UNICIDADE SINDICAL BRASILEIRA E AS OPINIÕES CONSULTIVAS 22/2016 E 27/2021 – Parte 2

UNICIDADE SINDICAL BRASILEIRA

A opinião consultiva 22/2016[1], proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 26 de fevereiro de 2016, atendendo solicitação da República do Panamá, é um documento precioso para os estudos da liberdade sindical.

Nessa linha, a opinião consultiva registra que o artigo 45.c da Carta da Organização dos Estados Americanos reconhece a personalidade jurídica das associações de trabalhadores e empregadores e consagra a necessidade de proteção da liberdade e independência delas. O artigo 45.g também merece destaque, pois evidencia o reconhecimento da contribuição dos sindicatos para a sociedade:

Os Estados membros, convencidos de que o Homem somente pode alcançar a plena realização de suas aspirações dentro de uma ordem social justa, acompanhada de desenvolvimento econômico e de verdadeira paz, convêm em envidar os seus maiores esforços na aplicação dos seguintes princípios e mecanismos:

c) Os empregadores e os trabalhadores, tanto rurais como urbanos, têm o direito de se associarem livremente para a defesa e promoção de seus interesses, inclusive o direito de negociação coletiva e o de greve por parte dos trabalhadores, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações e a proteção de sua liberdade e independência, tudo de acordo com a respectiva legislação;

g) O reconhecimento da importância da contribuição das organizações tais como os sindicatos, as cooperativas e as associações culturais, profissionais, de negócios, vicinais e comunais para a vida da sociedade e para o processo de desenvolvimento[2];

Ato contínuo, no parágrafo 95 da opinião, a Corte reitera que o Protocolo de São Salvador é parte integrante da Convenção Americana que abriga, por sua vez, o princípio pro homine. Ao interpretar o artigo 8º.1.a. do Protocolo, deve ser eleita a interpretação mais garantista, logo, aquela que não exclua ou limite o efeito que outros instrumentos possam ter, por exemplo, a Carta da Organização dos Estados Americanos. Como exposto, o artigo 45.c da Carta reconhece direitos a associações de empregadores e de trabalhadores. Da mesma forma, o artigo 10º da Carta Democrática Interamericana, por meio de sua remissão à Declaração da Organização Internacional do Trabalho, aponta a necessidade de respeito à liberdade sindical que abrange não apenas o direito de associação dos trabalhadores, mas também o direito das associações por eles constituídas de funcionar livremente.

O parágrafo 95 da opinião consultiva funciona, por conseguinte, como diretriz obrigatória a ser adotada pelos intérpretes do Direito. Em sua primeira parte, lembra que o Protocolo de São Salvador (Protocolo Adicional à Convenção Americana) é parte integrante da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (fato que, por mais óbvio que seja, é sempre importante lembrar para aqueles que insistem em realizar análises superficiais dos direitos humanos) e que nela está previsto o princípio pro homine (no texto da opinião, chamado de princípio pro persona). Como resultado, o hermeneuta deve sempre adotar uma interpretação menos restritiva, que corresponda ao afastamento daquele sentido que diminua ou impeça a concretização de outras normas internacionais. No caso, a busca da Corte foi conciliar a interpretação do artigo 8º do Protocolo com a Carta da Organização dos Estados Americanos, cujo artigo 45.c consagra direitos a associações de empregadores e de trabalhadores. Assim, não existe dúvida de que às entidades sindicais são atribuídos direitos enquanto reconhecidas como pessoas jurídicas.

Na segunda parte do parágrafo 95, aplicando mais uma vez a interpretação com sentido tutelar como expressão do princípio pro homine, a Corte afirma a necessidade de conciliar o artigo 8º do Protocolo com o artigo 10º da Carta Democrática Interamericana (publicada em 11 de setembro de 2001, em Lima) que, por seu turno, faz referência expressa à Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, reiterada em 2008 (como Declaração da OIT sobre Justiça Social para uma Globalização Justa), da Organização Internacional do Trabalho, sobre a imprescindibilidade de respeito à liberdade sindical.

Esse trecho da opinião consultiva merece atenção especial. O artigo 10º da Carta Democrática Interamericana possui a seguinte redação:

A promoção e o fortalecimento da democracia requerem o exercício pleno e eficaz dos direitos dos trabalhadores e a aplicação de normas trabalhistas básicas, tal como estão consagradas na Declaração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Acompanhamento, adotada em 1998, bem como em outras convenções básicas afins da OIT. A democracia fortalece-se com a melhoria das condições de trabalho e da qualidade de vida dos trabalhadores do Hemisfério[3].

