O Código de Processo Civil de 1973, elaborado em pleno período de ditadura militar no país, possuía a previsão, em seu artigo 131, de que o juiz “apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.
Nesse sentido, diversos juristas, após a Constituição de 1988 e com os avançados estudos em teoria do processo e teoria da democracia, passaram a criticar a atuação solipsista do magistrado na livre criação e interpretação do direito, cujo embasamento encontrava-se no artigo 131 do CPC/73.
Desse modo, com o projeto de criação de um novo Código de Processo Civil no Brasil, pós período ditatorial, houve o debate e consequente promulgação do CPC/2015 em que se defendeu o fim do livre convencimento motivado. Essa linha foi capitaneada, principalmente, por Lenio Streck, que contribuiu para que o artigo 371 retirasse a palavra “livremente” de sua redação, além de preconizar a coerência, integridade e estabilidade da jurisprudência (art. 926 do CPC), com base na Teoria do Direito como Integridade de Ronald Dworkin.[1]
Além do acolhimento das propostas de Lenio Streck, o CPC trouxe em seu arcabouço, em especial no capítulo 01, as normas fundamentais, cujos alicerces alinham-se ao processo constitucional[2] ao preconizar o contraditório como garantia de influência e não surpresa (arts. 7º, 9º e 10) e a fundamentação das decisões (arts. 11 e 489).
A partir da interpretação sistemática de tais dispositivos, passou-se a defender o fim do livre convencimento motivado, principalmente porque a articulação entre contraditório e fundamentação das decisões permite que as partes possam participar e influenciar, por meio de argumentos fáticos, jurídicos, e provas, no conteúdo da decisão final.[3]
No entanto, ao contrário do posicionamento de que o livre convencimento teria sido extirpado do CPC/15, vislumbramos, ainda, a sua perpetuação, não obstante os louváveis esforços para que houvesse a sua total retirada da legislação procedimental brasileira para se efetivar uma perspectiva democrática de processo.
De plano, podemos mencionar que a corrente instrumentalista ainda defende a existência do livre convencimento motivado e a sua utilização para a valoração probatória. Fernando Gajardoni, por exemplo, entende que a previsão contida no artigo 489, §1º, do CPC “não afeta a liberdade que o juiz tem para valorar a prova”, como também os artigos 371 e 372 “comprovam a afirmação de que subsiste a liberdade de valoração da prova no CPC/2015, ao indicar que o juiz apreciará a prova atribuindo-lhe o valor que entender adequado”.
Assim, conclui o autor que o fator humano nas decisões seria insuprimível, “por isso, enquanto os julgamentos forem humanos, a livre convicção do julgador, dentro de algumas importantes balizas, sempre estará presente”. [4]
No mesmo caminho, Rafael Stefanini Auilo, orientando de Cândido Rangel Dinamarco e forte na instrumentalidade do processo, também defende o livre convencimento motivado como “decorrência lógica da autonomia judicial e da necessária realização dos escopos da jurisdição”, o que “deixa em favor do Estado-juiz certo grau de subjetividade na valoração das provas produzidas”, sendo esta liberdade “inerente ao próprio modo de agir do operador do direito (as leis que regem o modo de agir do sujeito são normalmente mais abstratas) e ao próprio juiz enquanto pessoa (e não um mero robô ou computador)”.[5]
O que se pode verificar da defesa de ambos os juristas aqui citados (e de tantos outros instrumentalistas!), é o fato de que a letargia dogmática[6] ainda se perpetua na defesa de um mesmo status quo mantenedor do processo como mero instrumento da jurisdição a serviço do julgador para decidir conforme sua consciência e fora dos limites legais, a fim de se gerar uma utópica pacificação social.
E essa letargia dogmática também se torna perceptível no momento em que o CPC/2015 escolhe manter o referencial teórico da teoria do processo como relação jurídica de Oskar Von Bülow[7], o qual preconiza a legitimidade decisória pelo protagonismo e sentimento do julgador.
