- Considerações iniciais
Noutro ensejo[2], já disse que considero os poderes instrutórios do juiz – a rigor, a produção de provas de ofício pelo juiz – inconstitucionais, por violação das garantias da impartialidade e da imparcialidade (podemos pensar em violação, ainda, à igualdade e ao contraditório).
Naquele ensejo, suspendi minha intransigência para tentar contribuir para uma dogmática consistente dessa particular competência judicial. Sustentei que não há como defender que ela seja exercida subsidiariamente, embora esse seja o entendimento amplamente majoritário na doutrina brasileira. Argumentei que não há mais como defender essa possibilidade em relação aos fatos já alegados e aos meios de prova já conhecidos (e também aos preexistentes e injustificadamente desconhecidos) ao tempo da decisão de saneamento e organização, dada a eficácia estabilizatória dos §§ 1º e 2º do art. 357 do cpc. Ofereci uma proposta de marco final para o seu exercício válido à luz do direito positivo.
Retomo o tema para tentar oferecer uma resposta sobre a natureza jurídica dos poderes instrutórios – se dever ou faculdade, e as consequências daí decorrentes. A questão é importante, basicamente, porque, malgrado a importância do tema, a doutrina ora vacila, ora negligencia, ora assume posicionamentos inadvertidos. Essa penúria dogmática justifica o presente ensaio.
Registro que este é um começo de tentativa de resposta. É que essa análise, mesmo que tente ser mais panorâmica que profunda, exige extensão que contraindica a publicação em um só texto nesta coluna. Apenas para dar um exemplo, o tema pode ser encarado em duas frentes: o modo como é tratado pelo stj, de um lado, e pela doutrina, de outro. Ainda não sei em quantos textos o exame será subdividido. Para hoje, selecionei um texto doutrinário segundo o qual os poderes instrutórios são dever do juiz e que esse é o posicionamento do stj acerca do tema. Pretendo demonstrar que os julgados indicados no texto em referência não sustentam essa posição – decerto não em geral.
- Uma interpretação da jurisprudência dostjsobre a natureza dos poderes instrutórios do juiz e as consequências do seu descumprimento
Pode-se antecipar parcialmente as consequências jurídicas decorrentes do não exercício dos poderes instrutórios: se eles forem uma faculdade do juiz, o não exercício não produz nenhum efeito jurídico, pois faculdades são privilégios que o titular tem plena liberdade para exercer ou não, elas não se correlacionam a direitos de outrem[3]; se eles forem um dever do juiz, o não exercício haverá de acarretar alguma(s) consequência(s) jurídica(s). Como o direito positivo não é expresso acerca do ponto, cabe à dogmática jurídica identifica-la(s) consistentemente.
Pois bem. A doutrina parece majoritária no sentido de que os poderes instrutórios do juiz são um dever. Nada obstante, dificilmente se arrolam as consequências do descumprimento desse pretenso dever. Por isso selecionei, para diálogo, o texto de autoria de Luiz Rodrigues Wambier e Evaristo Aragão dos Santos[4]. Diferentemente do que comumente ocorre, os autores defendem abertamente a natureza jurídica dos poderes instrutórios do juiz e arrolam expressamente as consequências que reputam decorrentes do seu descumprimento. Só por descer a essas minúcias o texto já é digno de encômios.
Escrevendo ao tempo do cpc/73, os autores atrelam os poderes instrutórios às ideias de «processo justo», «descoberta da verdade», da «realização da igualdade» etc. e sustentam veementemente que os poderes instrutórios do juiz não são uma faculdade, mas um dever. E aí sustentam que esse poder sempre deve ser exercido quando houver dúvida objetiva, sob pena de cometer ato ilícito, passível de correção, inclusive, por recurso especial. Dizem eles: “em nosso sentir, e independentemente da natureza do bem jurídico postulado (se disponível ou indisponível) sempre que nos autos existam elementos a apontar, objetivamente, no sentido da verossimilhança da versão afirmada por uma das partes (ou da falta dela), a ponto de influenciar de maneira determinante no julgamento da causa, o juiz tem o dever de apura-los de ofício. Caso não o faça, isto é, caso não exercite os poderes que lhe são genericamente fixados no art. 130 [do cpc/73, atual art. 370], cometerá uma ilegalidade” (págs. 161-162). Colacionam decisões do stj que confirmariam essa tese. Por fim, indagam se é possível cogitar de ação rescisória por descumprimento do dever de produzir provar de ofício (p. 160), mas não respondem.
