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HANS KELSEN E O CONCEITO DE VONTADE

ENTRE O DIREITO E A PSICOLOGIA

 

1 Introdução

De forma inconteste vários autores afirmam que a teoria do direito desenvolvida pelo jurista Hans Kelsen é a mais importante do séc. XX. A despeito de muitos autores e estudiosos restringirem suas análises na sua afamada doutrina (Lehre) pura do direito e dentre estes haver muitos que não passaram de um estudo perfunctório – fato que posicionou Kelsen, como outros autores da história da filosofia e da história do pensamento político, como um espantalho, ou seja, como um autor mal lido e compreendido – deve ser reconhecido que reside em seu pensamento um estudo que se lança desde a origem do direito até as dimensões futuras de sua representação. [1]

Este texto tem como escopo analisar um tópico de seu pensamento em uma obra muito pouca utilizada pela doutrina jurídica brasileira, e que se consideramos as obras de Kelsen de forma separada, se revela como a mais importante de todas em termos de base para seus desenvolvimentos teóricos.

Estamos nos referindo a seu genial livro Hauptprobleme der Staatsrechtslehre entwickelt aus der Lehre vom Recthssatze (Problemas capitais da teoria jurídica do Estado desenvolvidos com base na doutrina da proposição jurídica).[2]

Esta obra surgiu em 1911 e, como bem adverte Josef L. Kunz, nela já se encontram, em concentração, os principais traços de sua teoria, como: a compreensão da norma jurídica como juízo hipotético, o direito como sistema de normas, a doutrina da personalidade jurídica como ponto final da imputação jurídica, como personificação de uma ordem jurídico parcial, a ideia da norma básica, os primeiros delineamentos da doutrina da identidade do Estado e da ordem jurídica nacional.[3]

Na realidade se encontram nesta obra o que será apresentado na Teoria pura do direito em alguns pontos de maneira cabal e completa e em outros aspectos em sua forma de nascimento.

De plano, explicitamente aqui será apresentada e dialogada a forma como Kelsen trata sobre o conceito de vontade na seara jurídica, de forma específica, no âmbito do direito privado, e implicitamente, a tentativa de revelar a genialidade do pensamento de Kelsen e espantar as levianas perspectivas que parecem se encerrar por grande parte da mentalidade jurídica brasileira numa leitura ou mera referência obtusa a Teoria pura do direito. Nessa segunda e implícita dimensão firma-se a proposta de se considerar Kelsen como o jurista do séc. XX e considerar, na esteira do que recomenda Ulises Schmill na resenha da tradução para o espanhol da obra tema deste artigo, que seus trabalhos são uma importante contribuição teórica ante a qual há que se tomar posição, sendo, talvez, a atitude mais adequada neste sentido de se tomar postura crítica, o que implica no fato de se considerar a teoria pura de Kelsen de modo completo e sistemático, de boa fé, sem deformá-la, sem imaginá-la e nem dar a ela uma fisionomia que não tem. De modo que somente assim, somente com esta base, que os estudiosos do direito poderão colocar em ordem racional e crítica a rapsódia das teorias jurídicas atuais, que sem consciência histórica postulam hipóteses específicas para resolver problemas jurídicos particulares, não conectados sistematicamente e sem nenhum sentido, algo plenamente em desacordo com um dos grandes méritos de toda teoria kelseniana, pois representa a possibilidade de proporcionar um ponto de vista unitário e sistemático para a compreensão do direito, que recohecidamente é um fenômeno muito complexo de estudo e relacionada em muitas e muito diferentes formas com outros objetos de estudo.[4]

 

2 O conceito de vontade na terminologia jurídica e sua diferenciação do conceito de vontade em sentido psicológico

 

Ao se dedicar no capítulo V dos Hauptprobleme[5] ao conceito de vontade Kelsen define no título do referido capítulo que irá trabalhar com o conceito de vontade no direito privado e no direito penal. Analisando pautadamente sua obra de forma sistemática e o referido capítulo verifica-se que Kelsen não faz tal estudo em separado por acaso. Toda a construção de sua noção de imputação e a dimensão da separação – por influência kantiana – dos mundos do ser e dever ser, tem seu sentido constitutivo, originário, na investigação da origem do direito no âmbito do direito privado e seu ulterior desenvolvimento no âmbito do direito penal.

