No dia 27 de agosto de 2021 foi publicada a Lei 14.195/2021, fruto da conversão da Medida Provisória 1.040/2021, que empreendeu uma série de mudanças na legislação brasileira com a intenção de promover melhorias no ambiente de negócios no país.
Embora a Medida Provisória não contivesse disposições a respeito de direito processual, durante o processo legislativo de sua conversão, ocorreu o chamado “contrabando legislativo” e foram feitas emendas que alteraram disposições do CPC/2015.
Há alterações no âmbito da citação, dos requisitos para a exibição de documentos e no procedimento de reconhecimento da prescrição intercorrente no processo de execução e na fase de cumprimento de sentença.
A respeito da inconstitucionalidade desse jabuti, já escrevi em outra sede:
“A CF/88, art. 62 disciplina que é cabível a edição de medidas provisórias sempre que houver relevância e urgência e, em seu § 1º, inc. I, alínea «b», proíbe que ela trate de matérias como o direito processual civil. O texto original da referida MP não trazia disposição alterando o CPC/2015, o que somente ocorreu durante a tramitação do processo de conversão em lei da MP na Câmara dos Deputados. E a partir disso já se tem dois pontos que geram preocupação com relação à constitucionalidade das mudanças operadas no CPC/2015 pela referida lei.
O primeiro diz respeito à ausência de urgência para que o tema da «Modernização do Ambiente de Negócios no País» seja disciplinado por meio de medida provisória. Essa medida legislativa colocada à disposição do chefe do Poder Executivo deve ser usada de forma excepcional «e, portanto, deve ser interpretada restritivamente, conforme princípio basilar de hermenêutica» (NERY JR.; ABBOUD, 2017, p. 491). O tema disciplinado pela medida provisória, embora relevante, poderia ser objeto do regular processo legislativo, não havendo a urgência necessária para que fosse regulado por meio de instituto excepcional.
O segundo ponto diz respeito ao processo de conversão da MP em Lei. Para Clèmerson Merlin Clève, embora seja possível e legítimo, há limites ao poder dado ao legislador no processo de conversão da medida provisória em lei: «Observados certos limites, ao Legislativo é dado modificar a medida provisória, adicionando, modificando ou suprimindo dispositivos» (CLÈVE, 2000, p. 222).
Tem sido comum a inserção dos chamados «jabutis», seja em projetos de lei, seja em medidas provisórias em rito de conversão. Trata-se de artimanha legislativa que implica na inclusão de temas diversos em textos projetados que, em princípio, não buscavam disciplinar sobre aquilo. No caso da inserção de «jabutis» no texto de medidas provisórias, a questão ganha contornos mais graves. Se a própria Constituição veda que medidas provisórias versem sobre determinados temas, como direito processual, por exemplo, é evidente que não se pode, no processo de sua conversão em lei, incluir-se disposição que verse sobre essa matéria. Além disso, a Resolução 01/2002 do Congresso Nacional, em seu art. 4º, § 4º, veda «a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar».
A MP 1.040/2021 destinava-se a tratar dos seguintes temas: «a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente». As emendas realizadas durante a tramitação na Câmara dos Deputados foram além e estabeleceram normas de natureza processual.
E nem valeria, no caso, o argumento que diferencia normas de natureza processual das normas de natureza procedimental, para dizer que seria possível estabelecer a partir de medida provisória estas e não aquelas. Quando a doutrina diferencia umas das outras, é comum que diga que normas processuais são aquelas que tratam de direitos e deveres dos sujeitos no processo, enquanto que procedimentais são aquelas que tratam dos atos em si. E não vale o argumento nesse caso, pois a primeira modificação que se faz do CPC/2015 diz justamente respeito aos deveres dos sujeitos processuais, com a inclusão de novo inciso no CPC/2015, art. 77.
Outras modificações dizem respeito à citação – ato processual que é umbilicalmente ligado à garantia fundamental do contraditório – do que se conclui ser inafastável da noção de norma processual, e à prescrição intercorrente, modificando de forma consistente o CPC/2015, art. 921 e também estabelecendo normas de natureza processual e não apenas procedimental.
(…)
Andou mal o legislador ao incorporar emendas ao texto da medida provisória que não se relacionam diretamente com o seu tema originário e, mais, que modificam regras gerais estabelecidas pelo CPC/2015 e que afetam não somente as empresas, mas todo tipo de pessoa que possa figurar como parte no processo judicial. Se a MP 1.040/2021 tinha a intenção de promover maior segurança jurídica, a forma da sua conversão em lei e o conteúdo da lei que dela resultou, certamente, ao menos no âmbito do direito processual civil, gerarão mais instabilidade, tendo em vista as problemáticas relativas à inconstitucionalidade do texto final.”[1]
O Supremo Tribunal Federal já enfrentou o tema da inserção de conteúdos estranhos ao inicialmente tratado pela medida provisória, por considerar haver violação ao devido processo legislativo, já que o procedimento de conversão da medida provisória é mais expedito e, por isso, diferente do procedimento de tramitação de um regular projeto de lei. Nesse sentido:
“Direito constitucional. Controle de constitucionalidade. Emenda parlamentar em projeto de conversão de medida provisória em lei. Conteúdo temático distinto daquele originário da medida provisória. Prática em desacordo com o princípio democrático e com o devido processo legal (devido processo legislativo).
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- Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (CF/88, art. 1º, caput, parágrafo único, CF/88, art. 2º, caput, CF/88, art. 5º, caput, e LI), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.
