O Código de Processo Civil de 2015, a pretexto de promover a chamada “justiça multiportas” tratou em seu art. 3º, acertadamente, sobre outros meios de solução de litígios que não o da via jurisdicional: arbitragem (§ 1º) e autocomposição, dando a esta especial atenção ao prever obrigação do Estado de promover, quando possível, a solução consensual dos conflitos (§ 2º) e dos profissionais do Direito (juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público) de estimular a autocomposição, dentro e fora do processo (§ 3º).
As decorrências dessas previsões são múltiplas: 1) a arbitragem não é incompatível com a inafastabilidade da jurisdição, pois decorre da autonomia da vontade das partes; 2) os entes federados estatais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) devem buscar a via autocompositiva para a resolução dos seus conflitos sempre que isso for possível em termos jurídicos; 3) advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público têm o dever de buscar a solução consensual dos conflitos em que estiverem atuando, quando houver possibilidade jurídica disso, inclusive têm o dever de apresentar aos seus clientes (quando for o caso) as possibilidades autocompositivas antes da propositura de demandas judiciais; 4) uma vez levado o conflito ao Judiciário, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público têm o dever de estimular a solução consensual quando houver sua possibilidade jurídica; 5) é dever do juiz, uma vez provocado para o exercício da jurisdição, verificando a possibilidade jurídica da autocomposição, em respeito à autonomia da vontade das partes, estimulá-la; 6) e até se poderia cogitar de um dever do Judiciário (instituição) promover medidas de conscientização sobre os benefícios da autocomposição, dentro ou fora do processo, sempre respeitando a autonomia da vontade das partes.
É evidente que a preocupação do legislador ao produzir o texto do CPC/2015, em grande medida, foi com o que se convencionou chamar de “cultura da litigiosidade”.
Segundo o último relatório Justiça em Números, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2020, com relação ao ano de 2019, havia quase 80 milhões de processos em trâmite no Poder Judiciário brasileiro[1]. Esses números estratosféricos criam uma série de dificuldades para a gestão do Poder Judiciário e para a adequada prestação de seus serviços.
Por esse motivo, muitas medidas legislativas foram pensadas para frear essa cultura e diminuir a quantidade de processos judiciais em trâmite no Brasil.
O fato, entretanto, é que os conflitos não surgem por causa da lei processual, de modo que a mudança desta para frear o crescimento do número de litígios é uma crença pueril assemelhada àquela de que alterar a técnica cirúrgica evitaria o entupimento das coronárias da pessoa que se alimenta mal e não faz exercícios físicos. O mal está na gordura da picanha. Trocar o fio da sutura não resolverá o problema.
Se o conflito surge na sociedade, é necessário ir até lá investigar as razões do seu surgimento. É preciso ir ao direito material verificar se ali há falhas no regramento da vida social. Se há uma cultura social de litígio, é preciso verificar o seu nascedouro e estancar a sangria na fonte e não no destino final.
O Judiciário é o destino final dos conflitos que nasceram em outro local. Conter litígios no Judiciário é enxugar gelo de uma geleira eterna com panos encharcados.
Apesar disso, o legislador foi mais a fundo na tentativa de enxugar o gelo da litigiosidade com a autocomposição e previu no CPC/2015, art. 334 a audiência de mediação ou de conciliação como obrigatória, em regra.
Não haverá obrigatoriedade da realização da audiência quando o direito discutido não puder ser objeto de transação ou quando as duas partes manifestarem expressamente seu desinteresse na composição consensual (§ 3º).
Em todos os demais casos, a audiência deve ser realizada, ainda quando uma das partes tenha se manifestado no sentido de que não deseja tentar acordo. Se esta parte não comparecer à audiência, cometerá ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionada com multa (§ 8º).
E também há quem defenda que aquele que comparece na audiência e não faz proposta ou se recusa a negociar também deve ser penalizado, por comportamento não-cooperativo. Aqui, ao que parece, tem-se uma ideia de aplicação de pena sem previsão do tipo.
Diante disso tudo, a questão que se coloca é: a obrigatoriedade dessa audiência adequa-se ao modelo constitucional de processo?
Quando se fala em modelo constitucional de processo, o que se quer dizer é que há normas constitucionais que instituem o processo como uma garantia das pessoas contra o poder jurisdicional.
O ponto de partida é a previsão da CF/1988, art. 5º, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Com Glauco Gumerato Ramos[2], Eduardo José da Fonseca Costa[3] e todos os demais autores desta coluna, entende-se que essa disposição constitucional aniquila a ideia de que o processo é um instrumento do poder jurisdicional para a realização da justiça ou do direito material. O processo é, isso sim, um limite à atuação do poder jurisdicional no caso concreto, que, seguido como método de trabalho, legitima democraticamente a atividade de dizer o direito.
Essa compreensão de que o processo é para as pessoas e não para o Judiciário é fundamental para compreender que o sistema instituído pelo CPC/2015, art. 334, com a obrigatoriedade da audiência de mediação ou de conciliação, não se adequa ao modelo constitucional de processo.
