Em matéria de preclusividade das resoluções judiciais – expressão de Pontes de Miranda –, a legislação disse menos que deveria. Tomemos os arts. 296 e 494 do Código de Processo Civil (CPC) e um caso – “hipotético” – como fio condutor para breves reflexões. O cenário aventado: em um intervalo de dois dias, um mesmo órgão jurisdicional profere duas decisões interlocutórias de mérito com sinais contrários (na primeira delas ocorreu o deferimento da liminar de reintegração de posse e, na segunda, sua rejeição); não houve notícia de qualquer fato jurídico processual no interregno entre essas decisões; os pronunciamentos estão separados no registro de eventos do sistema de peticionamento eletrônico apenas por uma certidão indicando o cancelamento da primeira decisão.
O art. 296, caput,[1] CPC autoriza o reexame da decisão que apreciou a tutela provisória ao longo do procedimento; é o que ocorrerá ao tempo da prolação da sentença, mas pode ocorrer em outro momento do procedimento, sempre que um fato superveniente ou fundamento jurídico relevante não apreciado – com impactos em qualquer dos requisitos da tutela provisória –, seja levado ao conhecimento do órgão julgador ou descortinado ao longo da instrução probatória.
Porque calcada em cognição sumária (= exercício limitado do contraditório), limitando-se a asserir a presença ou ausência dos requisitos da tutela, a provisoriedade pode ser entendida como um sinal (regra) de precariedade da decisão. Tirante a incidência do art. 304, CPC, à vista da opção do sistema por decisões alicerçadas no exercício pleno do contraditório, a decisão interlocutória de mérito é substituída (substituível) pela sentença. É por esse motivo que a tutela provisória pode, “a qualquer tempo, ser revogada ou modificada” (art. 296, caput), o que, naturalmente, deve ser temperado pela preclusão.
O art. 494, CPC[2] consagra o princípio da inalterabilidade da sentença, tão logo publicada;[3] em tese, uma norma que encerra a preclusão somente aos pronunciamentos enquadráveis no art. 203, § 1º, CPC, autorizando que a sentença seja reexaminada pelo órgão prolator em duas situações: para correção de erro material, quando então o órgão poderá atuar espontaneamente; e julgamento de embargos de declaração. O rol do art. 494 não é taxativo. Sobre ser possível, também é necessário ir além dessas duas hipóteses. Em verdade, deve-se construir uma interpretação combinada dos arts. 296 e 494, CPC que oriente a atuação jurisdicional e, pois, que assegure segurança e previsibilidade às partes.
De início, anote-se que o art. 494 abrange tanto as sentenças de mérito quanto as processuais.[4] Já o art. 296 cuida de decisões interlocutórias em matéria de tutela provisória [defere, indefere ou posterga a apreciação da tutela provisória (= indeferimento naquele momento)], ou seja, decisões de mérito; contudo, o sistema processual amplia a preclusividade aos pronunciamentos interlocutórios que tenham por objeto questões processuais (art. 357, § 1º, CPC).[5] Em matéria de preclusão ao juízo,[6] no tocante aos pronunciamentos de mérito – tema de interesse no momento –, resta conhecer as exceções admitidas pelo sistema processual.[7]
Ao rol do art. 494 se somam três outras hipóteses decorrentes do sistema processual: o efeito regressivo presente em determinados recursos, legitimando o exercício do juízo de retratação (v.g., arts. 331, 332, § 2º e 485, § 7º, CPC); o julgamento do pedido de reconsideração e a superveniência de fatos novos e/ou fundamento jurídico relevante não apreciado em vista de uma decisão interlocutória de mérito.
Em síntese, cinco situações autorizam o órgão jurisdicional a rever a própria decisão: (i) correção de erro material (de ofício ou por provocação); (ii) julgamento de recurso de sua competência;[8] (iii) exercício do juízo de retratação, quando houver a interposição de recurso dotado de efeito regressivo; (iv) análise de pedido de reconsideração;[9] e (v) superveniência de fato novo[10] ou dedução de fundamento jurídico relevante não apreciado[11] – observando que as duas últimas situações têm aplicação restrita às interlocutórias.
Volvendo ao caso, se nenhuma das situações anteriores estiver configurada, então a preclusão se impõe, de modo que a prolação de uma segunda decisão pelo mesmo órgão jurisdicional configura error in procedendo. Pontes de Miranda tem passagem lapidar sobre o tema. Permita-se a transcrição de um trecho cuidadosamente selecionado de seus comentários ao CPC/73:
Se houve decisão do juiz sobre algum ponto de direito ou de fato e para que se chegasse a esse ponto houve prazo, a preclusão afasta qualquer reexame e julgamento pelo juiz. O que se teve por fito no art. 473 foi evitar que, após o sim, ou não, que o juiz proferiu, possa ele passar a dizer não, ou sim.[12]
O caso imaginado neste artigo se amolda com perfeição à parte final da preleção de Pontes de Miranda: o juízo de primeiro grau disse sim e, passados dois dias, falou não. Acontece que após o sim (= deferimento da liminar), não sobreveio mudança no cenário processual para que, em sucessivo, o órgão pudesse dizer não (= indeferimento da liminar). Rigorosamente, nem mesmo existiu tempo hábil para tanto. Não há uma sexta hipótese excepcionando a regra da preclusão ao juízo, consistente em mudar de opinião.
[1] Art. 296. A tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada.
[2] Art. 494. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:
I – para corrigir-lhe, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo;
II – por meio de embargos de declaração.
[3] Cuida-se da publicização do ato decisório, leia-se, sua veiculação nos autos (físicos ou eletrônicos). Desde então o pronunciamento passa a existir no mundo jurídico e está apto a produzir efeitos, valendo a regra de que não pode ser modificado, salvo nas hipóteses admitidas pelo sistema.
[4] NERY JR., Nelson. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 495, nota 2.
[5] A estabilidade da decisão pressupõe a permanência do contexto fático. Figure-se o exemplo da concessão da gratuidade da justiça. A gratuidade da justiça pressupõe que seu beneficiário não tenha um acréscimo patrimonial que lhe emancipe do estado de pobreza legal; ocorrendo a mais valia, chegando ao conhecimento do órgão jurisdicional, o benefício deverá ser revogado. Entre outros exemplos.
[6] Preclusão ao juízo, e não ao juiz, porque um Juiz Substituto não poderia, por exemplo, revisitar decisão do Juiz Titular.
[7] Além de termos por consideração o procedimento comum de conhecimento, registre-se que não estamos a tratar da formação de coisa julgada.
[8] Não se deve excluir a possibilidade de outros recursos da competência do próprio órgão prolator da decisão, tal como sucede com os embargos infringentes de alçada (art. 34 da Lei nº 6.830/80).
[9] Verificando que o pedido de reconsideração, produto da empiria (Diego Crevelin), também enseja o juízo de retratação. Há de se estabelecer, contudo, critérios ao seu oferecimento.
[10] Suponha-se que houve a concessão de alimentos provisionais em uma determinada demanda. E que, meses após, o trabalhador assalariado (devedor de alimentos), seja demitido de seu emprego. A depender da situação financeira do devedor, essa nova circunstância de fato poderá conduzir à revogação da decisão que impôs os alimentos.
[11] Para fins ilustrativos, considere-se que o magistrado negligenciou uma tese firmada em julgamento de recursos repetitivos, o que é suscitado pela parte adversa.
[12] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil (arts. 444-475). Rio de Janeiro: Forense, 1974, t. V, p. 211.