O ANO É 2021 E O CARIMBO AINDA É UM PROBLEMA

O ANO É 2021 E O CARIMBO AINDA É UM PROBLEMA

Apesar de todo o avanço tecnológico experimentado pela humanidade e de já haver vários sistemas virtuais para o processamento das ações judiciais, ainda há tribunais no Brasil que trabalham com remanescentes autos em papel.

Para que os autos, nesses casos, possam ser enviados ao STJ, após a interposição de recurso especial, é feita a digitalização por alguma secretaria do tribunal local.

Nesse processo de digitalização, vez ou outra, podem ocorrer problemas de legibilidade, que impactam no juízo de admissibilidade recursal. Foi o que ocorreu recentemente no bojo dos autos do Recurso Especial n. 1.880.778 – PR. Vamos ao caso.

Interposto o recurso especial, feito o prévio juízo de admissibilidade no tribunal local, foi ele recebido e enviado, por meio de autos digitalizados, ao STJ. Lá chegando, foi proferida decisão pela presidência do tribunal, negando seguimento ao recurso, em razão da intempestividade, nos seguintes termos:

“Mediante análise do recurso de FEDERAÇÃO DOS HOSPITAIS E ESTABELECIMENTOS DE SERVIÇOS DE SAÚDE NO ESTADO DO PARANÁ e OUTROS, a data do protocolo do recurso especial está ilegível, não sendo possível verificar a sua tempestividade.

Este Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento jurisprudencial no sentido de que é dever da parte, constatada a ilegibilidade do carimbo de protocolo, providenciar certidão da Secretaria de Protocolo do Tribunal de origem a fim de possibilitar a verificação da tempestividade recursal.

Nesse sentido, os seguintes precedentes: AgInt nos EDcl no REsp 1664579/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe de 09/10/2017; AgInt nos EDcl no AREsp 771.083/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 15/05/2017; e AgRg nos EDcl no AREsp 737.702/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 06/04/2016. (e-STJ fl. 4.559).”

Contra essa decisão monocrática foi interposto agravo interno em que a parte alegou basicamente que “após o protocolo do Recurso, os autos foram digitalizados pela Secretaria do e. Tribunal de origem (v. fl. 4.247 dos autos e-STJ e Doc. 01) que deixou de digitalizar o carimbo comprobatório do protocolo. (…) É evidente, portanto, que o vício que impediu a aferição da tempestividade recursal foi causado pelo próprio Tribunal de origem em momento posterior à interposição do Recurso Especial cujo conhecimento foi negado”, conforme consta do relatório feito pela ministra Nancy Andrighi.

Ao julgar o agravo interno, a Terceira Turma do STJ decidiu que, por não ser legível o protocolo do recurso especial, não seria possível aferir a sua tempestividade, impossibilitando o recebimento do recurso. Além disso, asseverou-se no acórdão que seria dever da parte “providenciar certidão da secretaria ou outro documento equivalente que possibilite a verificação da tempestividade do recurso, fazendo a juntada no ato de interposição do recurso”. E com base nisso, manteve-se a decisão monocrática.

Contra esse acórdão foram opostos embargos de declaração e ao julgá-los a Terceira Turma, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, entendeu por fazer um melhor exame da matéria e reconheceu que a parte juntou certidão emitida pelo tribunal a quo que atestava a tempestividade com as razões de agravo interno, primeira oportunidade em que se manifestou nos autos após a digitalização. Nos termos do voto:

“De fato, o carimbo do protocolo e a digitalização da peça recursal são atos a serem praticados pelo Poder Judiciário. Desse modo, ainda que o advogado da parte diligencie no sentido de verificar a qualidade da digitalização da peça protocolada, a partir desse momento – protocolo -, qualquer comprovação ou manifestação acerca de eventual equívoco na digitalização será posterior ao ato da interposição do recurso: minutos, horas ou dias, mas lógica e cronologicamente posterior.”

Os declaratórios foram acolhidos e, com isso, revistas as decisões anteriores, para considerar tempestivo o recurso especial. O caso concreto foi resolvido, entretanto há questões subjacentes que merecem uma análise mais crítica.

Pelo que se narrou acima, percebe-se a reafirmação constante no STJ de um posicionamento de jurisprudência defensiva, que é verificado sempre que são proferidas decisões que negam seguimento a recursos com base em frágeis argumentos de “desobediência às formalidades”.

As formalidades são importantes, evidentemente. Mas a sua importância no processo está ancorada na ideia de que as formalidades são decorrências das garantias processuais e estas são destinadas às partes, à proteção das partes em face do arbítrio jurisdicional.

A Constituição estabelece o processo como uma garantia das pessoas (CF/1988, art. 5º, LV) e esse tema vem sendo semanalmente objeto de interessantíssimas análises na Coluna Garantismo Processual, aqui no Contraditor. É daí que se parte para compreender que todas as formalidades estabelecidas pela lei processual servem a esse propósito: reduzir o âmbito da discricionariedade judicial e ampliar a proteção das pessoas envolvidas nas relações jurídicas processuais.

Desse modo, as formalidades devem ser vistas não à luz da ideia de processo como instrumento, já que esta ideia deturpa a função mesma das formalidades e as torna trunfos na mão do juiz para decisões arbitrárias como as que foram vistas no caso acima relatado.