É o que também expõem André Cordeiro Leal e Vinicius Lott Thibau, no sentido de que o CPC/2015 não apresenta uma ruptura com o modelo processual bülowiano:
É exatamente a ausência de ruptura com o passado e com o presente de legitimidades duvidosas que situa o CPC brasileiro de 2015 como hábil reprodutor de um direito truculento já de há muito instalado entre nós. Confessadamente, o que se pretendeu e se institucionalizou, a partir da vigência da Lei nº 13.105/15, foi, principalmente, uma maior eficiência a um sistema jurídico que, há várias décadas, serve de impeditivo de democraticidade jurídica. Decide-se pela inafastável implementação dos ganhos supostos de “celeridade”, “segurança jurídica” e “justiça”, sem que se instale, antes, uma perquirição acerca da compatibilidade das técnicas instituídas em prol do alcance desses objetivos com as bases normativas do marco teórico (paradigma) previsto na Constituição brasileira de 1988.[8]
É por isso que concordamos com Lincoln Magalhães ao dissertar que o mencionado Código “recalcitrou em fórmulas anacrónicas e em arquétipos fundamentais obsoletos” ao repetir “soluções normativas fracassadas em passado recente e encarnou os mesmos referenciais teóricos das codificações de 1939 e 1973”.[9]
Além disso, o próprio CPC/15 possui diversos artigos que formam uma espécie de combo autoritário para embasar e possibilitar o livre convencimento do julgador e a sua liberdade decisória, não obstante “alguns inegáveis esforços empreendidos pelo atual diploma para se purgar os influxos subjetivistas”. [10]
Fazem parte desse combo autoritário os dispositivos que permitem a atuação do juiz para a produção probatória ex officio, os quais atribuem um sentido polissêmico à noção de prova[11], utilizada para que o juiz possa buscar a verdade no processo, como disposto no artigo 368. Nessa esteira, o CPC, equivocadamente, perpetua que o juiz é destinatário da prova e não o processo. [12]
A concepção de que a prova serve à busca da verdade não se presta à construção democrática e processualizada da decisão, como demonstra Rosemiro Pereira Leal:
É mítica a assertiva de que a prova revela a verdade, como se fora um instrumento mágico de transposição do concreto em abstrato ou vice-versa. Afigura-se paradoxo incontornável falar em livre convencimento do juiz na apreciação da prova e persuasão racional como critério de convicção, porque a ratio nas democracias não é dos leitores da prova, mas das categorias lógicas do discurso legal popular.[13]
Também, há a previsão do uso das regras de experiência do julgador (art. 375), que permite a interpretação da prova e do direito a partir daquilo que o juiz ordinariamente observa da realidade pelo método indutivo.[14] O uso de regras de experiência gera um perigoso terreno de atuação solipsista e discricionária do julgador:
Com isto, resta patente um terreno perigoso, precário na proteção de direitos fundamentais, porém fértil em outorgar prerrogativas arbitrárias para a livre e descriteriosa atuação do juiz, razão por que não se pode mais falar em julgamento com base em ‘senso comum ou máximas de experiência’ na vigência do Estado Democrático de Direito. Trata-se de discurso que parte de aptidões pressupostas e não extraídas da estrutura procedimental-processualizada, portanto, não suscetíveis à crítica ou refutação pelas partes.[15]
O combo autoritário também está presente na proibição ao non liquet (artigo 140) que permite ao julgador completar o sentido normativo em caso de lacuna a partir de seus sentimentos[16], as medidas executivas atípicas (art. 139, IV)[17], a persistência das condições da ação[18], a existência de um juiz pedagógico e aplicador de multas[19], o artigo 8º que trata da decisão baseada em fins sociais[20], além da própria jurisprudencialização do direito por meio do uso de precedentes e padrões decisórios[21], dentre diversos outros que mantém o julgador como protagonista e centro de toda atividade decisória.