- Uma exclusão prévia: o dever do juiz de indenizar a parte
Antes de verificar se os julgados citados confirmam a tese lançada, analisarei, muito brevemente, outra consequência que, para eles, decorre o descumprimento dos deveres instrutórios: o dever do juiz de indenizar a parte. Segundo afirmam, o dever do juiz de ressarcir os danos decorrentes de recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, de providência que deveria ter sido ordenada de ofício (art. 133, II, cpc/73, atual art. 143, II), incide nos casos de “inação relacionada com o exercício dos poderes genericamente fixados do art. 130 do cpc (ou seja, aparece aí a correlata possibilidade [de] sanção pelo não-exercício do dever)” (p. 160).
Não me parece que isso seja possível. Uma dogmática minimamente rigorosa do art. 143, II, cpc, não pode incluir entre os “atos de ofício” do juiz aqueles para os quais as partes também têm legitimidade. Ora, é mais do que consolidada a lição de que a aquele que causa os próprios prejuízos não pode reclamar reparação de outrem (em responsabilidade civil: «fato exclusivo da vítima»). É precisamente o caso da parte não que requer a produção dos meios de prova que conhecia ou que injustificadamente desconhecia, ônus cujo desatendimento implica em preclusão (art. 357, §§ 1º e 2º, cpc). Se parte, no exercício de sua liberdade, não requereu a produção de determinado meio de prova, não há como punir o juiz que não determinou a sua produção de ofício. Afinal, como punir o juiz por uma inércia que a própria parte poderia romper? Que o juiz seja responsabilizado quando, provocado, queda inerte, pode-se, perfeitamente, cogitar. Mas daí a falar em punição do juiz sempre que ele se omite, é um salto inaceitável. A proposição em liça inseria no âmbito de incidência do art. 133, II, cpc/73 hipótese que ele não disciplinava – e que o atual art. 143, II, cpc, segue não disciplinando.
Quando muito, pode-se cogitar da responsabilidade do advogado pelo dano causado ao cliente em razão de não ter requerido oportunamente a produção de determinado meio de prova, mesmo porque no mais das vezes a parte é juridicamente leiga e não acompanha os desdobramentos do procedimento. Afinal, “o Advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa” (art. 32, eoab). Seja como for, não há que se falar em responsabilidade do juiz in casu (o que seria válido mesmo para o regime do cpc/73, sob o qual foi produzido o texto sob exame).
Dito isso, passo ao que realmente importa a este ensaio.
- Análise dos julgados referidos dostj
Nossos autores argumentam que “sempre que nos autos existam elementos a apontar, objetivamente, no sentido da verossimilhança da versão afirmada por uma das partes (ou da falta dela), a ponto de influenciar de maneira determinante o julgamento da causa, o juiz tem o dever de apurá-los de ofício”. Ou seja, havendo dúvida objetiva e deixando o juiz de cumprir seus deveres instrutórios, “cometerá uma ilegalidade” (p. 161).
O texto aponta que a tese seria corroborada pelos seguintes julgados do STJ: resp 222.445/pr, resp 507.167/sc, agrg no ag 363.969/sp, resp 248.297/sp, resp 822.207/rs, resp 651.294/go, resp 629.312/df e resp 345.436/sp. Vejamos.
No resp 222.445/pr, discutiu-se sobre a “ocorrência ou não de cerceamento de defesa, em razão e ter sido indeferida a realização de exame de DNA, com a qual se pretende provar ser o recorrido pai da autora”. In casu, “o julgado impugnado entendeu pela impossibilidade de realização do exame de DNA, uma vez não requerida em tempo oportuno a sua realização”. O recurso foi provido para “anular o processo a partir da sentença, inclusive, e propiciar a realização da prova genética”. Considerou-se indevido o indeferimento requerimento de produção de prova técnica (exame de dna), embora formulado a destempo. A violação do art. 130, cpc/73, deriva do indeferimento indevido da produção do exame de dna, não do fato de que o juiz deixou de determinar a sua produção de ofício. Impossível dizer se o resultado seria o mesmo se a parte não tivesse requerido a produção do referido meio de prova em primeira instância, suscitando-o ineditamente em grau de apelação. Mas ainda que se conceda ao argumento de que foi reconhecida a violação do art. 130, cpc/73, pelo fato de o juiz ter deixado de exercer seus poderes instrutórios, ou seja, ter descumprido seu dever (e reconheço que não é irrazoável a interpretação, dado que o Relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, lançou os seguintes fundamentos: (i) “ao julgador, no processo civil contemporâneo, é dada a iniciativa probatória”; (ii) “embora quanto ao ponto se pudesse reputar configurada a preclusão para a parte pleitear a prova, o mesmo não se pode dizer em relação ao juiz”; e (iii) é “possível até mesmo a produção de provas em instância recursal ordinária”), deve-se filtrar a decisão à luz do direito positivo. O direito anterior, desde o qual escreveram os autores no texto ora em comento, não contemplava a preclusão para o juiz em matéria probatória, diferentemente do atual em seu já tantas vezes citado regime de estabilização da decisão de saneamento e organização. Esse dado não pode ser desprezado na análise atual do tema. Afinal, se em ação de reconhecimento de paternidade biológica ninguém requer o exame de dna por ocasião da decisão de saneamento e organização e nem o juiz determina, de ofício, a sua produção, a decisão se estabiliza, incidindo a preclusão. Entendimento contrário depende da declaração de inconstitucionalidade do art. 357, §§ 1º e 2º, cpc, ou da sua filtragem (consistente) por alguma técnica de interpretação constitucional, o que ainda não foi feito. Seja como for, mesmo considerando o direito positivo em vigor ao tempo da decisão, não é correto afirmar que essa decisão reconhece que o não exercício dos poderes instrutórios pelo juiz acarreta violação da garantia da ampla defesa.
