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52. AINDA E SEMPRE A PROVA DE OFÍCIO

O SEPULTAMENTO DOS PODERES INSTRUTÓRIOS SUPLETIVOS NO CPC

  1. Considerações iniciais

Tema que sempre desperta alguma polêmica é o da (in)compatibilidade dos poderes instrutórios oficiosos do Estado-juiz com a garantia da imparcialidade (e poderia dizer, da impartialidade). A grande pergunta é: a garantia da imparcialidade é violada quando o juiz determina a produção de provas de ofício?

A jurisprudência, muito por força dos permissivos legais, é bastante concessiva aos poderes instrutórios oficiosos do juiz. A doutrina não costuma tratá-lo no plano da processualística, mas da procedimentalística, âmbito em que se nota disputa de intensidade variada: o desacordo é intenso nas obras de procedimento penal, pouco presente nas de procedimento civil e praticamente inexistente nas de procedimento do trabalho, v. g. E prevalece, sobretudo nas de procedimento civil, o entendimento de que o Estado-juiz possui poderes instrutórios oficiosos supletivos: finda a instrução das provas requeridas pelas partes e remanescendo a dúvida, o juiz pode determinar a complementação da instrução ex officio.

Estou com os poucos que entendem que os poderes instrutórios são sempre incompatíveis com as garantias da imparcialidade (e, antes, da impartialidade) – seja qual for o procedimento, a natureza do direito discutido ou a condição dos sujeitos envolvidos –, donde inconstitucionais. Todavia, aqui não pretendo levantar os fundamentos do debate, confrontar os posicionamentos divergentes e apontar qual está correto e o porquê. Almejo algo bastante mais singelo: demonstrar que a defesa dos poderes instrutórios oficiosos do juiz em caráter supletivo é, pelo menos em boa medida, incompatível com o cpc em vigor.

  1. A eficácia estabilizatória da decisão de organização do processo

Ponto festejado do cpc é a disciplina (mais ou menos detalhada) da fase de saneamento e organização do processo. De acordo com o art. 357, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: I – resolver as questões processuais pendentes, se houver; II – delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III – definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; IV – delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; V – designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.

Duas inovações – pelo menos no plano do direito positivo – relevantes para este ensaio estão nos §§ 1º e 2º do precitado dispositivo. Nos termos do § 1º, realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável. E de acordo com o § 2º, as partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos ii e iv, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz. Como se vê, toda decisão sobre o saneamento e a organização do processo, tanto a adjudicada (§ 1º) quanto a convencionada (§ 2º), se torna estável e vincula as partes e o juiz.

Mas o que isso significa?

Em termos lógicos, significa que as únicas questões fático-jurídicas e provas que podem ser inseridas na instrução – e, a fortiori, consideradas no julgamento – são aquelas selecionadas na decisão de saneamento e organização. Não se admitirá que durante a instrução, ou depois dela, conclusos os autos para sentença, uma parte ou mesmo o juiz suscite o exame de outras questões fático-jurídicas ou a produção de outros meios de provas que poderiam ter sido anteriormente inseridas na decisão de saneamento e organização, mas que, por qualquer razão, não foram (v. g. as partes não requereram, ou requereram e foram indeferidas).

Retenha-se o ponto, para fins de esclarecimento: não estou considerando os meios de prova novos (i. é, prova só surgida ou justificadamente descoberta depois da decisão de saneamento e organização) nem as questões de direito cognoscíveis ex officio “a qualquer tempo e grau de jurisdição” (v. g. art. 485, § 3º, cpc). Não nego a relevância teórico-prática de definir se esses assuntos são apanhados (ou não) pela estabilidade em liça, mas nada disso é objeto deste texto.

Minha análise se limita ao seguinte: a estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do cpc em relação às provas que poderiam ter sido inseridas na decisão de saneamento e organização, mas não foram. Ao menos nesses limites, tirante eventual inconstitucionalidade dos dispositivos – que, antecipo, não diviso –, não há outra solução lógica: se a decisão de saneamento e organização especifica os meios de prova e ela se estabiliza, então só serão produzidas – e, a fortiori, consideradas no julgamento – aquelas especificadas na decisão de saneamento e organização – e efetivamente produzidas na fase de instrução, o que pode acabar não ocorrendo, v. g., porque a parte não apresentou o rol de testemunhas, não providenciou a intimação delas, não depositou os honorários do perito etc.

O juiz terá de decidir apenas com base no material fático-jurídico e probatório selecionado na decisão de saneamento e organização e efetivamente produzido na instrução, seja qual for o cenário. Se em face delas só for possível aplicar as regras de ônus da prova (cpc, art. 373, i e ii), que seja. Objetivamente, é a razão de ser da estabilização da decisão de saneamento e organização. Dentro dos limites aqui traçados, uma solução flexibilizadora rompe a lógica estabilizatória.