De forma acurada Kelsen define que para se considerar o conceito de vontade, deve-se antes de tudo procurar definir “vontade” em terminologia juridica e o que deve ser considerado como “querido” do ponto de vista da jurisprudência – palavra aqui utilizada com fidedignidade como Kelsen a apresenta, ou seja, como ciência do direito em sentido estrito, dogmática jurídica.

Para tal definição o contraste proposto por Kelsen é o do conceito psicológico de vontade. A primeira questão que salta de plano aos olhos é a circunstância de que do ponto de vista jurídico não se destaca nunca como objeto  da “vontade” uma  representação, mas sempre fenômenos de ordem exterior, substratos de fato.

O que realmente interessa à jurisprudência é, com efeito, encontrar a conexão entre os substratos  exteriores do fato e os sujeitos. O que importa ao jurídico e dever ser colocado em termos de problematicidade é o de se um fato exterior há sido “querido” ou não pelo sujeito.

Se não se dá este substrato exterior do fato, o jurista não tem ocasião e nem possibilidade de por em ação seu conceito de vontade, já que este conceito não tem, para o jurista, mais do que o fim de estabelecer um nexo específico entre o sujeito (no sentido de pessoa e não de ser humano) e os acontecimentos do mundo exterior.

Assim, tudo aquilo que se refere a processos puramente interiores que ocorrem na alma do homem, sem a menor relação com o mundo externo, cai exclusivamente na órbita de competência da psicologia, cujo objeto é o homem, o ser humano, ao passo que, Segundo Kelsen, a jurisprudência somente se ocupa com a pessoa.

Para Kelsen os acontecimentos externos não podem ser considerados nunca como conteúdo do fato psiquíco, a que chamamos “vontade”, é dizer, como queridos, no sentido psicológico da palavra, por isso que se faz necessário estabelecer uma relação entre os acontecimentos puramente interiores da vontade e os acontecimentos exteriores. Estes acontecimentos do mundo físico exterior ou substratos do fato somente podem ser considerados produzidos pela vontade e o desenvolvimento corporal desencadeado por esta, sem que se deva olvidar que esta ação causal e efetiva sobe o exterior é indiferente quanto ao ajuizamento do fenômeno psíquico interior da vontade.

Parece, a primeira vista, como se o juridicamente querido fosse idêntico ao que reconhecemos como produzido pela vontade, mas esta maneira de pensar também é inadmissível.[6]

Conclusivamente se tem que o conteúdo do conceito de vontade revela uma diferença substancial entre o que a psicologia chama de “vontade” do que chama de “vontade” a jurisprudência. E tal discrepância é ainda destacada com maior claridade quando se investiga o conceito de vontade naquelas acepções específicas em que se emprega nos distintos campos especiais da jurisprudência, cabendo aqui o afunilamento da análise no campo do direito privado.

3 O conceito de vontade no âmbito do direito privado

A advertência inicial proposta por Kelsen em sua análise sobre o conceito de vontade no direito privado é a diferença existente sobre o que deve ser considerdo, juridicamente, como capacidade volitiva e o que, do ponto de vista psicológico, se entende por capacidade da vontade.

Evitando adentrar na problemática proposta, pois isto levaria, em última instância à discussão sobre a natureza mesmo do conceito de personalidade, Kelsen afirma que o conceito de “vontade” revela um significado específico, dentro da área do direito privado, na teoria do negócio jurídico. Segundo o entendimento predominante, a teoria do negócio jurídico é construída como uma declaração de vontade.

Com apoio em Windscheid[7], Kelsen toma o conceito no sentido de que se declara a vontade de que se produza um efeito jurídico, e o direio vigente faz que este efeito jurídico se produza por tê-lo querido assim o autor do negócio jurídico. Ressalta ainda a força deste conceito em relação ao chamado dogma da vontade na formulação negativo do mesmo princípio, a saber: a que proclama a nulidade do negócio jurídico, que equivale a que a declaração de vontade não engendre o efeito apetecido quando o declarante não quer o que realmente declara querer.[8]

Dentre as várias polêmicas em torno do dogma predominante da vontade, Kelsen, ainda com apoio em Windscheid, afirma que o aspecto comum de todas elas se resume no fato de que atribuem eficácia juridica, em certos casos, a declaração de vontade real do sujeito, o que vale dizer que emancipam, em maior ou menor grau, a eficácia juridica de declração de existência de um vontade psíquica real do fato de que os efeitos sejam realmente queridos pelo declarante.

