102. POSFÁCIO DO LIVRO “MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS NAS OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS”, ESCRITO POR LUCIANA BENASSI GOMES CARVALHO

UM GRITO DE SOCORRO EM FAVOR DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS

Medidas Executivas Atípcias Luciana Benassi Contraditor

“Sou a favor da liberdade. Acho a liberdade mais importante que o pão.”

(Nelson Rodrigues).

“Mesmo ao se admitir que a nebulosa expressão ‘justiça social’ possa ter um significado discernível, ela parece indicar, contudo, que a mera justiça formal não é o suficiente, mas precisa ser suplementada e sobreposta por um tipo de justiça baseado em resultados sociais desejados. De qualquer forma, o regime das leis, ‘um governo baseado nas leis e não na vontade dos homens’, apresenta-se como antítese da política jurídica ‘socialmente engajada’, pois nessa última os resultados sociais serão determinados segundo as preferencias de indivíduos particulares, os quais receberão poder para selecionar e apanhar resultados desejáveis, em vez de se guiarem pelas regras conhecidas, as quais se aplicam tanto aos cidadãos quanto aos juízes.”

(Thomas Sowell).

I.

liberdade: uma joia cuja importância é inversamente proporcional à sua fragilidade. Quem a perdeu sabe disso muito bem! Se antes a ela sequer reservava atenção, estava afinal integrada no seu cotidiano, como o ar que se respira, quando de repente a viu faltar, a preocupação dá seu primeiro alerta. Uma pontada de desconfiança… Depois, percebendo-a se dissipar de bocados em bocados cada vez maiores, a sombra do desespero se faz sentir incisiva no espírito, espécie de angústia misturada a um sentimento lancinante de culpa.

Infelizmente, a democracia nunca mostrou eficiência no seu papel de escudeira da liberdade. Em sua essência não foi pensada para se defender daqueles que a querem arruinada, é menos apática que covarde e até se inclina a ignorar ou negar as inúmeras ameaças de que é alvo. Revela-se paradoxal por oferecer “aos que querem aboli-la a possibilidade única de preparar-se na legalidade, com a garantia do direito, e mesmo de receber para tanto o apoio quase patente do inimigo externo, sem que isso seja considerado como violação realmente grave do pacto social.”[1]

A democracia dá de comer para seus algozes, trata-os bem, com dignidade e, ainda pior, é de uma ingenuidade cega de fazer inveja a um cãozinho de estimação. Daí o risco sempre presente de ser aniquilada de dentro para fora. De pouco a pouco vai se colapsando, com as muitas liberdades individuais sendo minadas, manipuladas ou engolidas pela infindável fome do poder totalitário que nela se instala a partir de um aparelhamento gradual e furtivo em múltiplos setores, públicos e privados, da sociedade. E, ao final, completado o circuito, a doente morre vítima de infecção generalizada, em seu lugar surgindo impávida uma “democracia aperfeiçoada” (regimes totalitários fazem questão de se autoafirmarem democráticos), que no fundo representa nada mais que o seu inverso.

Os inimigos da democracia enxergam as liberdades individuais com hostilidade. São uma pedra em seus sapatos, pois atrapalham os projetos de poder, as revoluções silenciosas e o atingimento da plenitude da força estatal sobre a vontade dos cidadãos. Por isso não medem esforços para anulá-las: ausentes as liberdades individuais a democracia não se sustenta; é arvore sem seiva, seca e acabada.

Nada é fortuito, há métodos bem pensados e elaborados, e um deles, à guisa de ilustração, é a subversão da linguagem. A intelectualidade entra em cena para distorcer, a modo de argila, os significados já conhecidos de palavras de prestígio. Palavras que nomeiam coisas muitíssimo valorizadas em regimes democráticos e que lhes são simplesmente vitais. Não há limites para essa alquimia semântica cujo objetivo não é outro senão alterar comportamentos e maneiras de pensar. Frequentemente confundir. Pois a liberdade é uma dessas palavras desde sempre submetida a revisões de sentidos, até porque sempre foi difícil defini-la, o que facilita bastante o empreendimento. É maleável e camaleônica, sendo que o problema começa pelo fato de não possuir materialidade – não se pode apontar e gritar: “lá está  ela, a Magnífica!”