- Em atenção ao princípio da segurança jurídica (CF/88, art. 1º e CF/88, art. 5º, XXXVI), mantém-se hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática promulgadas até a data do presente julgamento, inclusive aquela impugnada nesta ação.
- Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente por maioria de votos.”[2]
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Estabelecida essa premissa da inconstitucionalidade, convém que se analise uma das modificações empreendidas pela nova lei e que diz respeito ao regramento da prescrição intercorrente no CPC/2015. Neste texto, a abordagem será do disposto no art. 921/CPC, em seus §§ 5º e 6º, que assim foram concebidos:
§5º O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes.
§6º A alegação de nulidade quanto ao procedimento previsto neste artigo somente será conhecida caso demonstrada a ocorrência de efetivo prejuízo, que será presumido apenas em caso de inexistência da intimação de que trata o § 4º deste artigo.
A novidade no § 5º foi a inclusão da parte final, permitindo a extinção do processo sem sucumbência para qualquer das partes quando constatada a prescrição intercorrente. O § 6º é uma completa inovação e importa analisá-lo juntamente com o anterior em razão da complementaridade entre as disposições.
Basicamente, reconhece-se a possibilidade de o juiz, de ofício, constatar a prescrição intercorrente e declará-la, desde que assegurado às partes o direito ao contraditório, fazendo valer a regra do CPC/2015, art. 10, que proíbe o juiz de decidir sem dar às partes a oportunidade de manifestação, ainda que se trate de questão que possa ser conhecida de ofício.
Entretanto, o § 6º contemporiza a situação ao disciplinar que eventuais vícios no procedimento de reconhecimento da prescrição intercorrente somente serão reconhecidos como nulidades processuais se houver comprovação de efetivo prejuízo pela parte que os alegar.
Além disso, estabelece como única hipótese de vício com prejuízo presumível aquela decorrente da falta de intimação do exequente da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. Todos os demais eventuais vícios processuais não terão prejuízo presumido e este terá que ser comprovado para que se possa ter o reconhecimento da nulidade.
Nesse contexto de vícios com prejuízo não presumido incluem-se aqueles casos em que o juiz tenha decretado a prescrição intercorrente sem a prévia oitiva do exequente.
Uma alegação posterior de nulidade da decisão por ofensa ao contraditório não bastaria, pois teria que ser acompanhada de demonstração de prejuízo para a parte exequente. E o prejuízo, talvez, não seja a decretação da prescrição em si. Talvez se exija mais do exequente e aí ele terá que ir além e provar que teria algo a alegar que impedisse a decretação da prescrição, como uma causa interruptiva, por exemplo.
E essa inovação legislativa é contrária a um posicionamento que o Superior Tribunal de Justiça havia firmado no julgamento do seu primeiro Incidente de Assunção de Competência (IAC n. 1/STJ), suscitado no bojo do REsp 1.604.412/SC, julgado em 2018.
Uma das teses firmadas pelo tribunal na ocasião dizia justamente respeito ao contraditório prévio no âmbito do procedimento em que se reconhece a prescrição intercorrente. Para o STJ, “o contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição”[3].
Essa compreensão assumida pelo legislador que modificou o CPC/2015 é calcada na ideia de que não importa a gravidade do vício processual, o que importa é se ele causou prejuízo ao direito material da parte prejudicada.
É a petrificação da noção de que o processo e suas garantias são meros penduricalhos do direito material. Ainda que uma decisão fira o contraditório, que é uma garantia constitucional de natureza fundamental (CF/1988, art. 5º, LV), ela persistirá se a parte a quem o contraditório não foi dado não demonstrar que teve prejuízo para além da seara processual.
Essa compreensão é, em si, inconstitucional, pois reduz direitos e garantias constitucionais a uma categoria inferior a direitos de natureza material.
Dessa maneira, para evitar que a interpretação da lei infraconstitucional fira a ordem constitucional, à disposição do § 6º do art. 921/CPC deve ser dada interpretação conforme a Constituição, afastando-se a ideia de que ferir direitos e garantias processuais constitucionais não se configura, por si só, prejuízo para a parte.
Se não houver atenção ao contraditório prévio, há prejuízo, sim. Há nulidade, sim. Deve, portanto, a decisão ser anulada, abrindo-se prazo para manifestação das partes e, posteriormente, nova decisão ser proferida, enfrentando-se os argumentos que tenham sido produzidos.
Ainda vige o art. 10 do Código de Processo Civil.
Ainda vige o art. 5º, LV da Constituição Federal.
Referências
BRASIL, STF. ADI 5127, Rel. Rosa Weber, Rel. p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/10/2015, DJe 10/05/2016.
BRASIL, STJ. REsp 1.604.412/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, j. em 27/06/2018, DJe 22/08/2018.DUXBURY, Neil. The nature and authority of the precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 77 «in» JuruáDocs n. 210.8281.2266.5982. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-77. Acesso em: 06/09/2021.
[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 77 «in» JuruáDocs n. 210.8281.2266.5982. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-77. Acesso em: 06/09/2021.
[2] BRASIL, STF. ADI 5127, Rel. Rosa Weber, Rel. p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/10/2015, DJe 10/05/2016.
[3] BRASIL, STJ. REsp 1.604.412/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, j. em 27/06/2018, DJe 22/08/2018.
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Parabéns pelo excelente texto, professor!
Fiquei com uma dúvida, de acordo com a nova lei, é preciso apenas decorrer o prazo da prescrição intercorrente ou se soma à inércia do exequente?