O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS: PARA UMA ANÁLISE DA FUNÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Parte III

O PROCESSO, A JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS parte III

Introdução

Chegamos agora à terceira e última parte deste ensaio a respeito do processo, da jurisdição e da tutela dos direitos, oportunidade em que serão analisadas as funções recursal e de uniformização da interpretação sobre o direito infraconstitucional que se atribuem ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Na primeira parte, tratou-se da necessidade de superação da noção de processo como instrumento da jurisdição[1], enquanto que na segunda foram debatidas as noções de jurisdição como poder e como serviço, de tutela dos direitos como função da jurisdição e de processo como método de trabalho da jurisdição[2]. Tudo isso para que se pudesse, nesta parte final, de forma mais objetiva, identificar o papel que o STJ desempenha no sistema jurisdicional brasileiro.

 

A função recursal do STJ

A Constituição Federal, em seu artigo 105, estabelece as competências do Superior Tribunal de Justiça. O inciso I dispõe sobre a competência originária do tribunal para processamento e julgamento de ações e de conflitos de competência.

O inciso II dispõe sobre a competência recursal ordinária do STJ. O recurso ordinário está para o STJ como a apelação está para os tribunais estaduais e regionais: “É recurso de forma livre, podendo ser nele analisadas questões de fato (provas) e questões de direito”[3].

Já o inciso III disciplina sobre a competência recursal extraordinária do STJ, quando estabelece as hipóteses de cabimento do recurso especial.

A lei federal infraconstitucional também estabelece a respeito de recursos que também são cabíveis para o STJ. É o caso do agravo interno, previsto no art. 1.021 do CPC/2015, a ser interposto em face de decisão monocrática do relator, para oportunizar a análise colegiada da questão. Assim também o art. 1.022 do CPC/2015, que trata do recurso de embargos de declaração e do art. 1.042 do CPC/2015, que disciplina sobre o agravo em recurso especial.

Ao julgar tais recursos, o STJ exerce a sua função recursal que é múltipla e diversificada, como se pode ver a partir das hipóteses recursais acima elencadas.

A grande questão que se coloca diante da função recursal do STJ diz respeito em essência ao recurso especial, dada a sua natureza extraordinária. Para Flavio Cheim Jorge, os recursos dessa natureza, “por tutelarem o direito objetivo, são considerados recursos de estrito direito ou mesmo excepcionais. Não buscam a correção da ‘injustiça’ da decisão. Visam, tão somente, averiguar se a lei foi corretamente aplicada ao caso vertente”[4].

Nessa linha, o STJ, tribunal criado pela Constituição Federal de 1988 para desafogar os escaninhos do STF, passou a padecer do mesmo mal daquela corte: a quantidade de processos.

Se a Constituição Federal estabelece uma série de competências legislativas para a União, como consequência tem-se uma produção massiva de textos legais federais, que, por sua vez, são interpretados nos âmbitos específicos da Justiça Comum Estadual e da Justiça Comum Federal, de onde partem os recursos especiais dirigidos ao STJ, para que este exerça as suas funções constitucionais de preservação da integridade do direito federal infraconstitucional e da promoção da uniformidade da interpretação.

O recurso ao STJ encontra-se no âmbito da garantia ao devido processo legal. Ou seja, cumpridos os requisitos formais, de cabimento recursal, tem a parte direito de acessar a jurisdição no âmbito extraordinário do STJ, a fim de que este desempenhe a sua função de julgar recursos.

O recurso, com isso, tem uma função voltada aos jurisdicionados e não à jurisdição. Recurso, nesse caso, é mecanismo de acesso a uma instância superior, para levar a ela a insurgência da parte. É dizer, não é do recurso a função de uniformizar o entendimento sobre o direito federal infraconstitucional e nem de preservar a sua integridade. Essas são funções da jurisdição.

E isso precisa ser dito claramente, porque uma afirmação diferente dessa pode gerar uma série de conclusões prejudiciais ao direito de recorrer.

Quando se compreende que o recurso é um mero mecanismo para que o STJ uniformize entendimentos e preserve a integridade do direito federal, faz-se letra morta do próprio texto constitucional, que impõe ao STJ a competência de julgar as causas decididas nos tribunais de instância inferior naquelas hipóteses do art. 102, III.