Não convence o argumento de que, não podendo o juiz prever o insucesso da atividade probatória, poderia, remanescendo a dúvida ao cabo a instrução, determinar a produção de mais ou outros meios de prova de ofício. Ora, as partes tampouco podem prever o resultado da instrução e mesmo assim a decisão de saneamento e organização se estabiliza para elas. Tratando-se de um risco comum – na verdade, o risco é apenas das partes, pois o resultado do julgamento incidirá sobre a sua esfera jurídica, não da do Estado-juiz –, seus efeitos devem ser igualmente distribuídos: pelo menos nos limites acima referidos, a estabilização impede a complementação da instrução, quer por iniciativa das partes, quer por iniciativa do Estado-juiz. A alternativa é dizer que não impede nenhum deles. Mas isso demanda a demonstração da inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 357 do cpc – solução que não me parece possível e que, de fato, não foi feita consistentemente por ninguém.

  1. Considerações finais

Em termos lógicos – e apenas lógicos! – é possível afirmar a constitucionalidade tanto dos poderes instrutórios quanto da estabilização da decisão de saneamento e organização. Para tanto, é necessário observar o seguinte:

(i) o juiz tem poderes instrutórios temporalmente ilimitados e a estabilização da decisão de saneamento e organização atinge apenas as partes: nesse caso, o juiz pode determinar a produção de meios de prova a qualquer tempo, logo não é alcançado pela estabilização da decisão de saneamento e organização no que diz respeito à seleção das provas; mas as partes são;

(ii) o juiz tem poderes instrutórios apenas em caráter supletivo e a estabilização da decisão de saneamento atinge apenas as partes: nesse caso, o juiz só pode determinar a produção de meios de prova após o insucesso da instrução, logo, sendo posterior à decisão de saneamento e organização, não é alcançado pela estabilização; mas as partes são;

(iii) o juiz tem poderes instrutórios concorrentes com os das partes e a estabilização da decisão de saneamento e organização atinge a ambos: nesse caso, juiz e partes se submetem aos mesmos limites, e, consequentemente, exercem suas competências instrutórias até a decisão de saneamento e organização, a partir da qual todos são indistintamente alcançados pela estabilização.

A lógica é relevante para conferir coerência interna aos nossos discursos, mas não exaure nem substitui o direito. Soluções logicamente válidas não necessariamente correspondem a soluções juridicamente válidas. Nesse tema, estamos vinculados à especificidade do direito positivo: a estabilização da decisão de saneamento e organização vincula as partes e o juiz (§§ 1º e 2º do art. 357 do cpc).

Identificadas as balizas do direito positivo, retomamos a lógica: precisam se acertar com ela os que reconhecem a constitucionalidade tanto dos poderes instrutórios apenas em caráter supletivo quanto da estabilização da decisão de saneamento e organização tal como lançada no cpc, isto é, igualmente para as partes e para o juiz. A coerência exige que se defenda uma coisa ou outra.

Apenas com contradição se pode defender as duas coisas. Afirmar a constitucionalidade dos poderes instrutórios apenas em caráter supletivo é ter como premissa que a decisão de saneamento e organização, no que concerne à definição dos meios de prova, não se estabiliza em relação ao juiz. Por outro lado, afirmar a constitucionalidade da estabilização da decisão de saneamento e organização, no que concerne à definição dos meios de prova tanto para as partes quanto para o juiz, é ter por premissa que, pelo menos em relação às provas disponíveis ao tempo da decisão de saneamento e organização e que não foram selecionadas, o juiz não possui poderes instrutórios apenas em caráter supletivo. Tertium non datur.

Destarte, os autores que defendem os poderes instrutórios oficiosos do juiz apenas em caráter supletivo têm duas opções juridicamente válidas: (i) insistir que o juiz tem poderes instrutórios oficiosos apenas em caráter supletivo, o que os obrigará defender a inconstitucionalidade da estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do cpc, em relação ao juiz; ou (ii) reconhecer a constitucionalidade da estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do cpc, renunciando à tese dos poderes instrutórios oficiosos do Estado-juiz apenas em caráter supletivo.

Se optarem por (ii), terão duas alternativas: (ii.1) defender que o juiz tem poderes instrutórios concorrentemente com as partes, sujeito à estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do cpc – solução que daria alguma sobrevida ao art. 370, CPC, e aos seus correlatos nas demais legislações procedimentais; ou (ii.2) concluir que o Estado-juiz não tem poderes instrutórios oficiosos. Se optarem por (ii.1), precisarão rever profundamente seus fundamentos para a defesa dos poderes instrutórios oficiosos (ainda será possível?). Se optarem por (ii.2), serão muito bem-vindos a este lado hoje ainda minoritário acerca do tema.

Autor

  • Mestre em direito processual pela Universidade Federal do Espírito Santo. Conselheiro da Associação Brasileira de Direito Processual. Parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Direito Processual. Professor do curso de direito das Faculdades Integradas de Aracruz-ES. Advogado.

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