Recentemente foi noticiado que a rede de fast food McDonald’s admitiu que o seu sanduíche McPicanha não possui picanha na composição da carne, mas apenas molho que simula o aroma e o sabor de picanha.
E nesses tempos estranhos de plot twists jurisprudenciais[1] e gambiarras jurisdicionais[2] – à semelhança do sanduíche de “picanha” -, não podemos olvidar de realizar constrangimentos epistemológicos às decisões que se mostram alheias ao próprio Direito e ao princípio da legalidade, as quais apenas reafirmam o “poder”[3] dos Tribunais atuarem do modo solipsista (o que não poderia ocorrer no Direito Democrático).
Em razão disso, talvez um dos mais emblemáticos julgados do Superior Tribunal de Justiça é a decisão que tratou acerca do rol taxativo do Agravo de Instrumento, previsto no artigo 1.015 do CPC.
O Código de Processo Civil de 2015, baseado em uma racionalidade econômica e eficientista[4], alterou o sistema recursal do CPC/73, em especial o regramento do cabimento do Agravo de Instrumento. Anteriormente, as decisões interlocutórias eram agraváveis de imediato e, quando suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, o Agravo seria interposto por instrumento.
Isso se deu, pois “a intenção da nova lei foi, óbvia e evidentemente, a de reduzir o número de agravos, limitando a quantidade de decisões que poderiam ser impugnadas imediatamente”.[5]
Desse modo, o artigo 1.015 do CPC trouxe um rol taxativo de quais decisões poderiam ser impugnadas pela via do Agravo de Instrumento, enquanto que as decisões não constantes desse rol seriam objeto de impugnação em preliminar no Recurso de Apelação ou Contrarrazões (art. 1.009, §1º). Assim, decisões que versarem sobre (i) tutelas provisórias; (ii) mérito do processo; (iii) rejeição da alegação de convenção de arbitragem; (iv) incidente de desconsideração da personalidade jurídica; (v) rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação; (vi) exibição ou posse de documento ou coisa; (vii) exclusão de litisconsorte; (viii) rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio; (ix) admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros; (x) concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução; (xi) redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1º ; e (xii) outros casos expressamente referidos em lei.
Incoerentemente, o parágrafo único do mesmo artigo prevê que também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário, sem que haja qualquer taxatividade quanto ao conteúdo decisório.
Obviamente que houve uma piora no tocante à previsão do rol taxativo, porque diversas decisões interlocutórias não foram incluídas e certamente seriam importantes de serem objeto de recurso imediato. Como exemplo, a decisão de saneamento e organização; decisão que determina a produção de prova ex officio; decisões que rejeitam nulidades e também que fixam honorários periciais em valores não condizentes com o objeto da perícia na fase conhecimento, somente para ficar com essas.
E essa piora se dá no momento em que as decisões não agraváveis somente serão impugnáveis posteriormente na Apelação ou Contrarrazões, ocasião em que, caso acolhida a irresignação, várias idas e vindas procedimentais ocorrerão, como aponta Érica Alves Aragão:
Contudo, verificou-se que o artigo 1.015, do CPC, desviando-se desse objetivo, não está em consonância com o processo constitucional democrático, na medida em que pode ser fonte para o desrespeito de alguns direitos e garantias fundamentais. Nesse aspecto, constatou-se ao longo do trabalho que a opção por um rol taxativo e a modificação do regime de preclusão, sob a justificativa de gerar um processo mais célere e mais democrático, simplificando o sistema recursal, pode, na verdade, causar um efeito reverso ao pretendido, em clara ofensa à garantia da duração razoável do processo. Isso porque, determinadas nulidades, não agraváveis de instrumento, somente poderão ser arguidas em preliminar de apelação ou contrarrazões e, se acolhidas, podem promover a invalidação de todos os atos processuais depois de encerrada a sua tramitação, gerando idas e vindas procedimentais. Ademais, verificou-se que o fato de haver a postergação da recorribilidade das decisões interlocutórias para o momento da apelação pode ensejar um considerável aumento da complexidade deste recurso, sendo necessária, então, uma análise individualizada dos processos, tornando-se um obstáculo à padronização dos julgamentos. [6]
Em razão dessas problemáticas do rol taxativo, parte da dogmática tradicional passou a defender que a taxatividade não seria incompatível com uma interpretação extensiva de cada tipo decisório previsto no art. 1.015. Para essa corrente seria possível a interposição de Agravo de Instrumento em algumas situações que não estariam expressamente previstas, a partir de uma interpretação que estenderia as previsões do artigo 1.015 para abarcar os temas ali contidos.[7]
Ante a variada interposição de Agravos de Instrumento nos tribunais e às divergências interpretativas geradas (manicômio jurisprudencial), a questão foi parar no Superior Tribunal de Justiça, que afetou dois Recursos Especiais como repetitivos (REsp’s nº 1.696.396/MT e 1.704.520/MT).
