância superior, aguardar eventual decisão em agravo de instrumento, ou baixarem à origem para execução ou arquivamento. Não há previsão legal para retratação, ao contrário do que sucede com o agravo do art. 522 e seguintes do CPC.

(…)

Diante da decisão que nega seguimento ao recurso especial, o recurso cabível é o agravo de instrumento do art. 544 do CPC. Embargos de declaração, aqui, também não teriam utilidade alguma, seja porque o STJ e o STF não estão vinculados aos fundamentos da decisão de admissibilidade do Tribunal de origem, seja porque, exaurida a delegação, não mais caberia, a título de sanar defeito de obscuridade, contradição ou dúvida, reconsiderar a decisão para dar seguimento ao recurso especial trancado.

Os motivos que levaram a jurisprudência a admitir embargos de declaração contra decisão interlocutória também aqui não se fariam presentes: não há necessidade de aperfeiçoar decisão cujos fundamentos em nada vinculam a instância superior; decisão que não é passível de execução, sequer precária (o que é passível de execução é o acórdão recorrido); decisão que não resolve questão incidental no curso do processo.”[14]

 

Neste julgamento, o ministro Raul Araújo, acompanhado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, votou em sentido contrário à relatora (ficaram vencidos). De seu voto pode ser retirado o seguinte excerto:

“Com a devida vênia, entendo que cabem embargos de declaração contra decisão, proferida pela Presidência da Corte de origem, no juízo de admissibilidade do recurso especial, sempre que houver omissão, obscuridade ou contradição.

As decisões judiciais, de forma geral, são passíveis de incorrer em erro material ou nos vícios de que trata o art. 535 do Código de Processo Civil. Por essa razão, é plausível aceitar a oposição de embargos de declaração contra qualquer decisão judicial, e, uma vez apresentados, terão o condão de interromper o prazo recursal.”[15]

 

Resta agora análise dos julgados citados como paradigmáticos no acórdão da Corte Especial. No AgInt no MS 26.127/DF, julgado em 2020 pela Corte Especial, a relatora apenas afirma que a jurisprudência atual do STJ posiciona-se no sentido do descabimento dos embargos de declaração e colaciona a ementa de dois julgados. Não há fundamentação específica.[16]

No AgInt no AREsp 1.703.448/RS, julgado pela 4ª Turma em 2021, o padrão de ausência de fundamentação se repete. Afirma-se a jurisprudência consolidada e citam-se duas ementas de julgados nesse sentido.[17]

Por fim, considerando que o EAREsp 275.615/SP foi analisado acima, resta a análise do EREsp 1.352.199/MG, julgado pela Corte Especial em 2015. Nele, simplesmente não se discute o cabimento de embargos de declaração em face de decisão que inadmite recurso especial. A discussão ali disse respeito a embargos de declaração opostos contra sentença e que foram inadmitidos pelo juízo da primeira instância porque direcionados erroneamente a juízo de outra vara. O ponto central era definir se os embargos de declaração teriam efeito interruptivo da contagem do prazo para outro recurso e decidiu-se que “os embargos de declaração interrompem o prazo de interposição de qualquer outro recurso cabível, salvo em situações peculiares como a de intempestividade ou não cabimento do recurso integrativo”.[18]

Expostas as decisões e excluídas aquelas das quais não se pode extrair fundamentos determinantes, pode-se dizer que, basicamente, o entendimento do STJ sobre o não cabimento de embargos de declaração contra a decisão que inadmite recurso especial está assentado sobre os seguintes argumentos: 1) as decisões de admissibilidade de REsp pelos tribunais a quo não resolvem incidentes processuais, não têm força própria e não serão passíveis de execução, não podendo ser comparadas às decisões interlocutórias; e 2) os declaratórios não teriam utilidade, pois os tribunais superiores não estão vinculados ao juízo de admissibilidade feito pela instância inferior.

Os argumentos não se sustentam. O ato jurisdicional do presidente ou do vice-presidente do tribunal a quo a respeito da inadmissibilidade do recurso especial tem conteúdo decisório, não podendo ser qualificado como mero “despacho”. Se tem conteúdo decisório, enquadra-se no conceito de “qualquer decisão judicial” a que faz referência o CPC/2015, art. 1.022.

O que determinará se o recurso de embargos de declaração é ou não cabível no caso concreto será a análise dos fundamentos invocados pela parte embargante. Se se tem um ato jurisdicional com conteúdo decisório e com relação a este ato for alegada obscuridade, contradição, omissão ou erro material, devem ser admitidos os embargos de declaração.

Aqui pouco importa se essa decisão é relativa à primeira fase do juízo de admissibilidade do recurso especial. Tem-se um ato decisório, essa é a sua natureza.

Se a lei prevê que dos atos decisórios, em geral, cabem embargos de declaração, não é da competência do STJ fazer interpretação restritiva para um tipo específico de decisão judicial e restringir o direito ao recurso a partir de um critério que a lei não estabeleceu.

E sobre a característica de provisoriedade da decisão do tribunal a quo, cabe destacar trecho do voto do ministro Eduardo Ribeiro, relator para o acórdão do julgamento no Ag 22.207/RS, que data do ano de 1992: “essa natureza provisória só se verifica quando se admite o recurso, porque não há preclusão, e, por isso mesmo, não se pode recorrer. Inadmitido o recurso, tem-se uma decisão interlocutória como qualquer outra.”[19]

O fato de o juízo de admissibilidade do recurso especial dar-se em duas fases e, na segunda, não haver vinculação do juízo ad quem à decisão do juízo a quo, não significa que este ato jurisdicional não possa ser qualificado como “decisão”.