Destaca-se ainda o curioso paralelismo que se adverte entre esta oposição ao dogma da vontade dos civilistas e uma corrente dirigida contra outro dogma da vontade imperante no campo do direito penal. Para os penalistas desta corrente, a vontade manifestada no dogma da vontade do direito civil, na medida em que este dogma tem algum sentido ou razão de ser, tem um significado especialmente distinto do que a psicologia atribui a essa palavra.

Este ponto é muito interessante, pois os principais sustentadores do dogma da vontade – a referência de Kelsen aqui é Windscheid – entendem que a vontade como um estado interior da alma é indiferente para o direito, não só porque não tem nem pode ter notícia dele, mas, simplesmente, porque essa classe de vontade não é suficiente para ele.

Caminhando para o que entendemos como o mais original em sua análise, Kelsen mostra que do ponto de vista psicológico não é possível conceber a vontade senão como um estado interior da alma e a única consequência a que poderia se chegar partindo do pensamento de Windscheid é a de que a vontade do jurista tem necessariamente que ser por sua essência mesma, é dizer, por sua estrutura metodológica, algo totalmente distinto daquele estado interior da alma que é o único que pode ser considerado como  a vontade em sua acepção psicológica e que é indiferente para os efeitos do direito.

A sacada que revela Kelsen – não exposta pelos doutrinadores do dogma da vontade – é a de que ao passar por alto a diferença substancial existente entre o método jurídico e o psicológico, se deixa levar a toda outra série de afirmações insustentáveis tanto do ponto de vista psicológico, como jurídico.[9]

Segundo Kelsen o conceito passa a ficar confuso, pois é inadimissível ver na declaração da vontade “o movimento da vontade incorporada ao mundo exterior” e definir aquela declaração, ao mesmo tempo, como “a vontade em sua tangível manifestação. A vontade, como processo puramente psíquico que é, não pode ter uma manifestação tangível, a vontade é, portanto, enquanto a seu conteúdo, outra coisa que o causado pela vontade. E quando o direito não se une ao movimento da vontade que arranca do interior do homem, por entender que este é inacessível ao direito, é que não se une, simplesmente, com nenhuma vontade concebida em sentido psicológico.[10]

Kelsen nota que dificilmente poderia dar se a entender com maior claridade que a vontade do dogma dos civilistas é qualquer coisa, menos o que se chama vontade em sentido psicológico.

De outro modo, como seria possível estabelecer a realidade de um ato psíquico real pela via da presunção, que é um meio específico da metodologia juridica? Se existe ou não um ato de vontade somente pode ser averiguado recorrendo aos métodos da psicologia, é dizer, da própria observação. Ou há alguém que realmente  cre que os fato psíquicos sao suscetíveis de ser comprovados por via de presunções ou ficções?

Segundo Kelsen, este carater absolutamente presuntivo ou fictício da vontade juridica, é, já de plano, uma indicação suficientemente eloquente  de sua realidade e de como esta deve ser buscada à margem de toda psicologia.

Esta ordem de argumentação leva ao aprofundamento do tema por Kelsen tendo em conta como os civilistas desenvolvem na aplicabilidade o conceito de vontade. Ao se examinar o dogma da vontade dos civilistas enquanto suas relações com o conceito psicológico de vontade, em particular, acab-se por notar entre um e outro diferenças insanáveis e isto, então passa a ser analisado pontualmente por Kelsen.

3.1 A vontade das partes e o dogma da vontade

A primeira observação de Kelsen se funda no aspecto duvidoso de se considerar que a vontade das partes tenha que ser dirigida, de fato como proclama o “dogma a vontade”, exatamente aos efeitos jurídicos que o direito vigente dá a determinadas declarações.

Normalmente, as partes desconhecem em absoluto, com frequencia, as disposições, as vezes muito complicadas, do ordenamento jurídico, e desconhecendo-as, mal podem querê-las, sem que isto traga como consequência a invalidade do negócio jurídico.

Ao celebrar seus negócios as partes simplesmente se propoem a alcançar certos resultados efetivos, materias, e não determinados efeitos jurídicos. Na realidade, somente as partes versadas em direito é que podem associar, em sua consciência, a ideia dos efeitos jurídicos que emanam do direito vigente.