Os mencionados REsp’s, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, acabaram por trazer uma reviravolta, pois não acolheram nem a tese da taxatividade nem a da interpretação extensiva. Assim, houve a fixação da denominada taxatividade mitigada. Para o tribunal, caso haja “urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação” seria possível a interposição imediata de Agravo de Instrumento.
Nas palavras de Teresa Arruda Alvim, a taxatividade mitigada “significa que os casos em que o espaço de tempo entre a decisão e a possibilidade de que esta seja impugnada e, eventualmente, reformada, criar o risco de que fique esvaziada a eficácia do provimento do recurso, serão casos de cabimento do agravo”. [8]
Pois bem.
O rol do artigo 1.015 para o STJ parece, mas não é taxativo. Assim como o McPicanha, que parece picanha, mas não é. A mitigação assemelha ao molho de picanha (aroma) e quer dar ares de manter uma suposta legalidade (a verdadeira picanha!) à “tese” fixada.[9]
Perceba, o STJ buscou uma tentativa de retomar o regime do CPC/73 e abriu uma rota para o cabimento dos recursos. No entanto, o que ocorreu foi uma decisão alheia ao próprio Direito, na medida em que houve a criação jurisprudencial de uma hipótese de cabimento de recurso não prevista em lei. E essa é a nossa preocupação, por mais que o rol taxativo do artigo 1.015 não seja adequado e traz problemas.
Ora, não poderia o STJ ter criado o Direito, de modo solitário, para formar um precedente vinculante alheio à legalidade, com vestes de que estaria em conformidade com a lei e a Constituição. O Judiciário não é o locus para que juízes e tribunais possam fazer escolhas arbitrárias de qual sentido irão dar à normatividade e criar hipóteses recursais que não são previstas na lei! Há clara atuação arbitrária do Tribunal Superior, pois a competência para criação de regras sobre procedimento judicial é da função legislativa e não de juízes ou tribunais!
Nesse sentido, não pode o STJ assumir a função de legislador, pois este não é o seu papel. Essa atitude ativista nada mais é que uma excepcionalidade cotidiana aos moldes de Oskar Von Bülow[10], em que “passa-se a admitir, sem questionamentos, que uma classe especialíssima de homens instale, na casuística dos conflitos, a exceção cotidiana. Intrometem-se, na atividade decisória, contingências arbitrariamente selecionadas que estariam a impor a negação da aplicação da ordem jurídica vigente”.[11]
Desse modo, a taxatividade mitigada não se passa das ressonâncias do Movimento do Direito Livre (livre da legalidade), o qual preconizava que “o julgador tivesse a liberdade para decidir dentro ou fora do sistema, a fim de encontrar a norma jurídica a ser aplicada à lide em julgamento, a partir de seus sentimentos, senso de justiça, consciência e experiência, sendo possível que tal decisão fosse, inclusive, contra legem”.[12]
E além da problemática da livre interpretação realizada pelo STJ, outra piora foi causada: o julgado tentou trazer um precedente-relógio, mas na verdade criou mais nuvens jurisprudenciais.[13] Isso porque, cada tribunal local interpreta de um modo o que seria a “urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”. Assim, muitos procedimentos em que seria necessária a interposição imediata do Agravo de Instrumento, o Tribunal local acaba por entender que não há urgência e não conhece o recurso. E, ao recorrer dessas decisões, a parte não consegue acessar o próprio STJ, já que os recursos posteriores também se mostram insuficientes em razão do entendimento de que o julgado estaria em conformidade com o repetitivo (art. 1.030, I).