No resp 507.167/sc, a recorrente, ré em ação civil pública, sustentava “a impossibilidade de realização de prova pericial antes do decurso do prazo à contestação, sob pena de negativa de garantia constitucional da ampla defesa, da subversão processual, da ausência de contraditório e da ocorrência de do prejuízo processual”. A discussão não se refere a eventual ilegalidade pelo não exercício dos poderes instrutórios. Aliás, foi precisamente contra o seu exercício que a parte se insurgiu, considerando-o inadmissível naquele momento processual (antes do fim do prazo de contestação). De todo modo, o Relator, Min. Francisco Peçanha Martins, consignou que “a prova pericial é do juízo e pode ser ordenada de ofício”, o que não autoriza a conclusão de que os poderes instrutórios constituem um dever do juiz. Aliás, o emprego do vocábulo “pode” informa que ali os poderes instrutórios são entendidos como uma faculdade, não um dever, do juiz – o que fica claro, de resto, em decisão citada no voto, a saber, agresp 738.576/df, que referirei adiante. Registro, ainda, que o Relator cita decisão do stf (agr-agr-ar 1538/mg) na qual se entendeu que os poderes instrutórios não se sujeitam à preclusão, podendo o juiz determinar a produção de provas mesmo após o “despacho” saneador. Esse mesmo entendimento encontra óbice no direito positivo atual, como tantas vezes venho reiterando (cpc, art. 357, §§ 1º e 2º).
Nossos autores afirmam, na sequência, que “o que queremos significar talvez seja melhor compreendido a partir de exemplos coletados na jurisprudência do STJ. Em processo no qual se buscava o pagamento de indenização securitária em decorrência de invalidez, considerou-se admissível ter por provado o fato constitutivo do direito do autor (a invalidez) com base no resultado da perícia médica realizada pelo INSS, a qual havia fundamentado a concessão de aposentadoria e nesse segundo processo foi adotada por empréstimo. No entender do STJ, porém, a circunstância de a invalidez ter sido provada pela moléstia de nominada leucopenia (diminuição dos glóbulos brancos, a qual pode ser causada por agentes externos) e, em razão dessa específica circunstância, tornava [i] ‘necessária a realização de [outra] perícia para comprovar a invalidez permanente do segurado’, por força [ii] ‘das peculiaridades que envolvem esse mal, entre elas a de que pode diminuir ou desaparecer quando afastado o fator externo que a determina’. Em razão disso, se entendeu [iii] não apenas que a produção da nova perícia era necessária, mas que a sua não-realização pela deliberada adoção dos resultados da perícia médica do INSS contrariava tanto o art. 130 do CPC quanto o próprio texto constitucional”. Note-se que os autores citam “exemplos coletados na jurisprudência do STJ” com a finalidade de tentar demonstrar que o não exercício dos deveres instrutórios do juiz constitui “uma ilegalidade”, tanto que informam que “em processo [note-se: no singular] no qual se buscava o pagamento de indenização securitária em decorrência de invalidez”, o Tribunal da Cidadania “entendeu não apenas que a produção da nova perícia era necessária, mas que a sua não-realização pela deliberada adoção dos resultados da perícia médica do INSS contrariava tanto o art. 130 do CPC quanto o próprio texto constitucional”. Considerado o contexto, a redação dos autores pode dar a entender que o stj decidiu que naqueles casos o art. 130 do cpc/73 foi violado porque o juiz deixou de determinar exercer seus poderes instrutórios. Não é o que o stj decidiu nos casos que destaquei com [i], [ii] e [iii].
