SOBERANIA: ALIADA OU EMPECILHO À PROTEÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS?

Durante o 4º Ciclo de Revisão Periódica Universal, realizado em novembro de 2022 em Genebra, o Observatório Parlamentar da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados apresentou relatórios sobre o cumprimento, pelo Brasil, das 240 (duzentos e quarenta) recomendações feitas pela Organização das Nações Unidas no Ciclo anterior, divididas em 26 (vinte e seis) temas, como segurança pública, saúde e tratados internacionais. Assim, avaliou o Observatório: 04 (quatro) recomendações haviam sido cumpridas; 51 (cinquenta e uma) estavam em progresso; 01 (uma) se encontrava estagnada; 13 (treze) tinham pontos positivos e negativos em relação ao seu cumprimento; 136 (centro e trinta e seis) não haviam sido cumpridas; 35 (trinta e cinco) se encontravam em situação de retrocesso [1].

O tema de proteção de direitos humanos é recorrentemente visto com pessimismo. É comum encontrar notícias de críticas ou de inobservância das recomendações feitas por organizações internacionais, tal como exemplificado acima. Interpretações de direito internacional, que não podem ser impostas aos Estados individuais [2], tendem a não ser acatadas. É fato que o respeito aos direitos humanos depende de constantes reivindicações, e talvez um dos cernes deste problema seja a concepção deturpada de que sua promoção e a deferência a autoridades internacionais representa uma ameaça direta ao poder soberano dos Estados.

O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII), criado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para lidar com crimes de guerra ocorridos durante os conflitos nos Balcãs na década de 1990, teceu algumas considerações dignas de nota em uma decisão interlocutória proferida no caso Promotoria vs. Duško Tadić, em 1995. Para o Tribunal, o conceito de soberania, visto como um atributo sagrado da estatalidade, perdeu força nas sociedades democráticas em matéria de direitos humanos, pois a solidariedade entre as nações tornou necessária a criação de regras alheias a barreiras territoriais; em questões que afetam a comunidade mundial, a abordagem voltada ao ser humano gradualmente substitui a abordagem orientada à soberania de um Estado [3].

Apesar de a decisão tratar especificamente da primazia de um tribunal internacional sobre a autoridade jurisdicional doméstica quanto a crimes de guerra e crimes contra a humanidade, a deferência (ou não) de um Estado nacional às autoridades externas é um tema constante no sistema internacional de direitos humanos como um todo e levanta um questionamento: seriam a soberania e a prevalência dos direitos humanos – consideradas, no caso do Brasil,  como fundamento e princípio da República, respectivamente, nos termos do artigo 1º, inciso I, e 4º, inciso II, da Constituição Federal de 1988 – tópicos incompatíveis entre si?

A resposta é negativa. Mecanismos de contenção (inclusive do poder do próprio Estado) fazem parte de democracias sólidas; no plano internacional, propõe-se apenas a superação da ideia de soberania externa absoluta em prol de uma compartilhada [4]. Nesse sentido, é comum dizer que os Estados nacionais “abrem mão de parte de sua soberania” em benefício de uma cooperação internacional voltada à promoção dos direitos humanos. Embora não seja incorreta, a expressão deve ser vista com certo cuidado.

Afinal, o que significa abdicar de parte da soberania? Başak Çali [5] aponta três possíveis linhas de raciocínio usadas por uma autoridade interna para rejeitar uma interpretação conferida por uma externa: (i) avaliar a interpretação somente por seu conteúdo; (ii) classificar a autoridade internacional como ilegítima em relação ao Estado nacional e, consequentemente, ignorar completamente o conteúdo da interpretação; (iii) reconhecer a legitimidade da autoridade internacional e discordar de uma interpretação em específico por não a considerar razoável.

A primeira leitura remete à ideia de um Estado que integra a comunidade internacional de proteção de direitos humanos apenas formalmente, por mera conveniência (para evitar pressões diplomáticas, por exemplo). Em termos práticos, o Estado individual não se sujeita a qualquer vinculação à autoridade interpretativa externa, sempre fazendo prevalecer sua própria vontade.

