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O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS – Parte II

para uma análise da função do Superior Tribunal de Justiça

O processo, a jurisdição e a tutela dos direitos

Introdução

Na continuidade das ideias que já foram expostas na primeira parte deste ensaio[1], nesta segunda parte serão debatidas as noções de jurisdição como poder e como serviço, de tutela dos direitos como função da jurisdição e de processo como método de trabalho da jurisdição.

A jurisdição como poder e como serviço

A jurisdição é um dos braços do poder estatal e, como tal, deve sempre estar submetida ao controle democrático, se o que temos é um Estado Democrático de Direito. Jurisdição é poder e processo é limite ao poder. Para Calmon de Passos, a jurisdição “será organizada e terá o perfil ajustado ao modelo de Estado em que se insere”[2], razão pela qual combatia com vigor a ideia de instrumentalidade do processo.

Calmon identificava dois interesses que se confrontam na dimensão jurisdicional: “de um lado, o poder que não suporta sua deslegitimação” e, “de outro lado, os governados”, que buscam “o máximo de previsibilidade das consequências dos comportamentos sociais e o máximo de garantias no processo para que esse objetivo seja alcançado”.[3]

Nessa complicada dinâmica, o ativismo do Judiciário recebia fortes críticas, porque Calmon entendia que este poder só consegue atuar em nível micro, assemelhada a sua atuação “à esmola que antigamente se dava”. “Engana a fome, mas não elimina a mendicância”[4], vaticinava.

O agigantamento da jurisdição, como se vê, é indicativo de uma sociedade que ainda não concluiu o seu processo democrático e faz retornos ao autoritarismo. Nesse contexto, surgem as discussões a respeito da eficiência dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.

Com números assombrosos em mãos, os defensores da eficiência do Poder Judiciário advogam a necessidade de reformas constantes da lei processual, buscam saídas no direito comparado, importam conceitos como o de “precedentes”, sugerem “novos” modelos de processo e de solução de conflitos etc.

E nesse ponto residem grandes problemas. A confusão conceitual entre a jurisdição, que é poder que presta um tipo específico de serviço público (resolução de conflitos e tutela dos direitos), e o processo, que é garantia dos jurisdicionados e não instrumento da jurisdição, faz com que as saídas encontradas para os problemas do Poder Judiciário sejam, no mais das vezes, baseadas em alteração das normas processuais, com a restrição das garantias e o aumento do poder dos magistrados.

Para além das críticas formuladas no âmbito do Direito Processual, Calmon de Passos dirigia sua insurgência com relação também à configuração do próprio Estado brasileiro e à forma como a Constituição de 1988 fez promessas (muitas sem cumprimento até os dias de hoje – e sem perspectivas de cumprimento, inclusive)[5]. Certamente, esses problemas de constituição do Estado acabaram por gerar, aliados a outros tantos fatores, a judicialização dos conflitos e um Poder Judiciário que se vê derrotado diante de milhões de processos judiciais.

A Constituição Federal, em seu art. 37, estabelece os princípios que regem a atividade da Administração Pública. Dentre eles figura a eficiência. Trata-se de um princípio próprio do Direito Administrativo. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.”[6]

Como se vê, exige-se eficiência do agente público e na estruturação dos órgãos públicos, de modo que o serviço seja prestado com o alcance dos melhores resultados possíveis.

Então, enquanto princípio da Administração Pública, a eficiência impõe condutas ao Estado-administrador (no âmbito do Executivo e no do Judiciário) e ao Estado-legislador, no sentido de criar estrutura suficiente para atender às demandas que chegam ao Poder Judiciário. Por outro lado, a eficiência se impõe individualmente a cada um dos magistrados e demais servidores que compõem os quadros do Judiciário, que devem pautar sua atuação na compreensão de que são funcionários públicos e que devem prestar bons serviços.

Nesse contexto, quando se fala em eficiência, é preciso compreender que ela não alcança o campo do processo (garantia) e, sim, a jurisdição (poder), enquanto administradora e prestadora de um serviço público.

O processo há de ser efetivo enquanto garantia contrajurisdicional que é, ou seja, deve ser um limite ao poder do Estado-juiz na relação jurídica processual.

Fincando bases na obra de Manuel Alcântara Saez, Calmon de Passos diferencia os conceitos de efetividade e eficiência: a primeira deve ser entendida “como a habilidade para alcançar objetivos preestabelecidos, enquanto a eficiência se refere à qualidade que produz o serviço melhor, com as mesmas quantidades de recursos empregados”[7]. A partir disso, recusa veementemente a ideia tecnocrática que predomina nas reformas legislativas que buscam conferir maior agilidade aos serviços prestados pelo Poder Judiciário: “descomprometemo-nos com a verdadeira qualidade e procuramos nos justificar despolitizando o que é, por essência, político”[8].

Bem compreendidas essas distinções, é imperativo que não se arraste para dentro do processo um conceito que não lhe pertence. Da mesma forma, não se pode trazer para o âmbito do Poder Judiciário, um ramo do serviço público, uma lógica que foi fabricada para a prestação de serviços privados. Embora pareça atrativa a ideia de eficiência (fazer mais com menos recursos), a sua essência é a da geração de lucro, o que não é visado pela Administração Pública quando presta serviços essenciais como os de jurisdição.

A “eficientização” do Poder Judiciário pode oferecer sérios riscos às garantias processuais, notadamente quando se confundem os conceitos de processo e de jurisdição ou quando se coloca o processo a serviço da jurisdição, como um meio de efetivação de direitos materiais pura e simplesmente.