O recurso, naquelas hipóteses, é direito da parte. A consequência da sua interposição, cumpridos os requisitos formais de admissibilidade, é o dever de julgamento pelo tribunal competente. Desse modo, o tribunal exerce sua função (presta seu serviço) recursal. Como decorrência do exercício dessa função é que se tem, em tese, a preservação da integridade e a uniformização da interpretação sobre o direito federal infraconstitucional.

Em resumo: o recurso especial não é mecanismo para o STJ e, sim, direito/garantia do jurisdicionado para acessar o tribunal e impor a ele o dever de julgamento. Isso faz concluir que, não pertencendo o recurso especial ao tribunal, não pode ser ele encarado como algo à sua disposição, o que impede, principalmente, a criação de filtros recursais fora daqueles casos previstos na lei e a manipulação do trâmite recursal com vistas tão somente ao estabelecimento de teses vinculantes.

E isso nos leva à segunda função do tribunal.

 

O STJ como tribunal de uniformização da interpretação

Como se viu anteriormente, o STJ tem também a função de uniformizar a interpretação dada pelos tribunais brasileiros a respeito do direito federal infraconstitucional. E isso conclui-se a partir da forma como a Constituição Federal estruturou o sistema judiciário brasileiro e estabeleceu as competências do STJ.

A partir da noção de que ao STJ cabe uniformizar a interpretação sobre o direito federal, tem-se uma abertura para aqueles que buscam oferecer saídas voltadas para a redução do acervo de processos no tribunal.

É muito comum que se ouça falar do STJ como uma “corte suprema” ou uma “corte de precedentes”, que produz provimentos com caráter vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário.

Daniel Mitidiero, por exemplo, fincado na ideia de processo como instrumento para a tutela dos direitos, defende que se abandone a noção de STJ como “Corte Superior” e, em seu lugar, seja erigida a ideia de STJ como “Corte Suprema”. O objetivo dessa Corte seria “orientar a aplicação do Direito mediante a justa interpretação da ordem jurídica, sendo o caso concreto apenas um pretexto para que essa possa formar precedentes[5].

Na mesma linha, Luiz Guilherme Marinoni advoga a tese da necessidade de superação da ideia de uma Corte que faça o controle da legalidade ou da correção das decisões, com o advento da noção de uma Corte de interpretação, que “naturalmente é uma Corte de Precedentes”[6].

Tanto em Marinoni quanto em Mitidiero, percebe-se uma preocupação com a racionalização do sistema. A defesa da ideia de cortes supremas é calcada na busca pela adequada tutela jurisdicional dos direitos, que acaba por ser prejudicada pela quantidade de feitos que chegam ao STJ e impossibilitam que o tribunal, com qualidade, desempenhe a sua função.

São preocupações legítimas.

Entretanto, como se viu nos textos da primeira e da segunda parte deste ensaio, há uma confusão entre os conceitos de processo e jurisdição, que acaba por prejudicar a exata compreensão do problema e, por consequência, turva a visão sobre as possíveis soluções.

O STJ, órgão jurisdicional, deve prestar seus serviços de forma adequada e eficiente. As normas processuais, e dentre elas enquadram-se as normas relativas aos recursos, servem como limite para a atuação do órgão jurisdicional, geram direitos e estabelecem garantias em favor dos jurisdicionados.

Dessa maneira, seja como um tribunal de controle de legalidade, seja como um tribunal que produz precedentes, o STJ não pode ser encarado como uma corte capaz de instituir filtros recursais que não estejam previstos na lei e de decidir sem considerar aspectos do caso, apenas para a produção de tese de natureza vinculante.

Ainda que fosse uma corte suprema, o caso não poderia ser um mero pretexto para a construção do precedente. O caso é o ponto central para a construção da decisão judicial. E o caso é fator importantíssimo para a interpretação do precedente, pois não há como encontrar os fundamentos determinantes de um precedente sem bem compreender o conflito que deu origem àquela decisão.

O caso vincula o julgamento da corte, estabelece balizas fáticas muito claras que não podem ser ultrapassadas.