Com efeito, o que podemos perceber é que a retirada da palavra “livremente” do CPC não bastou para expurgar o livre convencimento motivado da legislação, visto que “a recalcitrante permeabilidade do sistema atual a práticas notadamente decisionistas é resultado da manutenção, no novo código, de um referencial teórico-processual explicitamente fundado nas ideias de autoridade e de protagonismo dos membros do Judiciário”.[22]
Em suma, é o que leciona Rodolfo Wild:
Nessa síntese, ainda é possível averiguar a reminiscência do princípio da autoridade no CPC/2015, pois manteve o juiz como o protagonista do processo judicial e, assim, o elemento assimétrico divisado nas legislações anteriores. Em outras palavras, o juiz permanece como o diretor da prova, havendo a aposta nos atributos daquele enquanto ‘imparcial, estranho à atividade probatória, confiada às partes, mas presente para garantir a validade dos atos e dotado de poder de iniciativa subsdiária’.[23]
Percebe-se, portanto, que o CPC/2015 não empreendeu esforços suficientes para efetuar uma nova conjectura acerca da teoria da prova alinhada ao devido processo, visto que suas “bases didáticas infelizmente estão assentadas em ideologias de autores célebres não comprometidos com a leitura da teoria das constituições democráticas”[24], o que apenas faz perpetuar a violência normativa imposta pelo livre convencimento motivado do julgador.[25]
[1] É o que expõe Fábio Luiz Bragança Ferreira: “É relevante notar que Lenio Streck participou não apenas da exclusão de todas as referências à livre apreciação ou livre convencimento, mas também atuou de forma determinante na inclusão no CPC de 2015 da exigência de que a jurisprudência de (sic) mantenha estável, íntegra e coerente, conforme vemos no artigo 926”. FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial positivista pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 135-136.
[2] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. A constitucionalização do novo Código de Processo Civil. In: BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. SOARES, Carlos Henrique. (Orgs.). Novo CPC 2016 – Lei n. 13.105/15 com as alterações da Lei n. 13.256/16. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
[3] Acerca da necessária articulação entre contraditório e fundamentação das decisões, conferir: SOUSA, Lorena Ribeiro de Carvalho. O dever de fundamentação no Código de Processo Civil de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p. 97-105.
[4] GAJARDONI, Fernando. O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2015/04/06/livre-convencimento-motivado-cpc/. Acesso em: 05.12.2021.
[5] AUILO, Rafael Stefanini. A valoração judicial da prova no direito brasileiro. São Paulo: JusPodivm, 2021, p.24. Em sua tese, verifica-se que o autor se encontra preso em um paradoxo (paradoxo de Bülow), pois busca criar mecanismos de controle do livre convencimento motivado. Questionamos, então, como ser o processo instrumento da jurisdição para liberdade de valoração da prova pelo juiz e, ao mesmo tempo, sua forma de controle?
[6] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Letargia dogmática, ensino jurídico e tirania jurisprudencial. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/letargia-dogmatica-ensino-juridico-e-tirania-jurisprudencial/
[7] Desde a Exposição de Motivos o CPC adota o referencial teórico de Bülow e, vai mais além, ao preconizar no artigo 238 que o processo é uma relação jurídica. Sobre o tema: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial. In: FREITAS, Sérgio Henriques Zandona; LEAL, André Cordeiro; FRATTARI, Rafhael; ENGELMANN Wilson. (Org.). Jurisdição e Técnica Procedimental. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
[8] LEAL, André Cordeiro; THIBAU, Vinicius Lott. A estrutura fundamental do direito processual dogmático e suas repercussões no Código de processo Civil Brasileiro de 2015. In: OMMATI, José Emílio Medauar; DUTRA, Leonardo Campos Victor. (Coord.). Teoria crítica do processo: contributos da Escola Mineira de Processo para o Constitucionalismo Democrático. Coleção Teoria Crítica do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 27-48. v. 6, p. 41.
