O CASO DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS: UM PARALELO ENTRE BRASIL E ALEMANHA

Entre os mais diversos desafios da jurisdição constitucional, a interpretação e aplicação concreta de direitos constitucionalmente consagrados tem papel proeminente. A colisão de direitos fundamentais demanda uma clareza na aplicação dos elementos teóricos, que muito reflete nas consequências práticas do exercício desses direitos.

É comum a colisão da liberdade de expressão com outros direitos fundamentais.[1] Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815, vulgarmente conhecida como o caso das “bibliografias não autorizadas”, o Supremo Tribunal Federal (STF) tratou sobre os limites desse direito com os limites do direito à honra, intimidade e privacidade.

No caso, foi dada interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, para a declaração da inexigibilidade da autorização de pessoa biografada para que fossem publicadas obras bibliográficas, literárias ou audiovisuais sobre ela. Também foi declarada desnecessária a autorização de figuras consideradas coadjuvantes na bibliografia para a sua publicação.

Um dos argumentos apresentados foi o da vedação da censura. Essa norma, que em um primeiro momento, somente vincularia o poder estatal, passa a vincular também o particular. Novamente, o STF reconheceu a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. No caso, a possibilidade de um particular proibir a publicação de uma biografia passou a ser tratada como uma censura privada.

Em se tratando de um controle abstrato de constitucionalidade, a corte tratou da questão em termos gerais. Paira no Supremo Tribunal Federal uma proteção preferencial à liberdade de expressão, ainda que inexista ordem de valores aos direitos fundamentais. Se for o caso, há a possibilidade de indenização a posteriori e o exercício do direito de resposta.

A biografia é um gênero artístico que está protegido pelo direito à liberdade de expressão, liberdade artística e de informação. Geralmente, o biografado é figura pública, cuja trajetória de sua vida tem alguma notoriedade perante a sociedade. Por esse motivo, a corte definiu que as vantagens proporcionadas pela proibição de biografias não autorizadas são menores do que os benefícios extraídos à sociedade.[2]

A decisão da ADI 4815 pelo STF não esgota totalmente a discussão sobre as biografias não autorizadas. Não é necessária a autorização do biografado, mas excepcionalmente, é possível que se predomine outro direito fundamental.[3] Em termos processuais, o ônus da prova recai ao interessado.

Há autores que defendem que, ao analisar o caso concreto, se for constatado o abuso de direito que gravemente afete outro direito fundamental, de forma excepcional, seria possível não apenas a condenação a indenizar, mas também a decisão judicial de proibição da publicação da obra.[4] Seria possibilitar excepcionalmente a censura prévia. No mesmo sentido defenderam os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes no julgamento da ADI 4815.[5] O Brasil não possui jurisprudência consolidada sobre se e quando pode ser admitida essa exceção.

Apesar da parcial ausência de clareza sobre os critérios que orientam a solução dessa colisão e das divergências de fundamentação entre os Ministros, fato é que os direitos de liberdade de expressão foram preferidos no caso das bibliografias não autorizadas. Mas essa não é a única solução possível para o impasse. Por sua vez, o Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCF), ao julgar um caso envolvendo uma obra autobiográfica (“Esra”), desenvolveu um critério denominado Je-desto-Formel (pt. Fórmula quanto mais [atinge personalidade], maior [deve ser a ficção]),[6] segundo o qual o grau de ficção de uma obra e a proteção da liberdade artística são diretamente proporcionais. Ou seja, quanto mais uma obra se afastar da realidade, maior será a proteção da liberdade artística do autor.[7] Segundo essa ideia, os direitos de personalidade recebem proteção considerável.

O romance “Esra” retratou detalhes íntimos da vida do autor com uma atriz estrangeira, incluindo descrições da vida sexual do casal. A obra foi apresentada como uma ficção e utilizou nomes fictícios às personagens, mas era tão rica em detalhes, que era evidente a identificação da atriz. O autor narrou, inclusive, uma passagem em que a atriz afirmou que não gostaria de ser exposta em sua intimidade.[8] A mãe da atriz também apareceu no livro e foi retratada uma relação odiosa entre ela e o autor.