É perceptível, portanto, que esse (in)consequencialismo decisório[14] do STJ acerca do cabimento do Agravo de Instrumento é extremamente perigoso e inconstitucional, pois se torna imune a qualquer fiscalidade pela via de procedimentos processualizados, além de carecer de qualquer legitimidade democrática, o que de forma alguma pode ser admitido após a vigência da Constituição de 1.988.
E vemos que essa “moda” lançada pelo STJ – o parece, mas não é -, não só “pegou” o McDonald’s, mas o Whopper de Costela sem costela do Burguer King e o leite condensado da Nestlé que é uma mistura sem efetivamente ser leite condensado.
É papel da literatura jurídica enfrentar esses problemas, a fim de impedir que arbitrariedades e inconstitucionalidades sejam legitimadas por propagandas enganosas de salvação do Direito, mas que apenas contribuem para sua autofagia!
[1] CARVALHO, João Carlos Carvalho. Segurança jurídica e os plot twists do romance em cadeia. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/seguranca-juridica-e-os-plot-twists-do-romance-em-cadeia/
[2] CARVALHO, João Carlos Carvalho. O princípio da ineficiência e as gambiarras jurisdicionais. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/o-principio-da-ineficiencia-e-as-gambiarras-jurisdicionais/
[3] Não é exagero lembrar que, nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da Constituição de 1.988, todo poder emana do povo.
[4] FREITAS, Helena Patrícia. Eficiência da jurisdição: necessidade de sua (des)construção para efetivação do modelo constitucional de processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. Nesse sentido, já apontamos que, no CPC/15, “os recursos são colocados no último livro, antes das disposições transitórias, como se fossem um entrave à atividade jurisdicional e a principal causa da morosidade dos tribunais”. MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Poderes instrutórios do juiz no Código de Processo Civil e processualidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2.022, p. 66.
[5] ALVIM, Teresa Arruda. Os agravos no CPC de 2015. 5 ed. Curitiba: Direito Contemporâneo, 2021, p.95.
[6] ARAGÃO, Érica Alves. A nova sistemática do Agravo de Instrumento no Código de Processo Civil de 2015: uma análise a partir das garantias do processo constitucional democrático Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte, 2018, p. 154.
[7] DIDIER JÚNIOR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13 ed. Salvador: JusPodivm, 2016, v.03, p. 209-212.
[8] ALVIM, Teresa Arruda. Os agravos no CPC de 2015, cit., p.154.
[9] Paradoxalmente, o acórdão cria o Direito, mas fundamenta que “é tarefa desta Corte, pois, conferir à regra do art. 1.015 do CPC a interpretação que melhor se coaduna com a sua razão de existir e com as normas fundamentais insculpidas pelo próprio CPC”. Teresa Arruda também defende que “o critério eleito no acórdão para viabilizar a imediata impugnabilidade da decisão é, de fato, harmônico com a Constituição Federal”. ALVIM, Teresa Arruda. Os agravos no CPC de 2015, cit., p.160.
[10] THIBAU, Vinicius Lott. Oskar Von Bülow e o nazismo. Revista Meritum, Belo Horizonte, vol. 16, n. 2, p. 38-50, mai./ago. 2021. Disponível em: http://revista.fumec.br/index.php/meritum/article/view/8518
[11] LEAL, André Cordeiro. THIBAU, Vinicius Lott. A dogmática processual e a exceção cotidiana. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n.92, p. 13-29, out./dez.2015, p. 28.
[12] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Autoritarismo decisório no Código de Processo Civil: as ressonâncias do Movimento do Direito Livre. In: ALVES, Lucélia de Sena; BORGES, Fernanda Gomes e Souza. (Orgs.) 5 anos de vigência do Código de Processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021, p.320.
[13] Sobre a relação entre nuvens, relógios e os precedentes, conferir texto de nossa autoria: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: entre nuvens e relógios. Revista Meritum, Belo Horizonte, vol. 15, n. 1, p. 118-146, jan./abr. 2020. Disponível em: http://www.fumec.br/revistas/meritum/article/view/7759
[14] TORRES, Tiago Henrique. Verdade ou consequência? O que se extrai do neoliberalismo processual. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/verdade-ou-consequencia-o-que-se-extrai-do-neoliberalismo-processual/