O trecho destacado com [i] refere-se ao agrg no ag 363.969/sp. Colhe-se no voto da Relatora, Min. Nancy Andrighi, que “nesta hipótese particular, o autor recorrente se recusou a se submeter à perícia médica, estando autorizada a conclusão do julgamento pela improcedência do pedido, dadas as particularidades da leucopenia, cujas consequências podem ser atenuadas e até mesmo desaparecem a partir do afastamento do empregado das funções insalubres”. Sua Exa. transcreveu o seguinte trecho do acórdão de origem: “o perito expressamente escreveu que o autor foi clinicamente examinado, não se diagnosticando qualquer entidade nosológica incapacitante, quer parcial, quer total, temporária ou permanente (…) O perito reiterou seu entendimento (…), destacando que inexiste qualquer incapacidade para o trabalho, criticando, tecnicamente, a decisão da autarquia [INSS, que aposentara o autor por invalidez em razão dos fatos narrados na inicial]”. Por considerar que a perícia realizada no inss é insuficiente e em razão de o autor ter se recusado a se submeter à perícia médica, estimou correto o aresto guerreado e negou provimento ao recurso. Como se vê, o stj não reconheceu violação do art. 130, cpc/73, não servindo a decisão como exemplo do suposto entendimento de que o juiz comete ilicitude quando deixa de determinar a produção de provas de ofício. Aliás, nem sequer o recorrente alegou violação do referido dispositivo. Segundo a Relatora, ele apontou “contrariedade ao Decreto-Lei n. 73/66, que dispõe sobre os Sistema Nacional de Seguros Privados, Regula as operações de Seguros e Resseguros; contrariedade à Lei n. 6.367/76, art. 2°, Decreto n. 2.172/97, art. 132, inc. III, Lei n. 8.213/91, Decreto n. 611/92 e Decreto n. 3.048/99, art. 43; negativa de vigência aos arts. 47 e 54, cdc; negativa de vigência aos arts. 1.432, 1.433 e 1.458, cc; negativa de vigência aos arts. 334, inc. I e IV, 364 e 436, do cpc, além de divergência jurisprudencial”. Pretensões que desbordam do tema ora analisado.
O trecho destacado com [ii] refere-se ao resp 248.297/sp. Nesse caso, o juiz de primeira instância entendeu que a concessão de aposentadoria por invalidez pelo inss constitui prova suficiente da invalidez, razão por que indeferiu o requerimento de prova pericial formulado pela seguradora-ré e julgou o pedido autoral procedente antecipadamente. A vencida apelou alegando cerceamento de defesa, o que foi rejeitado, por maioria, pelo tjsp, sob o argumento de que “não é necessária a perícia, quando existe prova idônea da invalidez”. Interpostos embargos infringentes, foram eles desprovidos, também por maioria de votos, pelos mesmos fundamentos. Contra essa decisão tirou-se o recurso especial. O Relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, entendeu que “em razão das peculiaridades da leucopenia, entre elas a de que pode modificar-se quando afastado o fator externo que a determina (…), tem a seguradora o direito de exigir exame atualizado das condições pessoais do segurado, notadamente porque o laudo do inss não geraria presunção absoluta, podendo ser infirmado por outros meios de prova”. O recurso foi conhecido e provido por unanimidade. Como se vê, o STJ reconheceu a violação do art. 130, cpc, em razão do indevido indeferimento da produção de meio de prova requerido pela parte, não porque o juiz deixou de determinar a sua produção ex officio.
O trecho destacado com [iii] refere-se ao resp 822.207/rs. Caso muito semelhante ao indicado em [ii]: o juiz de primeira instância entendeu que a concessão de aposentadoria por invalidez pelo inss constitui prova suficiente da invalidez, razão por que indeferiu o requerimento de prova pericial formulado pela seguradora-ré e julgou o pedido autoral procedente; o tjrs negou provimento à apelação da seguradora sob o fundamento de que “não há falar em cerceamento de defesa se o feito comportava julgamento antecipado da lide. Comprovada a aposentadoria do autor, pelo INSS, por invalidez permanente e estando em vigência o contrato de seguro, é devida a indenização”; o stj, relator o Min. Humberto Gomes de Barros, avaliou que, no caso, “a concessão de aposentadoria acidentária pelo INSS não pode ser aproveitada como prova de incapacidade do segurado, em relação contratual deste com pessoa jurídica de direito privado, sequer auscultada na apuração desenvolvida pelo INSS”. De particular, está a menção, neste caso, de que “aproveitar, como prova emprestada contra uma das partes, laudo produzido sem a oitiva deste, é ultrapassar o permissivo do art. 130 do CPC, agredindo o cânone constitucional do contencioso processual”. O recurso foi conhecido e provido por unanimidade. Como se vê, o STJ reconheceu a violação do art. 130, cpc/73, em razão do indevido indeferimento da produção de meio de prova requerido pela parte, não porque o juiz deixou de determinar a sua produção ex officio.