O fato de caber agravo em REsp contra essa decisão também não impede o cabimento dos embargos de declaração, pois, se assim fosse, não caberiam os declaratórios contra a sentença, já que ela é recorrível por apelação. E assim por diante.

E tanto não se sustentam os argumentos do STJ que os julgados acima referidos, inclusive, admitem como hipótese excepcional de cabimento dos declaratórios quando a decisão de inadmissão do REsp for genérica.

A criação dessa exceção é a prova de que a regra criada pela interpretação restritiva é decorrente de uma livre escolha e não de uma interpretação adequada da lei processual. Com a exceção, o STJ admite que sua regra pode limitar a sua livre escolha e quer, em determinadas circunstâncias, mantê-la, para poder escolher alguns declaratórios como cabíveis.

Fala-se nessa liberdade de escolha porque o critério eleito pelo tribunal para estabelecer a exceção é aberto: fundamentação genérica. E isso evidencia que se trata de mais um exemplo de jurisprudência defensiva.

Pergunta-se: quem definirá o conceito de fundamentação genérica no caso concreto? E a resposta é clara: o próprio STJ, quando estiver diante do agravo em recurso especial, questionando se ele é tempestivo ou não, é que definirá se os embargos de declaração interromperam ou não o prazo do agravo.

Se o STJ considerar que a decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal a quo é genérica, considerará que houve interrupção do prazo do agravo e este será considerado tempestivo.

Enquanto isso, perdurará uma completa instabilidade jurídica.

O cabimento dos embargos de declaração, desse modo, confunde-se com o próprio provimento do recurso, o que é um arrematado absurdo. Cabíveis (ou recebidos) apenas serão os embargos de declaração que, no agravo em recurso especial, o STJ considerar que teriam que ter sido providos e, como efeito, ter-se-á a admissibilidade do agravo.

E isso não faz o menor sentido, pois é lição comezinha nos estudos da fase de recursos das disciplinas de direito processual que há dois planos de análise que não se confundem, o da admissibilidade, onde se verifica se o recurso é cabível ou não, e o do mérito, quando o recurso será provido ou desprovido, caso tenha sido recebido.

Ao vincular o cabimento dos embargos de declaração nessa situação específica à existência de uma decisão genérica, o STJ faz confusão entre os dois planos de análise e ignora a disposição do CPC/2015, art. 1.022, invertendo a lógica: cabível será apenas o recurso que deveria ter sido provido.

Por fim, cabe dizer sobre a inutilidade dos declaratórios que decorreria do fato de a decisão do tribunal a quo não vincular o juízo ad quem. Não há inutilidade em tese do recurso, ela somente pode ser verificada em cada caso concreto e, quando for assim e se verificar que se trata de recurso meramente protelatório, há remédio na própria lei: multa, nos termos do CPC/2015, art. 1.026, §§ 2º, 3º e 4º.

Não cabe ao tribunal firmar entendimento que exclui o cabimento do recurso, em caráter genérico, por conta de situações particulares para as quais a própria lei prevê medida corretiva.

Além do mais, a não vinculação do STJ à decisão do tribunal a quo não significa que esta não seja uma decisão, como já se esclareceu alhures.

Sob qualquer ângulo que se analise, considerados tanto os aspectos formais da maior parte das decisões analisadas aqui e que formam a “jurisprudência consolidada” do STJ sobre o assunto, assim também os aspectos substanciais dos fundamentos desse entendimento, verifica-se que a tese não se sustenta juridicamente, o que a torna uma clara manifestação de jurisprudência defensiva, cuja finalidade é criar mais um entrave para a admissão de recursos no tribunal.

 

Referências

BRASIL, STJ. Ag 22.207/RS. Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 3ª Turma, j. em 20/10/1992, DJ 05/04/1993.

BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1.030.934/RJ. Rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. em 08/06/2017, DJe 22/06/2017.

BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1.636.360/MS, Rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma, j. em 10/08/2020, DJe 14/08/2020.

BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1.703.448/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. em 08/02/2021, DJe 11/02/2021.

BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 946.600/RS, Rel Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 06/12/2021, DJe 19/12/2016.

BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 980.304/MS, Rel Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 07/03/2017, DJe 15/03/2017.

BRASIL, STJ. AgInt no MS 26.127/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, j. em 16/11/2020, DJe 23/11/2020.

BRASIL, STJ. AgInt nos EAREsp 1.636.360/MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. em 13/04/2021, DJe 20/04/2021.

BRASIL, STJ. AgRg no Ag 1.341.818/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 20/09/2012, DJe 31/10/2012.

BRASIL, STJ. AgRg no AREsp 162.026/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, j. em 07/08/2012, DJe 10/08/2012.

BRASIL, STJ. AgRg no AREsp 336.101/RJ, Rel Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 04/11/2014, DJe 10/11/2014.

BRASIL, STJ. AgRg no AREsp 534.841/ES, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. em 04/09/2014, DJe 10/09/2014.

BRASIL, STJ. EAREsp 275.615/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, j. em 13/03/2014, DJe 24/03/2014.