Logo após o lançamento, a obra foi proibida pelos tribunais de Munique, em razão da ofensa aos direitos de personalidade de Esra e sua mãe. Ao ser julgada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCF), entendeu que seria preciso distinguir a mensagem central da obra (Aussagekern) e a forma que ela foi apresentada (Einklwidung), para que seja possível observar o quanto da obra é realidade ou ficção.[9]

Segundo essa decisão, existe a presunção do direito do autor de que se trata de uma ficção. Isso significa que mesmo que a obra tenha sido baseada em fatos, o leitor estaria consciente que a obra é fictícia, pois teria o objetivo de entreter, e não o de informar.[10] No caso, o tribunal entendeu que houve ofensa aos direitos de personalidade de Esra, mas o mesmo entendimento não foi aplicado a sua mãe, pois os fatos narrados sobre ela eram claramente ficcionais, diferentemente dos fatos narrados sobre a atriz.[11]

Ao analisar ambos os casos, algumas diferenças de interpretação são notadas. O Brasil tem maior tendência de proteção da liberdade de expressão (incluída, aqui, a proteção da liberdade artística) e não tolerar a possibilidade da censura, se comparado com a Alemanha. Como a análise feita por esta última foi de um caso concreto, foram desenvolvidos critérios mais específicos, se comparado ao viés abstrato do caso brasileiro.

No julgamento da ADI foi reforçado inúmeras vezes o fato de que a esfera do âmbito de proteção do direito à honra, intimidade e privacidade de figuras públicas é menor do que dos cidadãos “comuns”.[12] Pode surgir o debate, então, acerca da constitucionalidade da exposição íntima de figuras não públicas em obras autobiográficas. A exposição, neste caso, não causaria um maior dano à pessoa do que uma contribuição para o debate público? Poderia ser questionado também a exposição da esfera íntima de uma figura pública, mas de um aspecto que nada tem relação com o interesse público. O caminho ideal ainda seria o de proteção da liberdade de expressão?

Há autores que, ao criticar o posicionamento do STF, defendem que a ordem constitucional brasileira não estabeleceu uma hierarquia dos direitos fundamentais que pudesse ser definida abstratamente, de modo que caberia apenas ao judiciário decidir, de forma concreta, acerca da possibilidade de veiculação de uma obra biográfica. Isso porque, a existência de uma obra que narre fatos inverídicos ou que não contribua para tornar pública uma informação que é de interesse da sociedade, apenas se utilizaria da exposição íntima de alguém para obter recursos econômicos.[13]

Ante a complexidade do tema, é dificultosa a definição clara do que pode ser considerado de interesse da sociedade ou não, para que isso seja usado como um critério pelo judiciário. Ainda, a aplicação da lógica alemã no caso brasileiro não necessariamente será a opção mais coerente, considerando as diferenças não só de normas, mas também histórico-culturais.

Em se tratando de um controle abstrato, o STF manteve posicionamento já adotado em casos anteriores[14], quanto a vedação à censura. Isso não significa uma ausência de tutela aos direitos da personalidade. Em face de eventual grave violação do direito à intimidade, honra ou privacidade, é cabível a análise em concreto pelo judiciário. A decisão significou um cuidado para não se manter no ordenamento jurídico uma norma (regra geral)[15] que restringisse de forma veemente um direito tão essencial para as democracias constitucionais, a liberdade de expressão.

[1] SOUZA, Roberta Kelly Silva; SEIXAS, Bernardo Silva de. Biografias Não Autorizadas Conflito entre a Liberdade de Expressão e a Inviolabilidade da Intimidade. Revista Quaestio Iuris, [S.L.], v. 9, n. 1, p. 441-459, 27 fev. 2016. Universidade de Estado do Rio de Janeiro. http://dx.doi.org/10.12957/rqi.2016.18397. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/18397/15806, p. 453. Acesso em: 08 ago. 2023.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815. Acórdão. Brasília, 2015. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10162709, p. 128/129. Acesso em: 08 de ago. 2023.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815. Acórdão. Brasília, 2015. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10162709, p. 229. Acesso em: 08 de ago. 2023.

[4] DIAS, Roberto. Liberdade de expressão: biografias não autorizadas. Revista Direito, Estado e Sociedade, [S.L.], v. 41, n. 41, p. 204-224, 1 set. 2014. Programa de Pós Graduacao em Direito da PUC-Rio. http://dx.doi.org/10.17808/des.41.161. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/161/145, p. 220. Acesso em: 08 ago. 2023.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815. Acórdão. Brasília, 2015. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10162709, p. 229 e 233. Acesso em: 08 de ago. 2023.

[6] Tradução em: ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 53.

[7] ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 53.

[8] ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 51.

[9] ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 52.

[10] JAYME, 2012, p. 145 apud Ody, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 52.

[11] ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 52.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815. Acórdão. Brasília, 2015. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10162709, p. 103. Acesso em: 08 de ago. 2023.

[13] ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e arte: o direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018, p. 64.

[14] Como na ADPF 130.

[15] A ADI foi julgada procedente para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto.

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