Em suma, em [i] nem ao menos se reconheceu a violação do art. 130, cpc/73, pois o autor se recusou a se submeter à prova pericial; em [ii] e [iii] houve reconhecimento de violação do referido dispositivo em razão do indeferimento indevido do requerimento de produção de prova pericial, e não pelo fato de o juiz ter indevidamente deixado de determinar a produção de provas de ofício. De modo que nenhum deles é exemplo de ilicitude por descumprimento dos poderes instrutórios oficiosos.
No resp 651.294/go, relatam nossos autores, “considerou-se lícita a postura do juiz que exerceu de ofício seus poderes instrutórios para a realização de nova perícia com o objetivo de fixar o preço de indenização pela desapropriação de terras, pois no contexto dos autos havia fortes indícios de que ‘a área expropriada estivesse superavaliada’” (p. 161). De fato, nos termos do voto da relatora, Min. Eliana Calmon, duas teses estavam colocadas para análise, a que aqui interessa a “possibilidade ou não do magistrado, de ofício, determinar a realização de nova perícia em processo de desapropriação, ainda que inexistente, qualquer discordância dos expropriados e do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL”. Sobre o ponto, considerou “de correção absoluta e mesmo louvável a postura do magistrado sentenciante que (…) usou dos poderes instrutórios que lhe são conferidos pelo art. 130 do CPC”, ressaltando, ainda, que o stj tem autorizado até mesmo “a relativização da coisa julgada para permitir a realização de nova perícia na fase executória do processo de desapropriação”. Ora, no caso o juiz exerceu seus poderes instrutórios, o que, por si só, esvazia a discussão, aqui relevante, de saber se constitui ilícito o seu descumprimento. No mais, o julgado não define que produzir provas é um dever do juiz, tampouco arrola as consequências do seu descumprimento. Em tempo: é importante notar que os fundamentos utilizados pelo stj para admitir a relativização da coisa julgada são “os princípios moralidade pública e da segurança jurídica”, “a preservação do interesse público”. Ou seja, em nenhum momento se cogita que a ilegalidade que justifica a relativização da coisa julgada é o descumprimento dos poderes instrutórios do juiz. Em todos aqueles casos o poder de produzir provas de ofício é instrumentalizado para justificar que o juiz determine nova avaliação em homenagem aos princípios acima referidos. Em nenhuma hipótese o seu descumprimento é lançado como fundamento autônomo para justificar a relativização da coisa julgada. Não se institui nada nem próximo de um standard interpretativo como «relativiza-se a coisa julgada quando o juiz deixa de determinar, de ofício, a realização de uma nova perícia para avaliar o imóvel objeto da desapropriação». Pelo menos não no referido julgado.