BRASIL, STJ. EDcl no AREsp 349.355/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 01/10/2013, DJe 11/10/2013.

BRASIL, STJ. EREsp 1.352.199/MG, Rel Min. João Otávio Noronha, j. em 16/09/2015, DJe 05/10/2015.

[1] BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1.636.360/MS, Rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma, j. em 10/08/2020, DJe 14/08/2020.

[2] BRASIL, STJ. AgInt nos EAREsp 1.636.360/MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. em 13/04/2021, DJe 20/04/2021.

[3] BRASIL, STJ. EAREsp 275.615/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, j. em 13/03/2014, DJe 24/03/2014.

[4] BRASIL, STJ. EAREsp 275615/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, j. em 13/03/2014, DJe 24/03/2014.

[5] BRASIL, STJ. AgInt nos EAREsp 1.636.360/MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. em 13/04/2021, DJe 20/04/2021.

[6] BRASIL, STJ. AgRg no AREsp 162.026/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, j. em 07/08/2012, DJe 10/08/2012.

[7] BRASIL, STJ. AgRg no AREsp 534.841/ES, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. em 04/09/2014, DJe 10/09/2014.

[8] BRASIL, STJ. AgRg no AREsp 336.101/RJ, Rel Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 04/11/2014, DJe 10/11/2014.

[9] BRASIL, STJ. EDcl no AREsp 349.355/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 01/10/2013, DJe 11/10/2013.

[10] BRASIL, STJ. EAREsp 275615/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, j. em 13/03/2014, DJe 24/03/2014.

[11] BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1.030.934/RJ. Rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. em 08/06/2017, DJe 22/06/2017.

[12] BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 946.600/RS, Rel Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 06/12/2021, DJe 19/12/2016.

[13] BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 980.304/MS, Rel Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 07/03/2017, DJe 15/03/2017.

[14] BRASIL, STJ. AgRg no Ag 1.341.818/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 20/09/2012, DJe 31/10/2012.

[15] BRASIL, STJ. AgRg no Ag 1.341.818/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 20/09/2012, DJe 31/10/2012.

[16] BRASIL, STJ. AgInt no MS 26.127/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, j. em 16/11/2020, DJe 23/11/2020.

[17] BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1.703.448/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. em 08/02/2021, DJe 11/02/2021.

[18] BRASIL, STJ. EREsp 1.352.199/MG, Rel Min. João Otávio Noronha, j. em 16/09/2015, DJe 05/10/2015.

[19] BRASIL, STJ. Ag 22.207/RS. Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 3ª Turma, j. em 20/10/1992, DJ 05/04/1993.

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O CONTRADITÓRIO, A PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE E O STJ

Contraditório, prescrição intercorrente e o stj
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No dia 27 de agosto de 2021 foi publicada a Lei 14.195/2021, fruto da conversão da Medida Provisória 1.040/2021, que empreendeu uma série de mudanças na legislação brasileira com a intenção de promover melhorias no ambiente de negócios no país.

Embora a Medida Provisória não contivesse disposições a respeito de direito processual, durante o processo legislativo de sua conversão, ocorreu o chamado “contrabando legislativo” e foram feitas emendas que alteraram disposições do CPC/2015.

Há alterações no âmbito da citação, dos requisitos para a exibição de documentos e no procedimento de reconhecimento da prescrição intercorrente no processo de execução e na fase de cumprimento de sentença.

A respeito da inconstitucionalidade desse jabuti, já escrevi em outra sede:

“A CF/88, art. 62 disciplina que é cabível a edição de medidas provisórias sempre que houver relevância e urgência e, em seu § 1º, inc. I, alínea «b», proíbe que ela trate de matérias como o direito processual civil. O texto original da referida MP não trazia disposição alterando o CPC/2015, o que somente ocorreu durante a tramitação do processo de conversão em lei da MP na Câmara dos Deputados. E a partir disso já se tem dois pontos que geram preocupação com relação à constitucionalidade das mudanças operadas no CPC/2015 pela referida lei.

O primeiro diz respeito à ausência de urgência para que o tema da «Modernização do Ambiente de Negócios no País» seja disciplinado por meio de medida provisória. Essa medida legislativa colocada à disposição do chefe do Poder Executivo deve ser usada de forma excepcional «e, portanto, deve ser interpretada restritivamente, conforme princípio basilar de hermenêutica» (NERY JR.; ABBOUD, 2017, p. 491). O tema disciplinado pela medida provisória, embora relevante, poderia ser objeto do regular processo legislativo, não havendo a urgência necessária para que fosse regulado por meio de instituto excepcional.

O segundo ponto diz respeito ao processo de conversão da MP em Lei. Para Clèmerson Merlin Clève, embora seja possível e legítimo, há limites ao poder dado ao legislador no processo de conversão da medida provisória em lei: «Observados certos limites, ao Legislativo é dado modificar a medida provisória, adicionando, modificando ou suprimindo dispositivos» (CLÈVE, 2000, p. 222).