Um dos exemplos de Kelsen é o seguinte: quando A promete a B devolver ao cabo de certo tempo uma quantia de dinheiro recebida, o mais provável é que primeiro se represente a obtenção da causa do dinheiro e sua devolução ao cabo do prado determinado, e em segundo, a entrega da quantidade e sua recuperação, como meio para satisfação das suas necessidades. Mas, somente uma pessoa perita no direito converterá em conteúdo de sua vontade, no exemplo dado, a ideia de determinadas trocas no direito de propriedade sobre a quantia emprestada e o nascimento de um direito de crédito.[11]

 

3.2 A reserva mental e invalidez do negócio jurídico.

Outro ponto relevante tocado por Kelsen é o de que sempre se definiu que as reservas mentais não conduzem a invalidez do negócio jurídico. Esta definição juridica indica de forma plena que o dogma da vontade não descansa, de modo algum, sobre a vontade em sentido psicológico, é dizer, que a validez do negócio jurídico não se determina, nem muito menos, a existência real e efetiva de uma noção da conduta obrigada, associada a aspiração que se persegue, com meio para a satisfação de certas necessidades. [12]

O princípio segundo o qual as reservas mentais não devem ser levadas em conta para nada nos negócios jurídicos representaria a mais complete anulação do dogma da vontade, se preconizadas por ele fosse realmente a vontade em sentido psicológico.

3.3 O negócio jurídico, a coação e o erro.

Por fim, se guinarmos a análise para os casos em que o negócio juridico se reputa inválido pela coação ou pelo erro em que se tenha incorrido ao emitir a declaração de vontade, se vê que nestes casos, a primeira vista, parecem se apoiar hipóteses de que o dogma jurídico da vontade se baseia numa vontade em sentido psicológico, o que acaba constituindo cabalmente como prova do contrario.

Por todo seu conteúdo, a teoria do erro no direito civil dá a entender que não lhe interessa a vontade em sentido psicológico. Segundo a doutrina preodominante, existe erro quando o declarante não tem a menor consciência de que a declaração emitida se formule como querido algo que ele realmente não quer. Sem embargo, isto somente é possível à condição de que o declarante declare outra coisa do que a de fato queria declarar, pois supondo que eu quero algo distinto do que declaro e que não me dei conta desta diferença, teria que querer declarar, ao menos, aquilo que quero se produza como efeito jurídico ou real.

Se me proponho declarar outra coisa distinta como querido por mim, seja de fato ou de direito, é claro que não poderá passar desapercebida esta diferença entre ambos conteúdos da vontade, que não são outra coisa que conteúdos de representação.[13]

Além da questão do erro existem também inúmeros casos de coação a que a ordem juridica não os considera como tais para nenhum efeito jurídico, apesar de que psicologicamente, não se distinguem daqueles que juridicamente determinam um “vício de vontade”.

Quem tomado de fome compra a crédito alimentos para sua subsistência se compromete a pagar seu preço, sobre o peso da mesma coação de quem os rouba, não obstante, o fato de que a nenhum jurista ocorreria alegar a nulidade do negócio jurídico sob as referidas condições, alegando que a declaração de compra padece de coação. E, sem embargo, é evidente que este caso em nada se distingue, psicologicamente, daquele que promote pagar uma quantia de dinheiro à pessoa que o ameaça de morte.

4 Validez jurídica, vontade de um negócio jurídico e imputação

Pelo até então exposto, nota-se que para Kelsen o dogma da vontade preconizado no direito civil estabelece uma equação entre a validez juridica e a vontade de um negócio jurídico. E realmente em que pese toda a oposição que o dogma da vontade há suscitado nos últimos tempos, não se pode descartar o fato de que a terminologia juridica mostra a tendência insuperável de apresentar como querido, como voluntário, todo negócio jurídico válido. A demonstração de que existem muitíssimos negócios jurídicos válidos não animados, manifestamente, por uma vontade congruente, em sentido psicológico, e que a jurisprudência, com seus meios específicos de conhecimento não consegue, simplesmente por impossibilidade, demonstrar a existência de tal vontade, não logra em desvirtuar o dogma da vontade segundo o qual o negócio jurídico válido deve ser considerado como um negócio jurídico querido.[14]

E também não resta dúvida de que o dogma da vontade encerra um sentido profundo, inatacável para toda argumentação de ordem psicológica. Se o jurista se vê obrigado a fingir a existência de uma vontade em todos aqueles casos em que o psicólogo demonstra irrefutavelmente a ausência de uma vontade encaminhada aos efeitos do negócio jurídico, ou ao menos, a impossibilidade de provar a existência dela; se a doutrina do direito civil que mantem o pé no dogma de vontade chega à conclusão de “que existem também, sem embargo, casos em que o negócio jurídico é válido apesar da ausência da vontade, enquanto que sua existência se finge por império da lei”, claramente fica indicado com ele em que direção deve se buscar o dilema entre a jurisprudência e a psicologia.