[9] MAGALHÃES, Lincoln Mattos. O processo democrático em xeque: a jurisprudencialização do Direito no CPC de 2015. Belo Horizonte: Dialética, 2020, p.133.
[10] MAGALHÃES, Lincoln Mattos. O processo democrático em xeque: a jurisprudencialização do Direito no CPC de 2015, cit., p.141.
[11] LEAL, André Cordeiro; THIBAU, Vinicius Lott. Prova e jurisdicionalismo no Novo CPC brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Belo Horizonte. n. 28, p. 99-107, jan./abr. 2016. Disponível em <http://blog.newtonpaiva.br/direito/wp-content/uploads/2016/02/DIR-28-10.pdf>. Acesso em: 05 de dez. de 2021, p. 102.
[12] Ronaldo Brêtas e outros expõem que, na perspectiva do processo constitucional democrático, “o destinatário principal e direto da prova não é o juiz ou o juízo, mas, sim, o próprio processo, por uma questão de coerência lógico-formal”. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias et al. Estudo sistemático do NCPC. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 160.
[13] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 15. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021., p. 198.
[14] Sobre o problema da indução no uso das regras de experiência do julgador, já tivemos a oportunidade de realizar crítica e demonstrar sua incompatibilidade com a processualidade democrática, em artigo escrito em coautoria com Francisco Dourado: DOURADO DE ANDRADE, Francisco Rabelo; MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O problema da indução e as regras de experiência do julgador. In: DOURADO DE ANDRADE, Francisco Rabelo. (Org.). Tópicos especiais de processo civil: análise crítica e perspectivas. Belo Horizonte: RTM, 2021, v. 2, p. 99-124.
[15] DOURADO DE ANDRADE, Francisco Rabelo. Tutela de evidência, teoria da cognição e processualidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 156.
[16] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial, cit., p.66-71.
[17] CARVALHO FILHO, Antônio; SOUSA, Diego Crevelin de; PEREIRA, Mateus Costa. Réquiem às medidas judiciais atípicas nas execuções pecuniárias. Londrina: Thoth, 2020.
[18] Apesar do CPC/2015 não utilizar mais o termo “condições da ação”, estas ainda foram reproduzidas já que se exige legitimidade e interesse para ingressar em juízo, a teor do artigo 17, sob pena de extinção do procedimento sem resolução de mérito (art. 485, inciso VI). Contudo, as condições da ação são a continuidade da teoria relacionista, conforme implementado por Liebman no direito brasileiro. Conferir a crítica que fizemos: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. A incompatibilidade das condições da ação com a processualidade democrática. In: CARVALHO FILHO, Antônio; COSTA, Eduardo José Fonseca da. (Org.). Direito, processo e garantia: estudos em homenagem a J. J. Calmon de Passos. Londrina: Thoth, 2021, p. 285-307.
[19] O CPC/15 traz diversas disposições em que o julgador pode aplicar, inclusive de ofício, diversas multas, como por exemplo, o artigo 334, §8º, do CPC, em que se aplica multa à parte que não comparecer injustificadamente à audiência de conciliação. Para uma consistente crítica à pedagogia judicial, conferir: CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.
[20] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial, cit.,
[21] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: da vinculação à democratização. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.
[22] MAGALHÃES, Lincoln Mattos. O processo democrático em xeque: a jurisprudencialização do Direito no CPC de 2015, cit., p. 142.
[23] WILD, Rodolfo. O princípio do livre convencimento no CPC/2015. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 132.
[24] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos, p. 198.
[25] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Violência normativa e o livre convencimento motivado no CPC/2015. In: ALVES, Lucélia de Sena; CABRAL, Cristiane Helena de Paula Lima; COSTA FILHO, Silvio Teixeira da; PORTILHO, Silvia de Abreu Andrade. (Orgs.). 3 anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.