As formalidades devem ser lidas à luz da noção de processo como garantia, ou seja, destinadas às partes, para que estas tenham segurança jurídica e sejam blindadas contra o exercício arbitrário do poder jurisdicional. Se, desde o início, no caso narrado anteriormente, tivesse sido empregada a noção de formalidades vistas como garantias para as partes, não se teria essa série de decisões equivocadas a respeito desse que é um tema bastante simplório até.

É curioso que, no intento de bloquear a subida de novos recursos, o STJ tenha que proferir uma decisão monocrática e outros dois acórdãos sobre um tema que não deveria ter qualquer relevância: a legibilidade de um carimbo.

Ora, verificando-se a ilegibilidade e sabendo-se, desde sempre, que a digitalização foi feita por um órgão do Poder Judiciário, bastaria um ato ordinatório emanado do STJ para que o TJPR fizesse nova digitalização daquela folha dos autos físicos ou então emitisse uma certidão de tempestividade recursal e enviasse ao tribunal superior.

O Judiciário tem meios de fazer isso e de forma muito expedita, considerando a comunicação via internet.

Em poucos dias, esse suposto problema de intempestividade seria esclarecido e não haveria necessidade de três decisões, uma monocrática e duas colegiadas, a respeito desse tema.

O que se deu nesse caso – e se repete em inúmeros outros – foi um total desrespeito à ideia de processo como garantia das partes e também à economia processual, princípio tão invocado em decisões judiciais.

Eficiente é o Poder Judiciário quando otimiza o tempo e os recursos financeiros, materiais e humanos à sua disposição. No caso em comento, não houve eficiência. A partir de um simplório erro de digitalização de um carimbo, criou-se uma celeuma que seria facilmente evitada se a noção de eficiência no serviço público tivesse sido aplicada.

Mas o problema é ainda maior. Para reforçar essa noção defensiva em sua jurisprudência, é curioso observar que no caso analisado, o STJ presumiu a intempestividade.

Pela leitura das decisões, fica evidente que o carimbo que atestava a data do protocolo do recurso especial estava ilegível. E como assim o era, não havendo certeza sobre a data em que se deu o protocolo, presumiu-se o pior: o recurso era intempestivo.

De nada valeu para o STJ a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que recebeu o recurso especial e atestou ser ele tempestivo. Ao que parece, a afirmação, pelo desembargador competente para o juízo de admissibilidade prévio, de que o recurso era tempestivo, não tem qualquer relevância para o STJ.

Sabe-se que o juízo de admissibilidade feito pelo tribunal a quo não vincula o tribunal superior. Entretanto, é necessário que haja nos autos elementos concretos que indiquem o erro de julgamento do tribunal local. No caso que se analisa aqui, não havia nos autos qualquer elemento concreto que atestasse o erro do desembargador quando este afirmou ser o recurso especial tempestivo.

Não havia nada de concreto, pois o carimbo estava ilegível. E assim estava por erro do próprio Poder Judiciário. E mais: o erro foi cometido posteriormente ao protocolo do recurso especial, razão pela qual não poderia a parte tê-lo percebido e nem teria ela o dever de comprovar a tempestividade.

Mal comparando, é como se o STJ tivesse, no caso, presumido a má-fé da parte recorrente, ao presumir que o recurso era intempestivo porque o servidor público responsável pela digitalização do carimbo de protocolo do recurso não desempenhou com a eficiência esperada a sua função.

E é bom reforçar: erros assim são passíveis de ocorrer. O maior problema não está aqui em uma digitalização mal feita. O maior problema está em tornar esse que é um equívoco simplório e muito, mas muito fácil de ser resolvido, um problema objeto de discussões e debates em três pronunciamentos de um tribunal superior.

Há soluções no sistema processual para esse tipo de problema. Uma delas é o ato ordinatório sugerido acima. Simples, rápido e eficiente.

Outra, um tanto mais complexa, mas ainda assim menos dispendiosa, está na própria lei processual: CPC/2015, art. 932, parágrafo único: conceder prazo para que a parte corrija eventual defeito formal no recurso antes de considerá-lo inadmissível. Há nesse dispositivo um dever de sanar vícios processuais que é imposto ao relator:

“O dever de sanabilidade dos atos processuais manifesta-se em vários outros dispositivos ao longo do Código. Este, em específico, tem na mira a chamada jurisprudência defensiva e dá às partes o direito de corrigir eventuais vícios formais, impondo ao relator o dever de zelar para que isso ocorra. Dessa forma, se o relator identificar algum vício formal no recurso, deverá abrir o prazo de 5 dias para que a parte recorrente corrija o vício ou complemente o que estiver faltando.”[1]

Bastaria ao tribunal superior cumprir a determinação legal e obedecer ao seu dever de sanar defeitos processuais simples. Assim como não se presume a má-fé, também não se pode presumir a intempestividade. E mais: o desembargador que fez o juízo de admissibilidade no juízo a quo é um servidor público e os seus atos e afirmações presumem-se verdadeiros. Se ele afirmou na decisão que o recurso era tempestivo, não havendo nos autos qualquer informação em sentido contrário, presumir a intempestividade é equívoco sério do STJ.

Não haveria necessidade de tantas laudas e meses de vai-e-vem processual. Bastaria uma linha e o prazo de 5 dias. Simples como tem que ser a um órgão que se quer eficiente.

[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 932 «in» JuruáDocs n. 201.8655.8000.4100. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-932. Acesso em: 20/10/2021.

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Autor

  • Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG; Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Processual do STJ na UEPG; Doutorando em Direito pela UFPR; Mestre em Ciência Jurídica pela UENP; Autor dos Comentários ao Código de Processo Civil pela Editora Juruá; Advogado.

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