O que desde logo pode ser assegurado, segundo Kelsen, é que o dogma da vontade não encerra e nem pode encerrar uma significação psicológica, que a vontade que este dogma preconiza tem que ser necessariamente outra que aquela que opera a psicologia: não um fato psíquico real, não um processo real da vida anímica, senão um conceito do pensamento especificamente jurídico, uma construção autenticamente jurídica.

Somente o desconhecimento deste fato, a ausência de uma visão suficientemente clara dos métodos em que se baseia a construção dos conceitos jurídicos, e como consequência disso, a incompreensão da verdadeira essência desta construção, da estrutura do que deve ser entendido como juridicamente por vontade ou por querido, somente isto, explica por que os juristas deixaram se levar pelos falsos caminhos da ficção, da afirmação de um fato real em contradição com a realidade.

Dessa forma Kelsen se coloca de forma totalmente inversa aos téoricos tradicionais civilistas que apoiados na hipótese de que um negócio jurídico é válido porque e enquanto que é (psicologicamente) querido, afirmando que um negócio jurídico é querido porque e enquanto que é válido, tese na qual a nota da validez é a razão de conhecimento de nota da voluntariedade.[15]

Para Kelsen, do ponto de vista ético-jurídico é metodologicamente falso apresentar como ato psíquico da vontade dentro da campo da ética e da jurisprudência, pois necessariamente tem que demonstrá-lo também do ponto de vista da psicologia, pois aquela teoria psicológica que elimina totalmente o conceito de vontade como um fenômeno psíquico especial, desde o momento em que põe de manifesto a inexistência daquele fenômeno anímico que certos juristas se esforçam em conceber como vontade.[16]

Por fim, de forma instigante, Kelsen reconhece que mesmo que muitos dos caminhos seguidos sobre o tema possam coincidir com a teoria psicológica referida, o jurista tem que contentar-se necessariamente por razões de limitação científica impostas a sí mesmo, com enunciar simplesmente como possível este complemento em sua argumentação do ponto de vista psicológico, renunciado, mal que lhe pese, a tomar como base de suas considerações a teoria dos psicólogos, pois esta não pode ser considerada como predominante no âmbito de sua ciência.

Kelsen conclusivamente constata que o conceito de vontade em sentido ético-jurídico tem um significado totalmente distinto do que pode ter, qualquer que o seja, o conceito pscicológico de vontade, o qual entranha um processo anímico efetivo e que por vontade em sentido ético jurídico não pode se entender um ato psíquico de nenhuma classe, senão uma construção erigida com vistas à imputação[17], exclusivamente.[18]

A dogmática jurídica chega ao conceito de vontade pela necessidade de entrelaçar fatos externos com os sujeitos governados pela ordem jurídca a quem hão de se aplicar os efeitos que a conduta contraria ao direito provoca. Este entreleçamento dos fatos externos e seus efeitos aos sujeitos, embasados na norma juridica, não é outra coisa que o processo específico da imputação. Vontade concebida em sentido ético jurídico e imputação são conceitos equivalentes.

[1] A base desse texto foi primeira construída aqui: Revista de Direito Privado | vol. 51/2012 | p. 57 – 69 | Jul – Set / 2012

[2] A obra aqui utilizada se refere à tradução para o espanhol feita por Wenceslao Roces pelo editorial Porrúa, para tanto, cf. Hans Kelsen. Problemas capitals de la teoría juridica del estado desarrollados con base en la doctrina de la proposición juridical. México: Editorial Porrúa, 1987.

[3] Segundo Josef Kunz “Si se toman las obras de Kelsen como obras separadas, creo que de todas ellas, la de 1911 es aún hoy la más genial. Como Pallas Atena de la cabeza de Zeus, así apareció en esta obra la Teoría pura del derecho con rasgos geniales y en su aspecto fundamental. Ya está allí claramente delineada, en verdad la Teoria pura del derecho. Hallamos la base filosófica kantiana, la estricta separación entre los mundo del ser y del deber ser, entre las ciencias naturales y las ciencias normativas, entre causalidad y imputación juridical, entre ciencia del derecho y sociología, entre la ley causal y norma. Vemos la concentración de la teoria en el concepto de la norma juridical. En verdad, el título complete de la obra es: Problemas capitales de la teoria juridical del Estado, desarrollados con base en la doctrina de la proposición juridica. Ya encontramos allí, la comprehension de la norma juridical como juicio hipotético: el derecho como sistema de normas; la doctrina de la personalidad juridical como punto final de imputación juridical, como personificación de un orden jurídico parcial; la idea de la norma básica; los primeiros comienzos de la doctrina de la identidad del Estado y el orden jurídico nacional”. Josef L. Kunz. Teoría pura del derecho, México: Imprensa Universitaria, 1948, p. 18.