O campo do Direito – adentrando naquilo que importa para este texto – igualmente se rendeu ao jogo político e tem servido a práticas atentatórias às liberdades individuais, com resultados assaz positivos para os inimigos da democracia. Veja-se, para mencionar somente um emblemático exemplo, o vergonhoso episódio do “inquérito das fake news”. O Supremo Tribunal Federal, numa performance lastimável e nada republicana, decidiu atrair para si a prerrogativa de instaurar inquéritos por conta e risco (= ex officio) quando em jogo a “autoproteção” de seus ministros ou da instituição. Entre os votos que mantiveram o monstrengo de pé, um deles, pautado no que chamou de “interpretação evolutiva”, chegou a sustentar a ideia de tirania do relativismo para, ao final e contraditoriamente, relativizar e subverter o pacote todo: liberdade de expressão, proibição da censura, sistema acusatório, imparcialidade judicial, transparência, essencialidade da advocacia, direito de defesa, separação de poderes e legalidade. O Estado de Direito, para dizer o mínimo, sofreu uma tremenda indigestão constitucional.

De forma habitual as liberdades individuais têm sido banalizadas inclusive pelo próprio Judiciário: não caindo aqui, nada em absoluto as protege de serem destruídas acolá, e se depois seu uso, porém, interessar por qualquer razão obscura, basta simplesmente resgatá-las, sem preocupação com o já decidido. Ativismo e garantismo revezam-se numa dança macabra a depender da conveniência, de modo que coerência e integridade são slogans que ficam bonitinhos apenas em manuais de graduação. No plano da realidade, enfim, vige uma atmosfera de fomento à esquizofrenia decisória, que ajuda fortemente a corromper a democracia e tudo aquilo que lhe é caro e indispensável.

II.

Em reforço às reflexões até aqui elaboradas, quero agora fixar o olhar na jurisdição e no processo segundo uma perspectiva garantística, análise que, aliás, já dediquei esforços noutra oportunidade. Limitar-me-ei então a repisá-la com um ou outro acréscimo.

Entre nós, o edifício teórico e legislativo tem sido forjado a partir de miradas compromissadas sobretudo com o empoderamento da atividade jurisdicional. É que o paroquialismo doutrinário fez soberano o ensino do direito processual (que é menos processual que jurisdicional e procedimental) encimado em bases publicistas (e até hiperpublicistas), privilegiando uma compreensão que prima a jurisdição pela superioridade.

Trata-se, em suma, de uma visão fagocitária, que beneficia o jurisdicional em detrimento do processual, diluindo ou dissolvendo o último em favor do primeiro, hoje firmemente enraizada na tradição jurídica pela labuta impactante e serial da doutrina instrumentalista (e congêneres) durante longo trajeto histórico. Por isso os profissionais do direito rotineiramente prejulgam o processo por uma via de pensamento aferrada à perspectiva da atividade jurisdicional e dos seus (denominados) escopos sociais, políticos e jurídicos. [2]

Resumo da ópera: o processo (= devido processo legal) esvaziou-se de substância constitucional a ponto de se ver forçado a ajoelhar-se miseravelmente perante o poder estatal-jurisdicional. Tornou-se acessório e subserviente. E, claro, e aqui está o enlace com o propósito destas linhas, diminuir ou relativizar o processo, a garantia das garantias, é obviamente atraiçoar as liberdades individuais. É deixar o cidadão-jurisdicionado nu, dependente da sorte, da conjunção dos astros, quem sabe até de uma macumba bem-feita, em especial dos humores e preferências da autoridade exercente da jurisdição.

Quando perdem vigor os freios processuais contrajuridicionais, as amarras que legitimam e controlam a própria atividade jurisdicional, o resultado não é outro senão o surgimento de juízes audaciosos, desprovidos daquele senso de prudência que lhes impõe o republicanismo, ou seja, engenheiros sociais que, malgrado não terem recebido o voto popular, dedicam-se com furor à reforma da realidade. Buscam acelerar os rumos da história que reputam já predeterminados e inevitáveis (= determinismo histórico), razão por que à Constituição antepõem uma agenda política e, para cumpri-la, entra em cena o emprego de artifícios retórico-criativos sem limites, com vulgarizações de direitos fundamentais, atropelo e perversão de regras, piruetas interpretativas principiológicas, ponderações amalucadas, ausência de previsibilidade e perda do senso de hierarquia normativa. Vivemos no reinado do solipsismo judicial!

É a libertinagem relativista colocando na lona o devido processo legal e as liberdades individuais para fazer exasperar a jurisdição e o furor político-ideológico daqueles que nela encontram-se investidos.

III.

O CPC/2015 acompanha o perfil marcadamente autoritário de antanho, ou seja, aposta fichas em um juiz com amplos poderes, cada vez menos neutro e mais intrusivo, que não apenas impulsiona a atividade jurisdicional mas igualmente exerce iniciativa probatória, redistribui o ônus da prova, determina o comparecimento pessoal das partes a fim de interrogá-las, decide liminarmente com base na evidência, dilata prazos processuais e aplica sanções ex officio por ato de litigância de má-fé.