Tem sido comum a inserção dos chamados «jabutis», seja em projetos de lei, seja em medidas provisórias em rito de conversão. Trata-se de artimanha legislativa que implica na inclusão de temas diversos em textos projetados que, em princípio, não buscavam disciplinar sobre aquilo. No caso da inserção de «jabutis» no texto de medidas provisórias, a questão ganha contornos mais graves. Se a própria Constituição veda que medidas provisórias versem sobre determinados temas, como direito processual, por exemplo, é evidente que não se pode, no processo de sua conversão em lei, incluir-se disposição que verse sobre essa matéria. Além disso, a Resolução 01/2002 do Congresso Nacional, em seu art. 4º, § 4º, veda «a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar».

A MP 1.040/2021 destinava-se a tratar dos seguintes temas: «a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente». As emendas realizadas durante a tramitação na Câmara dos Deputados foram além e estabeleceram normas de natureza processual.

E nem valeria, no caso, o argumento que diferencia normas de natureza processual das normas de natureza procedimental, para dizer que seria possível estabelecer a partir de medida provisória estas e não aquelas. Quando a doutrina diferencia umas das outras, é comum que diga que normas processuais são aquelas que tratam de direitos e deveres dos sujeitos no processo, enquanto que procedimentais são aquelas que tratam dos atos em si. E não vale o argumento nesse caso, pois a primeira modificação que se faz do CPC/2015 diz justamente respeito aos deveres dos sujeitos processuais, com a inclusão de novo inciso no CPC/2015, art. 77.

Outras modificações dizem respeito à citação – ato processual que é umbilicalmente ligado à garantia fundamental do contraditório – do que se conclui ser inafastável da noção de norma processual, e à prescrição intercorrente, modificando de forma consistente o CPC/2015, art. 921 e também estabelecendo normas de natureza processual e não apenas procedimental.

(…)

Andou mal o legislador ao incorporar emendas ao texto da medida provisória que não se relacionam diretamente com o seu tema originário e, mais, que modificam regras gerais estabelecidas pelo CPC/2015 e que afetam não somente as empresas, mas todo tipo de pessoa que possa figurar como parte no processo judicial. Se a MP 1.040/2021 tinha a intenção de promover maior segurança jurídica, a forma da sua conversão em lei e o conteúdo da lei que dela resultou, certamente, ao menos no âmbito do direito processual civil, gerarão mais instabilidade, tendo em vista as problemáticas relativas à inconstitucionalidade do texto final.”[1]

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou o tema da inserção de conteúdos estranhos ao inicialmente tratado pela medida provisória, por considerar haver violação ao devido processo legislativo, já que o procedimento de conversão da medida provisória é mais expedito e, por isso, diferente do procedimento de tramitação de um regular projeto de lei. Nesse sentido:

“Direito constitucional. Controle de constitucionalidade. Emenda parlamentar em projeto de conversão de medida provisória em lei. Conteúdo temático distinto daquele originário da medida provisória. Prática em desacordo com o princípio democrático e com o devido processo legal (devido processo legislativo).

            1. Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (CF/88, art. 1º, caput, parágrafo único, CF/88, art. 2º, caput, CF/88, art. 5º, caput, e LI), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.
            2. Em atenção ao princípio da segurança jurídica (CF/88, art. 1º e CF/88, art. 5º, XXXVI), mantém-se hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática promulgadas até a data do presente julgamento, inclusive aquela impugnada nesta ação.
            3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente por maioria de votos.”[2]

Estabelecida essa premissa da inconstitucionalidade, convém que se analise uma das modificações empreendidas pela nova lei e que diz respeito ao regramento da prescrição intercorrente no CPC/2015. Neste texto, a abordagem será do disposto no art. 921/CPC, em seus §§ 5º e 6º, que assim foram concebidos:

§5º O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes.

§6º A alegação de nulidade quanto ao procedimento previsto neste artigo somente será conhecida caso demonstrada a ocorrência de efetivo prejuízo, que será presumido apenas em caso de inexistência da intimação de que trata o § 4º deste artigo.

A novidade no § 5º foi a inclusão da parte final, permitindo a extinção do processo sem sucumbência para qualquer das partes quando constatada a prescrição intercorrente. O § 6º é uma completa inovação e importa analisá-lo juntamente com o anterior em razão da complementaridade entre as disposições.

Basicamente, reconhece-se a possibilidade de o juiz, de ofício, constatar a prescrição intercorrente e declará-la, desde que assegurado às partes o direito ao contraditório, fazendo valer a regra do CPC/2015, art. 10, que proíbe o juiz de decidir sem dar às partes a oportunidade de manifestação, ainda que se trate de questão que possa ser conhecida de ofício.

Entretanto, o § 6º contemporiza a situação ao disciplinar que eventuais vícios no procedimento de reconhecimento da prescrição intercorrente somente serão reconhecidos como nulidades processuais se houver comprovação de efetivo prejuízo pela parte que os alegar.

Além disso, estabelece como única hipótese de vício com prejuízo presumível aquela decorrente da falta de intimação do exequente da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. Todos os demais eventuais vícios processuais não terão prejuízo presumido e este terá que ser comprovado para que se possa ter o reconhecimento da nulidade.

Nesse contexto de vícios com prejuízo não presumido incluem-se aqueles casos em que o juiz tenha decretado a prescrição intercorrente sem a prévia oitiva do exequente.

Uma alegação posterior de nulidade da decisão por ofensa ao contraditório não bastaria, pois teria que ser acompanhada de demonstração de prejuízo para a parte exequente. E o prejuízo, talvez, não seja a decretação da prescrição em si. Talvez se exija mais do exequente e aí ele terá que ir além e provar que teria algo a alegar que impedisse a decretação da prescrição, como uma causa interruptiva, por exemplo.