[4] Cf. Ulises Schmill O. na introdução da tradução para o espanhol dos Hauptprobleme. Hans Kelsen. Problemas capitals de la teoría juridical del estado: desarrolados con base en la doctrian de la proposición juridical. México: editorial Porrúa, 1987, p. XXXVI e XXXVII.

[5] Hans Kelsen. Problemas capitals de la teoría juridica del estado, cit., p. 104-138.

[6] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 106.

[7] Kelsen faz referência a duas obras de Windsecheid, a conhecida Pandekten e à obra Wille und Willesrklärung.

[8] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 106 e 107.

[9] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 107.

[10] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 106.

[11] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 108 e 109.

[12] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 109.

[13] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 110.

[14] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 113.

[15] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 114.

[16] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 114.

[17] Segundo Kelsen, o verdadeiro significado da idéia de que o homem, enquanto sujeito de uma ordem moral ou jurídica é livre, significa que ele é o ponto terminal de uma imputação apenas possível com base nessa ordem normativa em que ele está inserido: “A verdade, porém, é que o pressuposto de que apenas a liberdade do homem, ou seja, o fato de ele não estar submetido à lei da causalidade, é que torna possível a responsabilidade ou imputação está em aberta contradição com os fatos da vida social. A instituição de uma ordem normativa reguladora da conduta dos indivíduos – com base na qual somente pode ter lugar a imputação – pressupõe exatamente que a vontade dos indivíduos cuja conduta se regula seja causalmente determinável e, portanto, não seja livre […] Só através do fato de a ordem normativa se inserir, como conteúdo das representações dos indivíduos cuja conduta ele regula, no processo causal, no fluxo de causas e efeitos, é que esta ordem preenche a sua função social. E também só com base numa tal ordem normativa, que pressupõe a sua causalidade relativamente à vontade do indivíduo que lhe está submetido, é que a imputação pode ter lugar […] Por vezes não se nega que a vontade do homem seja efetivamente determinada pela via causal, como todo acontecer, mas afirma-se que, para tornar possível a imputação ético-jurídica, se deve considerar o homem como se sua vontade fosse livre, a sua não-determinação causal, como uma ficção necessária […] A imputação não pressupõe nem o fato nem a ficção da liberdade como uma indeterminação causal, nem o erro subjetivo dos homens que se crêem livres.”  Hans Kelsen. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado, 7 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 105-107. Na verdade, a causalidade não exclui a imputação, e é a determinabilidade causal da vontade que torna possível a imputação, e não o inverso. Para Kelsen não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas sim, o contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. Nesse sentido imputação e liberdade possuem de fato uma conexão. Assim sendo, não existe nenhuma contradição entre a ordem da natureza, de um lado, e a ordem moral e jurídica, de outro. O resultado disso é a clássica distinção kelseniana de que a primeira é uma ordem de ser e as outras são ordens de dever-ser, apenas podendo haver contradição lógica entre um ser e um ser e um dever-ser e um dever-ser, mas jamais de ser com dever-ser ou de dever-ser com ser. Esse dualismo de matriz kantiana a que se reporta Kelsen recebe algumas críticas no sentido de que dever-ser, cuja expressão é a norma, às vezes é considerada sem sentido ou tão somente uma ilusão ideológica. Nesse sentido, também cf. Hans Kelsen. Aufsätze zur Ideologiekritik mit einer Enleitung herausgegeben von Ernest Topitsch, Berlin: Luchterland, 1964.

[18] Hans Kelsen. Problemas capitales de la teoría juridica del estado, cit., p. 138.

Autor

  • Doutor e mestre em filosofia do direito e teoria do estado pela PUC/SP. Pós-doutor em filosofia pela UNICAMP. Professor do núcleo de filosofia e teoria geral do direito da Universidade Presbiteriana MACKENZIE. Professor permanente do curso de mestrado e doutorado em direito da Faculdade Autônoma de Direito - FADISP e do curso de mestrado em direito constitucional econômico da UNIALFA

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