 

A tutela dos direitos como função da jurisdição e o processo como método de trabalho

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira desenvolve a noção de direito de tutela, que se constitui em um “direito fundamental frente ao Estado para ser protegido da intervenção de terceiros”, “para que este realize ações positivas fáticas ou normativas, que tenham como objeto a delimitação das esferas dos sujeitos jurídicos de igual hierarquia como também a imponibilidade e a imposição dessa demarcação”[9].

E nessa linha, o professor gaúcho segue para incorporar o que chama de “constitucionalização do direito ao processo e à jurisdição” ao denominado direito fundamental de efetividade e de processo justo, para justificar que o processo efetivo implica num resultado: “aspecto que ressalta o nexo teleológico fundamental entre o ‘agir em juízo’ e a ‘tutela’ jurisdicional (efetiva) do direito afirmado, ao final reconhecido”.[10]

Disso tudo, vê-se que ainda é forte na construção de Alvaro de Oliveira aquela noção instrumentalista de Cândido Dinamarco. O processo segue sendo visto como meio para tornar eficaz o direito material e, embora seja reconhecida a existência de garantias processuais, elas acabam por ceder diante do conceito de processo justo, que seria aquele processo em que o direito material é efetivado.

As garantias processuais não são vistas em si mesmas, elas somente fazem sentido, nessa construção teórica, se estiverem a serviço do direito material (efetividade da tutela). A finalidade do processo seria efetivar o direito material.

Entretanto, isso somente é possível quando se confundem os conceitos de jurisdição e processo. Não é do processo a função de efetivar o direito material, essa função é da jurisdição.

O Estado-juiz exerce um poder, a jurisdição. Este poder tem limites, que são fixados pelo processo. O exercício da jurisdição, ao mesmo tempo, implica na prestação de um serviço público, que é o de resolver conflitos e tutelar os direitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Esse serviço é do Poder Judiciário, que não o prestará de qualquer modo, havendo um método de trabalho imposto pelas normas processuais, que, ao mesmo tempo, guiam a atuação do Estado-juiz e restringem o seu arbítrio, servindo como um escudo em favor dos jurisdicionados.

O processo, então, não é do Estado-juiz e não serve como instrumento para o exercício do seu poder e nem como meio de prestação do seu serviço. O processo (garantia do devido processo legal) é estabelecido em favor dos jurisdicionados, de modo a limitar o poder que o ordenamento conferiu ao Estado-juiz. É dizer: O Judiciário exercerá seu poder para de resolver conflitos e tutelar direitos, mas não o fará de qualquer modo e nem de forma ilimitada. Sua atuação para atingir esses objetivos (que são da jurisdição), será guiada pelas normas processuais, que limitarão o exercício do poder durante a prestação do serviço jurisdicional.

Com isso, as garantias processuais protegem os jurisdicionados de eventuais abusos do poder, ainda que não intencionais, a fim de que a atuação desse poder seja democrática.

Não fossem esses limites, a jurisdição ainda assim poderia resolver conflitos e tutelar os direitos materiais, mas o faria de forma autoritária, o que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.

Ou seja, a jurisdição, a resolução dos conflitos e a tutela dos direitos materiais podem existir sem as garantias processuais. E disso decorre a importância da separação entre esses conceitos. Nesse contexto, o devido processo legal é garantia ao jurisdicionado de exercício democrático do poder jurisdicional, ao mesmo tempo em que se configura como um método de trabalho para a jurisdição e não como um instrumento para que ela atinja seus objetivos.

Os objetivos ou escopos do processo estão sempre vinculados à limitação do poder estatal.

Os objetivos ou escopos da jurisdição são outros: resolver conflitos e tutelar os direitos.

São importantes os escopos da jurisdição e isso é inegável. Entretanto, considerá-los mais importantes do que os objetivos garantísticos do processo é um equívoco, pois isso equivale a dotar o Estado-juiz de um poder exacerbado, que acaba por inviabilizar a essência mesma da garantia fundamental do devido processo legal.

O que há nessa relação entre os objetivos do processo e os escopos da jurisdição é justamente uma necessária tensão. A garantia do devido processo legal serve para impor barreiras ao exercício da jurisdição e isso gera um desagrado em quem exerce o poder. Se isso ocorre, atingiu-se o objetivo da norma processual.

Dar ao detentor do poder a possibilidade de moldar a norma processual para adequá-la aos escopos da jurisdição é eliminar o caráter de barreira da garantia constitucional do devido processo legal. Se ela deixa de ser barreira de contenção, perde a natureza de garantia, deixando de ser aquilo que a Constituição previu que fosse.

Ao Estado-juiz não se dá a prerrogativa de moldar o método de trabalho. O processo é um “como fazer” estabelecido pela lei e a atuação processual da jurisdição deve se submeter a ele, de maneira que o seu poder seja exercido de forma contida e que o serviço prestado esteja de acordo com as imposições do Estado Democrático de Direito.

O estabelecimento dessas premissas é fundamental para que se possa compreender o tema central deste ensaio, que será objeto de apresentação na terceira e última parte, no próximo texto desta coluna: qual a função do Superior Tribunal de Justiça?

[1] Disponível aqui: https://www.contraditor.com/o-processo-a-jurisdicao-e-a-tutela-dos-direitos/

[2] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 60.

[3] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 62.

[4] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 63.

[5] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Reforma do Poder Judiciário. In: ___. Ensaios e artigos, vol. I. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 484.

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 83.

[7] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 205.

[8] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A função jurisdicional. In: ___. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 206.

[9] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 83.

[10] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 84.

Autor

  • Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG; Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Processual do STJ na UEPG; Doutorando em Direito pela UFPR; Mestre em Ciência Jurídica pela UENP; Autor dos Comentários ao Código de Processo Civil pela Editora Juruá; Advogado.

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