E essa inovação legislativa é contrária a um posicionamento que o Superior Tribunal de Justiça havia firmado no julgamento do seu primeiro Incidente de Assunção de Competência (IAC n. 1/STJ), suscitado no bojo do REsp 1.604.412/SC, julgado em 2018.

Uma das teses firmadas pelo tribunal na ocasião dizia justamente respeito ao contraditório prévio no âmbito do procedimento em que se reconhece a prescrição intercorrente. Para o STJ, “o contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição”[3].

Essa compreensão assumida pelo legislador que modificou o CPC/2015 é calcada na ideia de que não importa a gravidade do vício processual, o que importa é se ele causou prejuízo ao direito material da parte prejudicada.

É a petrificação da noção de que o processo e suas garantias são meros penduricalhos do direito material. Ainda que uma decisão fira o contraditório, que é uma garantia constitucional de natureza fundamental (CF/1988, art. 5º, LV), ela persistirá se a parte a quem o contraditório não foi dado não demonstrar que teve prejuízo para além da seara processual.

Essa compreensão é, em si, inconstitucional, pois reduz direitos e garantias constitucionais a uma categoria inferior a direitos de natureza material.

Dessa maneira, para evitar que a interpretação da lei infraconstitucional fira a ordem constitucional, à disposição do § 6º do art. 921/CPC deve ser dada interpretação conforme a Constituição, afastando-se a ideia de que ferir direitos e garantias processuais constitucionais não se configura, por si só, prejuízo para a parte.

Se não houver atenção ao contraditório prévio, há prejuízo, sim. Há nulidade, sim. Deve, portanto, a decisão ser anulada, abrindo-se prazo para manifestação das partes e, posteriormente, nova decisão ser proferida, enfrentando-se os argumentos que tenham sido produzidos.

Ainda vige o art. 10 do Código de Processo Civil.

Ainda vige o art. 5º, LV da Constituição Federal.

 

Referências

BRASIL, STF. ADI 5127, Rel. Rosa Weber, Rel. p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/10/2015, DJe 10/05/2016.

BRASIL, STJ. REsp 1.604.412/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, j. em 27/06/2018, DJe 22/08/2018.DUXBURY, Neil. The nature and authority of the precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 77 «in» JuruáDocs n. 210.8281.2266.5982. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-77. Acesso em: 06/09/2021.

[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 77 «in» JuruáDocs n. 210.8281.2266.5982. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-77. Acesso em: 06/09/2021.

[2] BRASIL, STF. ADI 5127, Rel. Rosa Weber, Rel. p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/10/2015, DJe 10/05/2016.

[3] BRASIL, STJ. REsp 1.604.412/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, j. em 27/06/2018, DJe 22/08/2018.

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A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ E DO STJ

indepedência do juiz e do STJ

O tema da independência do juiz no momento do julgamento já foi enfrentado anteriormente, na companhia de Eduardo Cambi, tendo havido entendimento de que, a fim de evitar ofensa aos princípios da igualdade e da segurança jurídica, a independência judicial não pode ser entendida como sinônimo de “liberdade desmesurada, pois os cidadãos não podem ficar reféns das consciências de magistrados singulares”[1].

A Constituição Federal, em seu artigo 95, estabelece em favor dos magistrados as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, de maneira que permaneçam protegidos de qualquer ingerência ilícita no exercício das suas funções. Demais disso, em seu artigo 2º, a Constituição trata da independência do Poder Judiciário, de modo a preservar a sua autonomia administrativa, financeira e funcional em relação aos demais poderes.

Com isso, percebe-se que a independência foi estabelecida em favor do Poder Judiciário, considerado como um dos braços do Estado. Já as garantias individuais têm o condão de implementar, no aspecto prático, a salvaguarda individual do magistrado, seja para protegê-lo das ingerências internas, seja das externas. Vale dizer, o juiz deve formar a sua convicção livre de pressões ilegítimas, entretanto, por ser uma liberdade baseada na proteção à ilegalidade, não pode o juiz lançar mão dela e acreditar que poderá decidir de acordo com motivações outras, que destoem do ordenamento jurídico.

Há quem, fundado na ideia de independência do magistrado, afirme que o juiz não está obrigado a seguir a orientação do tribunal hierarquicamente superior[2], no entanto, tal posicionamento não parece acertado.

Marinoni rejeita a ideia da independência judicial como forma de não vinculação dos precedentes, contrapondo-a ao princípio da igualdade como direito fundamental e à unidade da função jurisdicional. É dever do Judiciário solucionar as causas a ele submetidas, de forma racional e isonômica, não se podendo admitir que pessoas iguais, com casos iguais, possam obter decisões diferentes do Judiciário[3].

Admitir que o Judiciário profira, de forma ilimitada e descontrolada, decisões contraditórias contraria a necessidade da existência de um sistema racional de distribuição da justiça, transformando-se em um organismo doente[4].

Lenio Streck tem combatido o que chama de julgamento “conforme a consciência”. Apesar de criticar o chamado “sistema de precedentes” no Brasil, sem uma ampla discussão a respeito da construção da decisão judicial, o professor gaúcho alinha-se ao pensamento de Marinoni no sentido de buscar denunciar a forma como se aborda a questão da independência do juiz no momento do julgamento.