No resp 629.312/df, os autores destacam que “tendo admitido expressamente o magistrado singular que as provas colacionadas aos autos não eram suficientes para a verificação da alegada violação de cláusulas contratuais, deveria ter determinado, ex officio, sua realização”. A análise do caso revela, porém, que não se pode interpretar essa passagem – que é trecho da Ementa – no sentido de que por força do art. 130, cpc/73 o juiz tem o dever de sair à cata de provas, exercendo seus poderes instrutórios de ofício, sempre que reconhecer que não há provas ou que as existentes são insuficientes à formação do seu convencimento. Do acórdão contra o qual foi interposto o recurso especial (TJDFT; Acórdão 174067, 19990110194854APC, Rel. Vera Andrighi, Res. Sérgio Bittencourt, 4ª Turma Cível, j. 17/3/2003, DJU Seção 3: 11/6/2003. Pág.: 59) extrai-se que a parte autora efetivamente não forneceu provas dos fatos constitutivos do seu direito e que o julgador de primeira instância afirmou expressamente que se fosse produzida a prova pericial o pedido poderia ter sido acolhido. Mas a Relatora também registra que “Consta à fl. requerimento da autora, na inicial, no sentido da produção de prova pericial. Portanto, diante de tal requerimento, dispensável o despacho de especificação das provas, podendo o d. Juízo nomear perito e ouvir as partes quanto aos honorários e às questões a serem apreciadas na perícia, necessária para o deslinde da causa”. Por outro lado, ressalta que “o Juízo a quo, em dois momentos, proferiu despacho, consultando a autora se quereria produzir prova pericial. Infelizmente, o advogado não acudiu à lide, levando o Juízo a julgar improcedente o pedido por falta de provas.” Nada obstante, por considerar que “o objetivo precípuo do processo de realizar o direito, com o pedido na petição inicial, poder-se-ia dar início à prova indispensável. Assim, há patente violação ao art. 331, § 2º, c/c o art. 421, ambos do CPC. Requerida a produção da prova pericial, impõe-se ao magistrado, não obtida a conciliação, através do despacho saneador, designar a produção de prova pericial, nomeando perito, nos termos do supracitado art. 421, do CPC”. Destacou, ainda, que “examinando as planilhas do saldo devedor, verifica-se, a primeira vista, a possibilidade de onerosidade excessiva, pois a variação nominal do preço é manifestamente superior à variação patrimonial do bem imóvel”. Por tudo isso, concluiu que houve “cerceamento de defesa da apelante” e anulou a sentença, determinando a remessa dos autos à primeira instância para a realização da prova pericial, no que foi seguida pelo Revisor e pelo Vogal. Como está claro, foi fundamental para a Relatora no juízo a quo a existência de pedido expresso de produção de prova pericial na petição inicial e de indícios da procedência do pedido (planilhas de saldo devedor) reconhecidas expressamente pelo juiz em primeira instância. Não é possível saber se o órgão colegiado teria decidido do mesmo modo caso o autor não tivesse requerido a produção de prova pericial na petição inicial, bem como se a mesma orientação prevaleceria caso o autor tivesse requerido a produção da prova pericial pela primeira vez apenas na apelação. Não é dado prever se se reconheceria a violação do art. 130, cpc/73, pelo só fato de o juiz não ter lançado mão de seus os poderes instrutórios ex officio. No stj, o relator, Min. Hélio Quaglia Barbosa, consignou que “determinou o Tribunal a quo o retorno dos autos à primeira instância, cassando-se, por conseguinte, a sentença de improcedência prolatada, na medida em que, tendo admitido expressamente o magistrado singular que as provas colacionadas aos autos não seriam suficientes para verificação da alegada violação de cláusulas contratuais, deveria ter determinado, ex officio, sua realização”. Como se vê, Sua Exa. deixou de destacar o que foi considerado fundamental para o Tribunal de origem: o fato de que o autor requereu, na petição inicial, a produção da prova pericial; o fato de que, segundo a sua leitura do art. 330, cpc/73, não obtida a conciliação na audiência preliminar o juiz de piso deveria ter examinado, sem mais, aquele requerimento; e o fato de que havia indícios de que o autor poderia ter razão. Além disso, transcreveu a doutrina de Cândido Rangel Dinamarco, favorável aos poderes instrutórios do juiz, e a ementa do agrg no resp 738.576/df, onde consta que “Os juízos de primeiro e segundo graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhe aprouverem”, e em cujo interior transcreve-se a doutrina de Sérgio Sahione Fadel no sentido de que “a faculdade de atuação do juiz, na fase probatória, é amplíssima (…) O que se que (sic), com o art. 130, é não excluir a faculdade que tem o juiz de tomas (sic) as providências e ordenar as diligências que lhe parecerem necessárias ou úteis à decisão da causa e à formação livre de sua convicção.” Nada mais. Fala-se que os juízes “podem” determinar a produção dos meios de provas “que lhe aprouverem”, que se trata de uma “faculdade que tem o juiz”. Não é possível verificar nessa decisão o entendimento de que os poderes instrutórios são um dever do juiz cujo descumprimento acarreta ilegalidade. Em suma, todas essas circunstâncias indicam a impossibilidade de apontar para essa decisão como fornecedora de um standard de que os poderes instrutórios são um dever e que o seu descumprimento constitui ilegalidade. Bem vistas as coisas, as preocupações lançadas no acórdão do stj, claramente desgarradas das especificidades enaltecidas nas instâncias ordinárias, estão muito mais relacionadas à liberdade do juiz para a formação do seu convencimento do que com a preservação das garantias processuais das partes, propriamente ditas – o que é mais condizente com a visão de que essa é uma faculdade, e não um dever, do juiz.