A doutrina, em especial aquela entusiasta do state of affairs, cumpre com devoção seu papel e, paulatinamente, vai pavimentando o chão interpretativo a partir do qual ocorre o jogo jurisdicional da litigância. Deita e rola, mesmo porque caiu no gosto da nossa (preguiçosa) legislatura a instituição imoderada de princípios e cláusulas gerais. A criatividade corre solta, de modo que os juristas não se restringem a preencher de sentidos os buracos deixados pelo legislador, fazendo surgir, sem lá muita preocupação com a dogmática, uma lista sem fim de “princípios” noviços louquinhos para caírem na graça dos tribunais. É autoexplicativo, além disso, o apreço que doutrinadores de perfil autoritário-publicista, em sua labuta ininterrupta de priorização e reforço da jurisdição, valendo-se de artifícios como boa-fé, cooperação, proporcionalidade e processo “justo”, têm por uma “hermenêutica“ de resultados.

Uma novidade, que causou excitação na comunidade jurídica, ilustra maravilhosamente bem o fenômeno: a regra que autoriza o manejo das chamadas medidas executivas atípicas também nas execuções de pagamento em dinheiro (CPC/2015, art. 139, IV). Parcela da comunidade jurídica não se fez de rogada e logo passou a advogar, com gradações variadas, o uso da força coercitiva estatal como alternativa viável para induzir devedores a honrarem obrigações pecuniárias. Em paralelo, decisões judiciais pulularam no cotidiano forense ordenando pagamentos sob pena, por exemplo, de suspensão de carteiras de habilitação, apreensão de passaportes, cancelamento de cartões de crédito, proibição de frequência em estádios, vedação de participação em concursos públicos ou licitações e assim por diante.

Falou mais alto o ideal utilitarista. Bastou um único artigo de lei, genérico e tecnicamente mal elaborado, para convencer juristas e profissionais do direito a relativizarem a lógica subrogatória das execuções pecuniárias, o regime de impenhorabilidade, a legalidade estrita, o devido processo e as respostas fornecidas pelo ordenamento jurídico em situações de ocultamento e ausência de bens em nome do executado. As medidas executivas atípicas foram equiparadas, enfim, a verdadeiros aríetes da efetividade, com a mitigação de regras sobre responsabilidade patrimonial, a conversão absurda de sanções penais e medidas acautelatórias penais em meios coercitivos e a derrubada do mínimo existencial do cidadão-devedor e das suas liberdades individuais, estas últimas que deveriam funcionar como fronteiras intransponíveis de proteção do homem contra a força asfixiadora do Estado.

O “remédio”, que tem pouca potencialidade curativa, está se provando mais prejudicial e cancerígeno que a doença.

IV.

Recebi com alegria o convite da Professora Luciana Benassi Gomes Carvalho para posfaciar seu livro, “Medidas Executivas Atípicas nas Obrigações Pecuniárias”, versão comercial da dissertação de mestrado que defendeu, com o brilho que lhe é característico, perante o Centro Universitário Internacional (UNINTER).[3]

Sou um leitor assíduo de tudo o que ela escreve. Absolutamente tudo. E nem poderia ser de outro modo, pois somos adeptos – ao lado de outros queridos amigos (Antonio Carvalho Filho, Diego Crevelin de Sousa, Eduardo José da Fonseca Costa, Glauco Gumerato Ramos, Igor Raaz, Júlio Cesar Rossi, Marco Paulo Di Spirito, Mateus Costa Pereira, William Gale e Natascha Anchieta) – da chamada garantística processual, vertente teórico-dogmática do direito constitucional especializada no devido processo legal.[4]

Não há jeito: no Brasil de hoje o garantista processual é um incorrigível (e necessário) antagonista do senso comum teórico e daquilo que hodiernamente prevalece na praxe forense. Enxerga problemas, sobretudo aqueles que favorecem o exercício desmesurado da jurisdição, e os aponta na tentativa de dialogar, corrigir rumos e evitar a sua repetição. Isso exige muito esforço e provoca até alguma sequela de ordem pessoal.

Confesso que enfrento uma fase de esmorecimento. Advogado contencioso há 22 anos, estou no olho do furacão, portanto testemunha viva dos acontecimentos, de maneira que fica difícil, sendo muito sincero, manter o otimismo intacto diante do Judiciário brasileiro, um dos mais caros do mundo, o qual, não bastasse sua lerdeza característica, peca por comumente oferecer serviços de precária qualidade, com exemplos vindo de cima, dos tribunais superiores, que parecem se esforçar para romper com o tecido da legalidade, incluída a própria ordem constitucional.