A segunda leitura talvez represente um dos maiores problemas quanto à proteção internacional de direitos humanos. Nela, o Estado não observa o conteúdo da interpretação, descartando-a por negar a legitimidade das instituições internacionais enquanto autoridades. Talvez essa linha de raciocínio seja ainda mais lesiva do que a anterior, pois revela um contorno mais profundo da concepção de soberania absoluta. Aqui, a autoridade interna sequer avalia se o conteúdo de uma determinada interpretação é razoável ou se lhe pode ser benéfica, sendo a rejeição sumária da figura da autoridade interpretativa internacional uma afirmação do poder estatal ilimitado – posição que, vale observar, relaciona-se diretamente com regimes totalitários [6].

Se afastar interpretações internacionais sob o argumento da impossibilidade de limitação de soberania é uma postura equivocada, o mesmo pode ser dito sobre as considerar como inquestionáveis. No ponto, a terceira leitura é a defendida por Çali e de fato parece acertada. Nela, o Estado reconhece a legitimidade das autoridades internacionais e uma vinculação condicionada às suas interpretações. Diferentemente do que ocorre na primeira linha de raciocínio, no entanto, a condição não é a interpretação externa ser igual à interna; nesta leitura, avalia-se a razoabilidade da interpretação internacional, ainda que essa divirja do entendimento do Estado individual.  Em suma, a deferência à autoridade externa não é irrestrita, pois a soberania ainda existe e deve ser respeitada. A rejeição de certa interpretação, porém, deve ser fundamentada e destinada a proteger a visão mais benéfica ao ser humano, objetivo que é, ou pelo menos deveria ser, primordial para o desenvolvimento de uma cultura global de proteção de direitos humanos.

Enfim, soberania e deferência não são termos excludentes entre si. O princípio constitucional (no caso específico do Brasil) de prevalência dos direitos humanos não se opõe ao fundamento de soberania: em um Estado Democrático de Direito, todos se submetem às normas jurídicas – inclusive o próprio Estado, cujo poder se limita em prol dos direitos dos indivíduos. Havendo equilíbrio entre soberania e deferência, a estatalidade não se compromete; ao revés, o Estado avança em seu papel de defender uma abordagem baseada no ser humano e, em consequência, reafirma seu status de Estado soberano.

[1] Observatório Parlamentar apresenta relatórios sobre cumprimento de recomendações de direitos humanos. Agência Câmara. 10 nov. 2022. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/observatorio-parlamentar-da-revisao-periodica-universal-da-onu/noticias/observatorio-parlamentar-apresenta-relatorios-sobre-cumprimento-de-recomendacoes-de-direitos-humanos>. Acesso em 12 mai. 2023.

[2] ÇALI, Başak. The letimacy of internacional interpretativa authorities for human rights treaties: na indirect-instrumentalist defence, p. 141. In FØLLESDAL, Andreas; SCHAFFER, Johan Karlsson; ULFSTEIN, Geir. The Legitimacy of International Human Rights Regimes. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 141-164.

[3] UNITED NATIONS. International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia. Decision on the defense motion for interlocutory appeal on jurisdiction. Appeals Chamber. 2 out. 1995. Itens 55-58 e 97. Disponível em: <http://www.icty.org/x/cases/tadic/acdec/en/51002.htm>. Acesso em 13 mai. 2023.

[4] CENCI, Elve Miguel; MUNIZ, Tânia Lobo. Esplendor e crise do constitucionalismo global. Sequência estudos jurídicos e políticos, v. 41, n. 84, 2020, p. 89–108. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2020v43n84p89>. Acesso em 13 mai. 2023.

[5] ÇALI, Başak. Op. Cit., p. 145-147.

[6] Em 2017, ao denunciar a Carta da Organização dos Estados Americanos, o governo venezuelano afirmou que a OEA “foi criada e consolidada como instrumento infame ao serviço da interesses hegemônicos imperiais muito claramente definidos, privando-se da missão possível e correspondente à de uma organização internacional que imponha e respeite os princípios de Direito Internacional, principalmente de igualdade soberana, independência e autodeterminação”. No mesmo documento, continua: “Esse escudo de proteção da autodeterminação, a independência, a paz, a integridade territorial e a soberania marcam o caminho indissolúvel que herdamos de nossos Libertadores para proteger a dignidade da Pátria” (tradução nossa do original em espanhol). Disponível em: <http://www.minci.gob.ve/wp-content/uploads/2019/04/CARTA-OEA-2.pdf>. Acesso em 13 mai. 2023.

 

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