No resp 345.436/sp, destaca a Relatora, Min. Nancy Andrighi, que o cerne da questão “é verificar a possibilidade de ser determinada a prova pericial em segundo grau de jurisdição, quando a parte interessada não se insurgiu, tempestivamente, contra o seu indeferimento pelo juízo monocrático. Discute-se, também, se é cabível a dilação probatória, quando haja outros meios de prova, testemunhal e documental, suficientes para o julgamento da demanda, e se a reabertura da fase probatória seria procrastinatória.” Quanto ao primeiro ponto, entendeu que “a ocorrência de preclusão temporal para as partes que não se propuseram a demonstrar a necessidade da prova pericial contábil requerida não afasta a iniciativa probatória do juízo natural, seja em primeiro ou segundo grau de jurisdição, ainda que no exercício de competência recursal revisional”. Quanto ao segundo ponto, concluiu que “pode haver renovação probatória para colheita de prova pericial, por determinação do segundo grau de jurisdição, mas desde que haja relevância e necessidade na dilação probatória”. Nada na decisão indica que os poderes instrutórios são um dever judicial cujo descumprimento constitui ilegalidade. Reconhece-se a possibilidade de determinação da produção de provas de ofício e estipulam-se os requisitos para o seu exercício – cujo cumprimento, aliás, não poderá ser controlado pelo stj, pois exige o revolvimento da matéria fática, esbarrando no notório Enunciado nº 7 da sua súmula. E isso é tudo.
- Considerações finais
As considerações precedentes indicam que em nenhum dos casos citados no texto em liça o stj definiu indubitavelmente que o juiz tem o dever de produzir provas de ofício, consignando apenas que é lícito que ele o faça. Tal interpretação é defensável apenas no que tange ao resp 222.445/pr, sem prejuízo das ressalvas lançadas acima, concernentes às nuances do caso concreto (a parte requereu a produção da prova, ainda que extemporaneamente, e recorreu suscitando o cerceamento de defesa) e ao regime do direito positivo (o cpc/73 não previa preclusão para o juiz em matéria de prova; o cpc/15 prevê e, portanto, só pode ser desconsiderado demonstrando a sua inconstitucionalidade ou consistente aplicação de alguma técnica de interpretação constitucional). Ainda assim, seria uma exceção que leva em consideração as especificidades do direito material em disputa, notadamente seu caráter indisponível. Por esse aresto o stj estaria contemplando o entendimento de que os poderes instrutórios são um dever apenas nos casos que envolvem direitos indisponíveis. Quanto às demais decisões examinadas, sugerem fortemente que os poderes instrutórios são uma faculdade stricto sensu do juiz e cujo descumprimento não implica em ilegalidade. Portanto, não é correto dizer que, à luz de tais julgados, o stj entende que os poderes instrutórios são um dever do juiz cujo descumprimento constitui nulidade. Por isso mesmo, é sintomático que a indagação sobre se essa “ilicitude” constitui vício rescisório tenha ficado sem resposta.
Aparentemente, tudo indica que o stj atribui natureza jurídica de faculdade aos poderes instrutórios do juiz. Há decisões expressas nesse sentido. No resp 471.857/es (1ª T., rel. Min. Humberto Gomes de Barros, votação unânime, j. 21.10.2003, DJ 17.11.2003), consta que “os arts. 130 e 1.107 do CPC, mitigando o Princípio da Demanda, conferem poderes instrutórios ao Juiz, mas não lhe impõem o dever de investigação probatória. Mesmo porque, nos fatos constitutivos do direito o ônus da prova cabe ao autor (CPC, art. 333, I)”. Citando julgados da Tribunal – a saber: resp 171.429/rj (“1. A prova pericial é do juízo e pode ser ordenada de ofício, quando o magistrado precisa de informações técnicas ou quando se tratar de direito indisponível, sem a prova definitiva do direito reclamada. 2. Se a parte deixou de requerer a prova pericial, tendo inclusive silenciado quando intimada para especificar as provas, cabe-lhe o ônus da omissão probatória”), resp 246.446/rj (“1. Na forma do CPC, art. 333, I, não tendo o próprio autor, interessado em demonstrar o fato constitutivo de seu pretenso direito, especificado os meio probatório pela qual desejaria fazê-lo, não pode o Magistrado suprir tal omissão, agindo de ofício, para determinar sua produção, sob pena de violar as regras dispostas no CPC, arts. 125, I e 128, que vedam a dispensa de tratamento desigual às partes e o conhecimento de ofício pelo Juiz das questões às quais competiria iniciativa às partes.”) e resp 243.311/sp (“O autor, na inicial, tem que indicar as provas com que pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados. Ante a ausência de provas, o juiz não pode determinar, de ofício, a produção de qualquer prova.”), indicando os dois últimos um entendimento ainda mais restritivo, provavelmente superado no Tribunal da Cidadania –, ressalta que “A faculdade outorgada para instrução probatória do Juízo milita em favor duma melhor formação da convicção do Magistrado. No entanto, o Juiz não pode substituir as partes nos ônus que lhe competem, inda (sic) mais quando a perícia não se realizou por inércia da parte no pagamento dos honorários do perito”. A mesma orientação é colhida em matéria criminal (RHC 87.764/DF, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, rel. p/Acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., j. 03.10.2017, DJe 06.11.2017), inclusive no STF (HC 167.617, rel. Min. Marco Aurélio, j. 14.02.2019, DJe 18.02.2019).