O ativismo judicial (que desemboca em puro autoritarismo), visceralmente alavancado por doutrinas iluministas-salvacionistas (instrumentalismo, neconstitucionalismos e semelhantes), as quais nutrem fascínio quase religioso pela “força normativa” dos princípios, atingiu patamar pandêmico e está inculcado na mente de advogados, representantes do Ministério Público, magistrados e professores. Tornou-se, em suma, algo normalizado e habilmente capaz de embotar o pensamento desses profissionais em relação a aspectos pertinentes à própria legitimidade do poder estatal-jurisdicional.

Mas a Professora Luciana – pesquisadora talentosa e juíza de direito dedicada – não se insensibilizou. E nem vai, tenho certeza! Ela sabe para o que veio e mira seus alvos com maestria. Suas armas: a Constituição, as leis e um afinado raciocínio lógico-dogmático. Sabe também que o embate atualmente travado na arena jurídico-doutrinária envolve, nas bandas opostas do cabo de força, intelectuais de perfis diversos: de um lado, os progressistas e revolucionários, para os quais as leis e mesmo a Constituição são documentos opcionais e de mera consulta, que buscam acelerar as mudanças sociais que entendem pertinentes na base do custe o que custar; de outro lado, os conservadores e originalistas (entre eles os garantistas processuais), que respeitam o ordenamento jurídico e, sobretudo, têm reverência pela Constituição e por sua função primacial de limitar os poderes estatais.

Seu livro, escrito em linguagem fluída e elegante, é daqueles que prendem e fascinam. Não há, em suas páginas, apego a modismos, fantasias ou fins utópicos. Nele, do princípio ao fim, nota-se a preocupação intransigente com a substância constitucional do processo e seu papel de tutela das liberdades individuais. Está tudo ali: i) desvelamento das premissas publicistas e arbitrárias do instrumentalismo processual; ii) origem, desenvolvimento e bases teóricas da garantística processual; iii) cotejamento entre instrumentalismo do processo e garantística processual; iv) execução civil vista à luz de premissas garantísticas; v) análise acurada das medidas executivas atípicas, com a descrição de posicionamentos teóricos atentatórios aos direitos fundamentais e às normas nas quais se escoram as execuções civis de obrigações pecuniárias; vi) âmbito constitucionalmente aceitável (e reduzido) de aplicação das medidas executivas atípicas nas execuções de soma em dinheiro. Sem rodeios, o leitor tem em mãos uma genuína barreira contra o arbítrio judicial!

A mim resta agradecer, em primeiro lugar, pelo livro e, por último, pela oportunidade generosa que me foi oferecida para fazer o registro destas tão breves quanto honestas e amontoadas reflexões. Termino mais feliz do que quando comecei porque o desabafo é sempre libertador.

Obrigado!

[1] REVEL, Jean-François. Como terminam as democracias. São Paulo: Difusão Editorial, 1984. pp. 7-8.

[2] É, aliás, exatamente essa doutrina uma das molas propulsoras a permitir o rompimento da camisa de força chamada devido processo legal e a diabolização das elevadas rigidez e resistência que o distinguem no âmbito constitucional, sendo ainda responsável pela criação da figura mítico-ideológica do juiz antena (que tão bem traduz uma jurisdição hiperbólica e desconectada com a Constituição). Recordando: juiz antena é o decisor profissional-intelectual ungido, dotado de capacidade sobre-humana para decifrar os “impulsos sociais” e os “clamores de moralidade” prevalecentes na sociedade, decodificar a “consciência da nação” e as “necessidades da época”, habilitado assim a solucionar conflitos a partir de “critérios de justiça e igualdade”, se necessário até ao arrepio das leis democraticamente produzidas. Sobre o tema, consultar: FILHO, Antônio Carvalho. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito. 11/10/2017. Disponível: www.emporiododireito.com.br. Acessado em: 10/11/2020.

[3] Sobre o mesmo tema, é indispensável também a consulta do excelente: FILHO, Antônio Carvalho; SOUSA, Diego Crevelin de; PEREIRA, Mateus Costa. Réquiem às medidas judiciais atípicas nas execuções pecuniárias (art. 139, IV, CPC). Londrina: Editora Thoth, 2020.

[4] FONSECA COSTA, Eduardo José da. Garantismo ou garantística? Empório do Direito. 07/09/2020. Disponível em: www.emporiododireito.com.br. Acesso: 03/11/2020

Autor

  • Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Membro fundador e Diretor de Publicações da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado.

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