Diante dessa redação, para continuar a análise da opinião consultiva e demonstrar a relação do artigo 10º com a liberdade sindical, é necessário transcrever o item 2 da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, pois enumera quais são as normas trabalhistas básicas para a Organização Internacional do Trabalho, quando a Conferência Internacional do Trabalho declarou:

que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação[4].

Ao realizar essa correspondência expressa entre a interpretação do artigo 8º do Protocolo e a do artigo 10º da Carta Democrática Interamericana, a Corte eleva o patamar de proteção da liberdade sindical no âmbito do continente americano. O dispositivo da Carta é sensível à importância da liberdade sindical para a consolidação da democracia ao afirmar que a defesa dos direitos dos trabalhadores e a aplicação das normas trabalhistas deverão ser implementadas segundo o padrão estabelecido na Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da Organização Internacional do Trabalho que, por sua vez, apresenta a liberdade sindical como direito fundamental.

Por meio da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, a OIT reconhece na liberdade sindical não apenas um objetivo a ser alcançado, mas, além disso, uma ferramenta de ação para assegurar os direitos e liberdades fundamentais. E a Organização dos Estados Americanos assimilou esse caráter instrumental da liberdade sindical ao fazer a relação no artigo 10º da Carta Democrática Interamericana entre o fortalecimento da democracia e a necessidade de proteção das normas trabalhistas básicas elencadas pela Organização Internacional do Trabalho.

Em sendo assim, o entendimento da Corte expresso na opinião consultiva analisada pode ser aprofundado. O artigo 10º menciona que os direitos dos trabalhadores e as normas trabalhistas básicas devem ser protegidos “como” reconhecidos na Declaração da Organização Internacional do Trabalho, “bem como” outras convenções básicas do órgão internacional. Uma das convenções básicas relativas à liberdade sindical é a de número 87, que o Brasil não ratificou.

Ora, fica fácil defender, portanto, conforme demonstrado pela Corte Interamericana, a necessidade de garantia e proteção da liberdade sindical no modelo desenvolvido pela OIT em sua Convenção n. 87, já que a própria Carta Democrática Interamericana indicou a necessidade de aplicar outras Convenções básicas da OIT para a efetivação dos direitos dos trabalhadores.

Logo, seguindo o entendimento da Corte, a liberdade sindical protegida pela Convenção n. 87 da OIT merece ser garantida pelos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, especialmente aqueles que ratificaram o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dentre eles, o Brasil.

A Corte Interamericana enfatiza mais uma vez seu posicionamento a respeito da liberdade sindical na opinião consultiva 27/2021[5], elaborada a pedido da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

No parágrafo 73 do documento, a Corte afirma que o artigo 8º do Protocolo de San Salvador, ao estabelecer que os Estados permitirão o funcionamento livre das entidades sindicais, necessita ser compreendido no sentido de que deve ser possível que tais organizações tenham a capacidade de, por exemplo, criar seus próprios estatutos, eleger seus representantes e suas finanças. Logo, associar-se e integrar outras organizações coletivas também supõe que tenham a capacidade para concretizar tais condutas.

Além disso, importante mencionar que no parágrafo 79 da opinião consultiva, a Corte é categórica ao afirmar que os Estados que ratificaram o Protocolo de San Salvador não devem proibir a criação de mais um sindicato de categoria econômica ou profissional, ou sindicato por empresa, pois tal proibição constitui violação à liberdade sindical.

 

Desafios para a compatibilização da Constituição Federal e o Protocolo de San Salvador

O modelo de liberdade sindical trazido pela OIT em sua Convenção n. 87 não é compatível com a unicidade sindical assegurada no artigo 8º, II, da Constituição da República, fato que impede sua ratificação pelo país. Aliás, deve ser registrado que, desde 1949, foi remetido ao Congresso Nacional brasileiro mensagem presidencial apresentando as razões para a internalização da Convenção n. 87. Trata-se do processo mais antigo em trâmite na casa legislativa[6]. Enviada pelo Poder Executivo em 31.05.1949, o número da origem da Mensagem é 002561949. O processo foi reelaborado em 1984 (Projeto de Decreto Legislativo 58-B), em virtude de extravio de documentos, tendo recebido parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal em 11.12.2002. Atualmente continua no Senado Federal como Projeto de Decreto Legislativo n. 16/1984, tendo como último andamento a aprovação de requerimento para inclusão de convidado em Audiência Pública pela Comissão de Assuntos Sociais em 20 de março de 2019[7].