A luta travada por Streck leva em conta problemas de ordem anterior, que dizem respeito à própria Teoria do Direito, indo além dos problemas processuais. O que Streck pretende é demonstrar a diferença entre decisão e escolha, nesses termos:

“Quero dizer que a decisão – no caso, a decisão jurídica – não pode ser entendida como um ato em que o juiz, diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais adequada. Com efeito, decidir não é sinônimo de escolher. Antes disso, há um contexto originário que impõe uma diferença quando nos colocamos diante destes dois fenômenos. A escolha, ou eleição de algo, é um ato de opção que se desenvolve sempre que estamos diante de duas ou mais possibilidades, sem que isso comprometa algo maior do que o simples ato presentificado em uma dada circunstância.”[5]

E aqui é impossível não vislumbrar o alinhamento com o que Dworkin já pregava, no sentido de que o caso a ser julgado deve estar na composição harmônica dos seus antecedentes similares. Diz Streck que “não há decisão que parta do ‘grau zero de sentido’” e invoca o que chama de “cadeia da integridade do direito” como fundamento desse compromisso que o julgador deve ter com a história institucional do direito[6].

Fernando de Brito Alves, com Zagrebelsky, afirma que a ideia atual é a de que as leis (produtos da atividade do legislador) não são o todo do direito e, sim, uma parte dele, dado o fato de que os juízes assumiram o papel de “garantidores da complexidade estrutural do direito no Estado constitucional”, o que permitiria a “coexistência maleável da lei, do direito e da justiça”[7].

Assim, é reforçada a ideia de que o controle sobre a atividade jurisdicional é de extrema importância, em razão dessa relevância assumida pelo Judiciário.

O que parece ser unânime entre os doutrinadores é a ideia de que o controle sobre a forma de decidir do Judiciário é uma questão de preservação e promoção da própria democracia, já que, diferentemente dos outros poderes, não há escolha popular dos agentes judiciais.

J.J. Calmon de Passos combate a denominada independência do juiz, afirmando não haver qualquer independência em face do que chama de o “verdadeiro soberano de todos – os cidadãos”. Para o professor baiano, recai sobre o juiz o dever constitucional de motivação de suas decisões e viola-o aquele que julga sem apoio na prova dos autos, que aplica o direito sem suporte doutrinário autorizado ou sem base em precedentes jurisprudenciais “que atenderam à exigência constitucional de sua motivação substancial”[8].

Firme nessas premissas, defende Calmon que, com a atribuição de poder ao magistrado sem que possa haver controle da correção de seu exercício, “o julgador se tornará um déspota intolerável, visto como livre e desembaraçado para fazer do direito positivo gato e sapato”[9].

E prossegue, com sua peculiar crítica ácida:

“Será um tirano que nem mesmo terá a grandeza dos tiranos políticos, vulneráveis em sua visibilidade, mas a pequenez de um tirano solerte que se esconde e se dissimula na decisão que profere, a nível micro, quase anônima pelo reduzido de sua visibilidade, protegido em seus desvios funcionais pelo bonito discurso do imperativo da ‘independência’ do julgador, como se numa democracia houvesse independência aceitável em face do verdadeiro soberano de todos – os cidadãos.”[10]

Leonardo Greco, nessa mesma linha, é categórico ao afirmar que “o dever de respeitar a lei não constitui restrição à independência do juiz”[11].

Mais uma vez importa destacar que Marinoni e Streck apresentam posições com bases bastante diversas e até mesmo divergem no tocante às consequências delas, entretanto, é perceptível a interligação dos argumentos no sentido de afastar a ideia de independência do juiz.

Lenio Streck aborda a questão da discricionariedade judicial, que qualifica como arbitrariedade, alertando sobre o déficit democrático que era encontrado também no “discricionarismo positivista”. Sustenta ele o retrocesso que é “reforçar/acentuar formas de exercício de poder fundadas na possibilidade de atribuição de sentidos de forma discricionária” e indica como caminho uma “principiologia, ao mesmo tempo apta a ‘proteger’ o direito e a concretizá-lo”[12].

Há que se frisar que o juiz é independente para que não seja sujeitado a interferências ilícitas do poder político, do poder econômico, do poder da mídia, em linhas gerais, de corruptores. Entretanto, enquanto membro de um Poder da República, o juiz deve estar sujeito à lei (e à Constituição e aos princípios), como quer Streck, e também aos precedentes, como quer Marinoni, uma vez que essa sujeição não irá significar subordinação indevida, já que o magistrado não estaria subordinado a ministros e desembargadores, mas, sim, a tribunais, que têm a função de conferir unidade à interpretação do direito (aqui se admite a interpretação feita de forma adequada, hermeneuticamente falando).

O que se pretende então, importante destacar, não é a construção de uma defesa desse sistema de precedentes brasileiro, ou do que se chama de sistema de precedentes. Há ainda grandes reservas com relação a ele, principalmente porque não veio precedido de uma discussão adequada sobre a construção da decisão judicial, o que gera, com o perdão do neologismo indelicado, uma “jurisimprudência” brasileira[13].