Nos tribunais ordinários o caráter de faculdade dos poderes instrutórios é ainda mais latente, como se pode ver em decisões do tjrj (“Determinação de produção de prova, de ofício, que é uma faculdade do Magistrado” – AI 0005352-36.2020.8.19.0000; Rio de Janeiro; Décima Nona Câmara Cível; Rel. Des. Lucio Durante; DORJ 28/08/2020; Pág. 637), do tjsp (“A produção de prova de ofício pelo Magistrado constitui faculdade” – ACr 0000002-33.2016.8.26.0511; Ac. 13890238; Rio das Pedras; Terceira Câmara de Direito Criminal; Rel. Des. Cesar Augusto Andrade de Castro; Julg. 24/08/2020; DJESP 28/08/2020; Pág. 3366 – note-se que é caso criminal), do tjdft (“não há obrigação legal para o juiz proceder à produção de prova de ofício” – RVC 2017.00.2.002036-5; Ac. 101.7582; Câmara Criminal; Rel. Des. Silvânio Barbosa dos Santos; Julg. 15/05/2017; DJDFTE 23/05/2017 – note-se que é caso criminal), do tjmg (“requisitar a produção de prova de ofício é uma faculdade do julgador, sendo ele o destinatário da prova, não há que se falar em nulidade da sentença por violação do art. 130 do CPC” – TJMG; APCV 1.0024.11.054002-8/001; Relª Desª Hilda Teixeira da Costa; Julg. 10/03/2015; DJEMG 24/03/2015), do tjmt (“o magistrado não está obrigado a determinar, de ofício, a realização de provas (art. 130 do CPC), se já formou seu livre convencimento e, especialmente, se as partes desistiram das provas requeridas e requereram o julgamento do processo na fase em que se encontrava” – TJMT; APL 38360/2011; Lucas do Rio Verde; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Guiomar Teodoro Borges; Julg. 16/08/2011; DJMT 23/08/2011; Pág. 10), do tjms (“regra contida no artigo 130 e 418, ambos do CPC, trata-se de faculdade do juiz, não podendo ser invocada no sentido de se impor ao magistrado o dever de investigação, uma vez que lhe é defeso substituir as partes no ônus que lhes compete” – AgRg 1413782-94.2014.8.12.0000/50000; Aquidauana; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Tânia Garcia de Freitas Borges; DJMS 01/09/2015; Pág. 21; “Cabe ao magistrado conduzir a instrução e julgar o feito quando entender suficiente o conjunto probatório formado nos autos, não havendo falar em produção de prova de ofício pelo Juízo, visto que é das partes o dever de produzir as provas necessárias a demonstração de seu direito, pelo que deve ser afastado o pleito de nulidade da sentença por ofensa ao contraditório e à ampla defesa” – AC 0800167-41.2018.8.12.0002; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Marcelo Câmara Rasslan; DJMS 29/04/2020; Pág. 68.) etc.
Cabe um exame mais detido da jurisprudência acerca do tema. Mas isso ficará para uma ocasião futura.
[2] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e Sempre a Prova de Ofício: o silencioso sepultamento dos poderes instrutórios supletivos no CPC/15. Disponível em: https://bit.ly/3ihIgxe.
[3] Para as correlações entre direito/pretensão↔dever, privilégio/faculdade↔não-direito, poder↔sujeição e imunidade↔incompetência, ver: SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, págs. 176-178; COSTA, Eduardo José da Fonseca. A (In)Justificabilidade Normativa da Legiferação Judiciária. Empório do Direto, Florianópolis, 27 abr. 2020. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/3cFc9ng. Acesso em 29.04.2020.
[4] Sobre o ponto de equilibro entre a atividade instrutória do juiz e o ônus da parte de prova. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (Coords.). Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, págs. 152-164.