Em que pese o projeto para ratificação da Convenção n. 87 permanecer sob análise dos congressistas, não se pode fechar os olhos para a contradição existente entre o artigo 8º do Protocolo de San Salvador e o artigo 8º, inciso II, da Constituição Federal, que consagra a unicidade sindical.

A interpretação concedida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio de suas opiniões consultivas 22/2016 e 27/2021, a respeito dos limites a serem extraídos da liberdade sindical garantida no artigo 8º do Protocolo, leva à necessidade de adoção de mecanismos que permitam harmonizar as normas dos dois diplomas normativos: Constituição Federal e Protocolo de San Salvador.

Para resolver essa incompatibilidade, é preciso antes de tudo defender a natureza constitucional das normas internacionais de direitos humanos incorporadas pela ordem jurídica brasileira. O princípio da liberdade sindical previsto no artigo 8º do Protocolo de San Salvador foi incorporado pelo ordenamento jurídico pátrio de forma imediata, já que consiste em norma-princípio, conforme artigo 5º, §2º, da Constituição da República. Além disso, apesar de o Protocolo ter sido ratificado antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, com fundamento nos artigos 1º, III, 3º, I, III, IV, 5º, §§ 1º e 2º, e 170, VII, da Constituição Federal, ele deve ser considerado material e formalmente constitucional.

Na sequência, há duas normas incompatíveis e dotadas da mesma natureza hierárquico jurídica no sistema jurídico pátrio: artigo 8º, II, da Constituição Federal e artigo 8º do Protocolo. O controle de convencionalidade é a solução capaz de resolver essa incompatibilidade. Por meio dele, as normas nacionais em conflito com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional deixam de ser aplicadas na solução de um caso concreto. O conceito de norma abrange aquelas inseridas no texto das constituições nacionais que podem contrariar o conteúdo do Protocolo ou a interpretação concedida pela Corte Interamericana sobre os direitos nele previstos. Dessa maneira, o artigo 8º, II, da Constituição é uma norma constitucional inconvencional.

No exercício do controle de convencionalidade, deve ser aplicada pelo magistrado a norma mais favorável ao indivíduo, já que não há identidade entre os conteúdos da Constituição Federal e o Protocolo. Em sua decisão, o juiz deve afastar a unicidade sindical do artigo 8º, II, constitucional e aplicar a liberdade sindical plena prevista no artigo 8º do Protocolo de San Salvador, autorizando a livre criação e organização das entidades sindicais, já que constitui norma mais benéfica ao indivíduo.

[1]         CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva Oc-22/16, de 26 de febrero de    2016.   Solicitada         por       la            República         de        Panamá           Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_22_esp.doc>. Acesso em: 13 nov. 2021.

[2]         ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. Departamento de Direito Internacional Secretaria de Assuntos Jurídicos.           Carta    da            Organização dos              Estados  Americanos.              Disponível em:

<https://www.oas.org/dil/port/tratados_A- 41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso em: 13 nov. 2021.

[3]       ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. Carta Democrática Interamericana. Disponível em:

<http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm>. Acesso em: 13 nov. 2021.

[4]                                                ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais  no                                                  Trabalho.               Disponível em: <http://www.ilo.org/public/english/standards/declaration/declaration_portuguese.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021.

[5]                 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva Oc-27/21, de 5 de mayo de 2021.     Solicitada          por       la                   Comisión     Interamericana           de                      Derechos            Humanos.     Disponível                           em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_27_esp.pdf>. Acesso em 13 nov. 2021.

[6] COSTA, José Augusto Fontoura; GOMES, Ana Virgínia Moreira. O parágrafo 3o. do art. 5o. da CF/88 e a internalização da Convenção 87 da OIT, Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 33, n. 125, p. 115- 132, jan./mar. 2007.

[7]       BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Decreto Legislativo (SF) n° 16, de 1984. Disponível em:

<https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pdc-58-1984>. Acesso em: 13 nov. 2021.

Autor

  • Doutor e Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor de Graduação, Especialização e Mestrado. Juiz do Trabalho.

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