Entretanto, imaginando-se um sistema ideal, em que decisões judiciais são corretamente construídas, com respeito ao contraditório, com magistrados sendo obrigados a responder aos argumentos e provas trazidos pelas partes de forma completa, sem subterfúgios, lugares-comuns, saídas pela tangente e com a utilização de frases feitas sem sentido algum, há que se superar essa ideia antiquada de que o juiz pode julgar como quiser, por ser independente.

Busca-se a proteção do magistrado, singularmente considerado, de atos de corrupção, entretanto, ainda que o sistema possa apresentar pontos de desvio ético e legal, não pode ele ser considerado um sistema corrupto. O sistema como construído é, em si, correto. A corrupção é posterior ao sistema e deve ser combatida, mas isso não pode significar que o juiz, em nome dessa proteção contra a corrupção, possa ser um ponto fora da curva, possa ir para além do sistema.

Exemplificando muito grosseiramente: se um magistrado de primeira instância é pressionado por um desembargador para decidir de uma determinada forma, não se está aqui falando de ato jurisdicional deste desembargador e, sim, em um ato de corrupção. Assim sendo, quando o magistrado de primeira instância segue precedente adequadamente construído de tribunais superiores a ele, conferindo unidade à interpretação do direito, não está fazendo nada mais do que se subordinando ao próprio sistema, o que não é ilegal e não fere a sua independência, já que esta é característica do próprio Judiciário do qual faz parte aquele juiz.

Simplificando ainda mais: o juiz é independente de pressões indevidas externas, mas não pode ser independente da lei (lato sensu) e nem mesmo do próprio Poder Judiciário.

Importante frisar, nenhum doutrinador sério que faça a defesa de um sistema de precedentes admite que o juiz seja impossibilitado de discordar da orientação formada no tribunal[14]. As raízes dos precedentes no common law já indicam a possibilidade de ele ser superado, revogado, parcialmente afastado, desde que haja a construção de fundamentação suficiente, que convença a respeito dessa necessidade de não aplicação do precedente a um determinado caso concreto.

Por fim e não menos importante, vale menção às ideias sempre oportunas de Calmon de Passos, para quem o magistrado é servidor e não senhor, já que, e aqui bebendo na fonte grega de pensamento, se o cidadão não puder julgar o seu julgador, cidadão não seria e, sim, servo. Ensina o mestre baiano:

“Dizer-se que a tarefa hermenêutica não é carregada de poder criativo e que não há necessidade de institucionalizar instrumentos que assegurem a correção do processo hermenêutico, que pode ser distorcido por incompetência e por improbidade, é pretender-se negar o que se invoca para legitimar o controle dos atos da autonomia privada e dos agentes investidos nas demais funções do Estado. Daí porque não se pode fugir ao imperativo de que o único sujeito que não pode ser controlado, porque sujeito do poder constituinte, é o corpo político, ou, se quisermos, a multidão, no dizer ainda não de todo claro de Antonio Negri.”[15]

Desse modo, verifica-se que a independência judicial passa ao largo de ser liberdade desmesurada para que o juiz possa atribuir o sentido que quiser ao texto legal, sem considerar, ainda, todo o histórico do que já vinha sendo decidido por seus pares. Isso não significaria independência e, sim, rebeldia e não se pode imaginar que haja julgador rebelde com relação à lei e ao sistema (considerado em tese) de que faz parte. Que haja rebeldia contra a corrupção do sistema, a fim de que se possa promover, também nas decisões judiciais, o direito fundamental à igualdade, de maneira que os cidadãos não sejam reféns das consciências de seus magistrados singularmente considerados.

Vinculado que está ao precedente, já que é parte de um sistema decisório íntegro, o juiz há de considerá-lo no momento de decidir, mas não para simplesmente repeti-lo, como se fora um autômato e nem solenemente desobedecê-lo, como se fora um rebelde que pudesse partir de um grau zero de sentido. É dever do juiz aplicá-lo, se possível, mas, caso entenda que com o caso presente aquela decisão não guarda correspondência, deverá operar com a técnica da distinção, indicando, fundamentadamente, as razões pelas quais entende ser incabível seguir o precedente.

A isso, no common law, se dá o nome de distinguishing, que, nas lições de Neil Duxbury, é o que fazem os juízes quando operam a distinção entre um caso e outro, a fim de verificar se há diferenças factuais consideráveis que possam levar à aplicação insatisfatória do precedente[16].

Note-se que a técnica da distinção é o reforço da independência do Poder Judiciário, pois permite ao juiz contribuir para a evolução do Direito, encontrando a solução adequada para o caso a ele submetido, sem, no entanto, que isso signifique um ato de rebeldia, que possa gerar consequências danosas à segurança jurídica.

A distinção, assim, não irá significar a superação do precedente, já que ele foi afastado por não se enquadrar no caso presente.

E há, também, a possibilidade de superação do precedente, seja parcial, seja totalmente, a partir das técnicas do overriding e do overruling, respectivamente.

Da mesma forma como na distinção, a superação exige que o juiz conheça o precedente e fundamente a nova tomada de posição.

De tudo isso, pode-se concluir que se se quer implantar um sistema de precedentes ou de decisões vinculantes oriundas dos tribunais superiores, é necessário ter clareza sobre o tema da independência judicial, que não há de ser considerada como liberdade interpretativa.