A incompreensão da importância do caso e a deturpação da noção de precedente acabam por engrandecer o poder do tribunal, que passa a ser impossível de controlar, já que é dele a prerrogativa de dar a última palavra sobre a interpretação do texto legal infraconstitucional e, ao fim e ao cabo, resulta na própria deslegitimação democrática da corte, desapegada que está da sua função constitucional, instituída no art. 105, III: julgar as causas.

E nessa linha, considerando que é do STJ a prerrogativa de dar a última palavra sobre o direito federal infraconstitucional, é de suma importância que se reconheça a ideia de processo como garantia do jurisdicionado e de limite ao poder jurisdicional, pois as regras processuais são instituídas por lei federal infraconstitucional, aquelas mesmas a quem o STJ “atribui sentido”.

Ao não reconhecer o processo como aquilo que a Constituição estabelece que é (uma garantia) e ter a prerrogativa de dar a última palavra sobre a interpretação das normas processuais infraconstitucionais, o STJ passa a desempenhar poder, de certa forma, incontrolável, pois se o processo é visto como um instrumento da jurisdição, o tribunal passa a poder, inclusive, deturpar o conceito das garantias processuais e diminuir seu âmbito de incidência. É o que vem ocorrendo historicamente, por exemplo, com a garantia da fundamentação das decisões judiciais.

Mais amplitude ganha esse poder na medida em que se reconhece que este mesmo tribunal tem a competência de produzir provimentos vinculantes, por meio das teses que edita.

É sempre bom frisar que a tese é consequência do julgamento da causa. Não há tese sem causa. Quando a causa é desconsiderada, a pretexto de se instituir tese que oriente ou vincule a interpretação da norma federal infraconstitucional, o tribunal não presta adequadamente os seus serviços jurisdicionais e exerce o seu poder de forma arbitrária, fazendo letra morta das normas processuais que deveriam limitá-lo.

Para além disso, essa compreensão é autoritária na medida em que a construção das teses pela corte passa pela desconsideração de tudo aquilo que foi feito nas instâncias inferiores. É como se o STJ tivesse a última palavra, mas também a primeira, o que não reflete a realidade e nem representa uma visão democrática da estruturação do Poder Judiciário.

A causa precisa ser considerada e precisa ser parte fundamental para a construção das teses (e não mero pretexto), pois o STJ tem um dever democrático de levar em conta o trabalho das instâncias jurisdicionais inferiores.

A tese da corte deve ser uma construção de todo o organismo judiciário, mas para que isso ocorra é necessário que sejam bem compreendidas as diferenças entre os conceitos de jurisdição, de processo e de tutela dos direitos, que foi o que se tentou esquadrinhar neste ensaio.

 

Conclusões

Diante disso tudo, conclui-se que: 1) o processo é direito e garantia do jurisdicionado; 2) a jurisdição é poder e serviço públicos; 3) a tutela dos direitos é função da jurisdição e não escopo do processo; 4) o escopo do processo é a limitação do poder jurisdicional, estabelecendo um método de trabalho para o Judiciário; 5) especificamente, como órgão jurisdicional, o STJ tem as suas funções estabelecidas na Constituição, que não se confundem com as funções da norma processual; 6) de natureza processual, o direito ao recurso dado aos jurisdicionados, impõe limites à atuação do tribunal e garante o julgamento sempre que atendidos os requisitos formais estabelecidos na legislação; 7) sendo direito do jurisdicionado, o recurso impõe a análise do caso; 8) o caso não é pretexto para a elaboração da tese e, sim, seu fundamento básico; 9) a tese é consequência do julgamento do caso e produto do trabalho de todo o organismo judiciário, não apenas do STJ; 10) o caso é primordial para interpretação do precedente.

[1] Disponível aqui: https://www.contraditor.com/o-processo-a-jurisdicao-e-a-tutela-dos-direitos/

[2] Disponível aqui: https://www.contraditor.com/o-processo-a-jurisdicao-e-a-tutela-dos-direitos-parte-ii/#_ftn1

[3] NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Constituição Federal Comentada. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1117.

[4] JORGE, Flavio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 55.

[5] MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 53.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 80.

Autor

  • Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG; Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Processual do STJ na UEPG; Doutorando em Direito pela UFPR; Mestre em Ciência Jurídica pela UENP; Autor dos Comentários ao Código de Processo Civil pela Editora Juruá; Advogado.

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