A forma como se instituiu a obrigatoriedade da audiência dá, num primeiro momento, a impressão de que o legislador tinha a intenção de criar uma cultura da autocomposição dentro do Direito Processual. E isso, como se sabe, é uma quimera. Lei processual não cria cultura social.
Então, analisando mais a fundo e reconhecendo que o legislador não é ingênuo, forçosa a conclusão de que a real intenção foi a de reduzir a litigância, obrigando as partes a buscarem a autocomposição, para diminuir o número de demandas nos escaninhos do Poder Judiciário.
Ora, se o processo é das pessoas, como garantia contra o Estado para proteção da liberdade, não pode a lei ou o juiz impor que a solução do conflito já judicializado se dê fora desse âmbito de liberdade.
O devido processo legal, é bom frisar, garante a liberdade das partes durante o processo e depois da prolação da decisão final, impondo ao Judiciário um método de trabalho e ao legislador o respeito a essa noção fundamental.
A imposição de participação na audiência e, de forma mais absurda, a imposição de oferecimento de proposta de acordo, sob pena de multa naquelas hipóteses em que a parte não deseja tentar a autocomposição é ofensa direta à garantia de liberdade instituída pelas normas constitucionais de natureza processual.
A autocomposição é regida, basicamente, pela noção de autonomia da vontade. E essa autonomia não se manifesta apenas no momento das negociações, mas, principalmente, antes delas.
Veja-se que a garantia de liberdade instituída pelo devido processo legal na Constituição e a noção de autonomia da vontade que rege a autocomposição são complementares, porque ambas tratam de, em essência, do exercício do direito fundamental de liberdade das pessoas.
Para que a parte exerça de forma autônoma sua vontade, ela há de ter esclarecimentos suficientes sobre os riscos do litígio. Isso permitirá que ela que possa decidir se deseja entabular qualquer negociação. E a obrigação de prestar esses esclarecimentos é de seu defensor. Não é do juiz da causa e nem do mediador ou do conciliador.
Se o juiz da causa informa a parte sobre os riscos do litígio, corre sério risco de pré-julgar e contaminar-se, deixando de ser imparcial. Ou pior: contaminar-se por estimular a autocomposição naqueles casos em que não deseja proferir sentença.
Convencer uma parte a sentar à mesa das negociações não é tarefa dos sujeitos imparciais: nem do juiz e nem dos auxiliares da justiça.
Avaliação de riscos no processo é atividade eminentemente parcial e deve ser feita pelos respectivos advogados que, dentro dos limites éticos e normativos, devem expor as possibilidades e as eventuais estratégias, deixando que as partes decidam sobre o caminho a ser percorrido.
A advocacia que renuncia a essa prerrogativa está condenada a ser serva do arbítrio judicial.
E o exercício dessa prerrogativa não significa uma reação da antipática “cultura do litígio” à simpática “cultura da paz”. Ele é decorrência da compreensão de que os conflitos levados ao Judiciário são também resolvidos pela adoção de estratégias de luta por partes que estão em polos opostos disputando o mesmo bem da vida.
E reconhecer isso não implica em considerar que a autocomposição é carta fora do baralho. Não. Ela pode ser uma boa estratégia a ser utilizada pelas partes no conflito já judicializado, mas a decisão sobre sentar à mesa de negociações deve ser das partes, no exercício pleno de sua autonomia da vontade, como uma das manifestações da garantia de liberdade que o devido processo legal instituiu.
Há um vício no ponto de partida quando uma das partes, sob ameaça de ser penalizada, é obrigada a sentar à mesa de negociações.
E sobre isso nem cabe o argumento de que, por questões culturais e intelectuais, muitas pessoas sequer sabem que desejam tentar o acordo e o rejeitam sem a noção completa das suas vantagens.
Ora, se são os agentes estatais que precisam desvendar no íntimo dos litigantes que quando eles dizem que não querem negociar, na verdade eles querem, tem-se mais uma razão para se rechaçar o sistema de autocomposição instituído pelo CPC/2015, art. 334, pois ele confia que os auxiliares da justiça e, eventualmente, o juiz, mais do que dotes jurídicos, possuem também dotes premonitórios e psicanalíticos profundos.
Trata-se, como se pode ver, de uma questão de muita fé e de baixíssima densidade jurídica. Fé demais; Direito de menos.
Referências
BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acessado em 09/04/2021.
COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acessado em 09/04/2021.
COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade (freedom) e garantia de liberdade (liberty). Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty. Acessado em: 09/04/2021.
RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. MPMG Jurídico, Belo Horizonte, v.4, n.18, p.8-13, out./dez., 2009.
[1] BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acessado em 09/04/2021.
[2] RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. MPMG Jurídico, Belo Horizonte, v.4, n.18, p.8-13, out./dez., 2009.
[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acessado em 09/04/2021.
COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade (freedom) e garantia de liberdade (liberty). Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty. Acessado em: 09/04/2021.