Mas apenas isso é pouco. É necessário dar um passo atrás e repensar a construção da decisão judicial. O precedente imporá sua força vinculante pela autoridade que emanar da qualidade da fundamentação da decisão de onde ele for extraído. Isso quer dizer que somente se poderá considerar apta a formar precedente uma decisão que tenha sido fundamentada de forma analítica e que responda adequadamente às questões jurídicas levantadas no caso.

Mas isso também não basta. Falar-se em vinculação a precedentes exige que, antes, o tribunal produtor dos precedentes compreenda a sua vinculação à lei.

Nesse sentido, toda a construção teórica para afirmar que a independência judicial não significa liberdade interpretativa deve ser precedida da compreensão de que o tribunal superior que tem a função de conferir uniformidade à lei federal infraconstitucional está submetido à lei, está vinculado à lei e não pode atribuir livremente os sentidos a ela no processo interpretativo.

Assim, se o STJ invoca para si o poder de uniformizar o entendimento jurisprudencial sobre a lei federal infraconstitucional, produzindo decisões de onde se podem extrair precedentes que guiarão a interpretação/aplicação do direito no âmbito de todos os tribunais e juízos brasileiros, deve colocar-se como um tribunal vinculado à lei e respeitador dos métodos hermenêutico-interpretativos aceitos pela ciência jurídica, de modo que o produto dos seus serviços jurisdicionais seja legitimado democraticamente.

Sem essa compreensão de vinculação à lei, o que se tem é um tribunal arbitrário que produz decisões vinculantes pela força e sem legitimidade democrática nem mesmo perante os próprios órgãos do Poder Judiciário e muito menos perante a sociedade.

O Superior Tribunal de Justiça não é independente da lei. A lei, ao revés, é, ao mesmo tempo, o seu limite e a fonte de onde brota o seu poder. Se a lei não é compreendida pelo tribunal como um limite, o poder que lhe é atribuído sobreviverá pela força e contribuirá para o aumento da disfuncionalidade do sistema jurisdicional. Nada de bom resultará disso.

 

Referências

CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Jurisimprudência – a independência do juiz frente aos precedentes judiciais como obstáculo à igualdade e à segurança jurídicas. Revista de Processo, vol. 231, maio/2014.

FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. rev. atual. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4ª ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

ALVES, Fernando de Brito. Constituição e participação popular – a construção histórico-discursiva do conteúdo jurídico-político da democracia como direito fundamental. Curitiba: Juruá, 2013.

PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo – reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012.

GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Argumenta, Jacarezinho, n. 2, ano 2002.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso – Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

HELLMAN, Renê Francisco. Teoria da Decisão Judicial: o antecedente do precedente. Revista Eletrônica de Direito Processual da UERJ, Rio de Janeiro, Ano 7, 12º vol, p. 706-721. jul. a dez. de 2013.

DUXBURY, Neil. The nature and authority of the precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

[1] CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Jurisimprudência – a independência do juiz frente aos precedentes judiciais como obstáculo à igualdade e à segurança jurídicas. Revista de Processo, vol. 231, maio/2014, p. 355.

[2] FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. rev. atual. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 500.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 203.

[4] “Ora, um organismo que tem manifestações contraditórias é, indubitavelmente, um organismo doente. Portanto, é preciso não confundir independência dos juízes com ausência de unidade, sob pena de, ao invés de se ter um sistema que racional e isonomicamente distribui justiça, ter-se algo que, mais do que falhar aos fins a que se destina, beira a um manicômio, onde vozes irremediavelmente contrastantes, de forma ilógica e improducente, se digladiam” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 203-204).

[5] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4ª ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 107.

[6] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4ª ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 108.

[7] ALVES, Fernando de Brito. Constituição e participação popular – a construção histórico-discursiva do conteúdo jurídico-político da democracia como direito fundamental. Curitiba: Juruá, 2013, p. 302.

[8] PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo – reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 224-225.

[9] PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo – reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 225.

[10] PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo – reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 225.

[11] GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Argumenta, Jacarezinho, n. 2, ano 2002, p. 61.

[12] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso – Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 45.

[13] Nesse sentido: “O que se vê na prática forense é a má construção do diálogo processual e, consequentemente, da decisão judicial, decorrente da utilização de saídas pouco defensáveis, tais como chamar decisão judicial de jurisprudência dominante e posição isolada de doutrina pacificada, numa frágil tentativa de convencer as partes a respeito do entendimento a que chegou o juiz, em muitos casos, antes mesmo de analisar o caso concreto.” (HELLMAN, Renê Francisco. Teoria da Decisão Judicial: o antecedente do precedente. Revista Eletrônica de Direito Processual da UERJ, Rio de Janeiro, Ano 7, 12º vol, p. 706-721. jul. a dez. de 2013, p. 713.).

[14] “Como é evidente, diante de casos distintos o juiz não precisa decidir de acordo com o tribunal superior ou em conformidade com decisão que anteriormente proferiu. Cabe-lhe, nesta situação, realizar o que o common law conhece por distinguished, isto é, a diferenciação do caso que está para julgamento. Da mesma maneira, o juiz pode deixar de decidir de acordo com decisão que já prolatou, ainda que diante de caso similar, quando tem justificativa para tanto e desde que procedendo à devida fundamentação do motivo pelo qual está alterando a sua primitiva decisão.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 64).

[15] PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo – reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 214.

[16] DUXBURY, Neil. The nature and authority of the precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 113.

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