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PRINCÍPIO NÃO É NORMA (7ª PARTE)

PRINCÍPIO NÃO É NORMA (7ª PARTE)
Professor Ronald Dworkin

Ao meu amigo e advogado

Ricardo Sordi Marchi

Em geral, os juristas dworkinianos combatem o chamado «pamprincipiologismo» [= πᾶν + principĭum + λόγος + ισμός = doutrina jurídica que defende os princípios como imperativos de razão prática totais, englobantes, omni-abrangentes, cuja aplicabilidade direta é ampla, geral e irrestrita]. Entretanto, eles não combatem propriamente o principiologismo. Retiram o prefixo pan-, mas mantêm o sufixo –ismo. Noutras palavras, adotam igualmente a doutrina jurídica dos princípios, mas os veem como imperativos de razão prática parciais, seletivos, estreitos, cuja aplicabilidade direta é limitada, específica e restrita. Por um lado, desgostam-se, por exemplo, do uso indiscriminado de princípios para a superação ou a modificação arbitrária de regras legais expressas; por outro, consentem na «aplicação per saltum» de princípios de quando em quando em «ocasiões excepcionais». E fazem-no, obviamente, escorados no pensamento de RONALD MYLES DWORKIN [1931-2013]. Conforme o jusfilósofo norte-americano: a) os princípios são exigências de justiça, equidade ou alguma outra dimensão de moralidade [«ideals of justice, equity, and some other dimension of morality»]; b) eles podem ser aplicados a «casos difíceis» [hard cases]; c) casos difíceis são «situações litigiosas particulares que não se podem submeter a uma regra de direito expressa, estabelecida por alguma instituição com antecedência, ou quando não estabelecida uma regra que dite uma decisão em um ou outro sentido»; d) aplicando-se os princípios, impede-se que o juiz aja com discricionariedade e crie uma nova regra para o caso; e) a aplicação de princípios faz do direito um segmento ou departamento da moral, não algo separado dela (v., e. g.Taking rights seriously. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978, p. 81 e ss.). Nota-se simpliciter et de plano o empreendimento de RONALD DWORKIN para domar a voracidade dos princípios, reservando-lhes uma circunscrição funcional mais diminuta (o que não é pouco, tendo em vista que ele estava inserto na tradição do Common Law). Isso explica em parte por que dworkinianos têm se destacado na luta contra o ativismo judicial no Brasil. Todavia, sem embargo dos louváveis esforços, a teoria dworkiniana dos princípios contém imperfeições analítico-descritivas (próprias ao jusmoralismo), que por vezes provocam distorções hermenêutico-pragmáticas (próprias à perda da autonomia operacional do direito). Pois vale a pena refletir sobre elas, ainda que en passant, e, com isso, repisar conceituações e diferenciações elaboradas ao longo desta série de pequenos artigos.

Em primeiro lugar, DWORKIN percebeu que os princípios habitam a zona de fronteira entre a moral e o direito, o ético e o jurídico, o axiológico e o deontológico. Contudo, entendeu que os princípios pertencem à moral, quando pertencem deveras ao direito. São princípios de direito, não «de moral». Não se trata, portanto, de «ideais de justiça, equidade ou alguma outra dimensão de moralidade». Não são dados transcendentes ao direito, mas imanentes. O direito é formado tanto pelo ordenamento jurídico [= sistema geométrico-piramidal de regras] quanto pela principiologia [= coleção ageométrica de princípios]. Os princípios gravitam ao redor das regras, habitando a faixa medial entre o ordenamento jurídico e a moral. Eles estão dentro do direito, além do ordenamento jurídico, mas ainda aquém da moral. Daí por que se pode identificá-los nos próprios textos de direito positivo. O princípio expresso está positivado num determinado dispositivo; por sua vez, o princípio implícito transfixa um conjunto específico de regras que o concretizam, podendo ser isolado mediante indução amplificadora. Porém, é nas dobras da explicitude e da implicitude textuais que os princípios se alojam. Nelas, eles ganham objetividade (e não na «moral de uma comunidade», por vezes de problemática verificação). Se assim não for, um princípio somente poderá ser revelado pelo senso subjetivo de «justiça, equidade ou outra dimensão de moralidade» do juiz. É preciso sublinhar que a moral não é realizada como é realizado o direito. Não existe um vade mecum de preceitos morais aceitos, que os reduza, resuma, compendie e exponha a público. Afinal de contas, «a moral não é uma lista de permissões e proibições, mas uma prática diária» (OAKESHOTT, Michael. A regência da lei. Sobre a história e outros ensaios. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 208) (d. n.). Destarte, ela é marcada por um elevado grau indeterminação. Nunca está pronta e acabada. Daí por que a alfabetização moral se dá de maneira empírico-contínua ao longo da vida social, enquanto o aprendizado jurídico se dá de maneira científico-intermitente no curso da vida acadêmico-profissional. Tudo isso infunde o risco de que, a pretexto de realizar um preceito moral, o juiz realize a sua própria moral indevassável. Existe o risco de que o juiz imponha às partes in fore externo a moralidade a que se obriga in fore interno, transformando arbitrariamente os seus preceitos unilaterais em omnilaterais. Há o risco, enfim, de que o juiz se torne um ditador moralista. À vista disso, resolver hard cases com a moral significa making them even harder, especialmente em um ambiente de Civil Law, calcado na lei (o que mostra o enorme cuidado que se deve ter na importação acrítica de DWORKIN, cujas ideais foram concebidas – insista-se – para a contenção dos arbítrios próprios a um ambiente de Common Law).

Em segundo lugar, princípios não podem ser aplicados. Eles têm realizabilidade, mas não aplicabilidade. Na verdade, a aplicabilidade é um atributo exclusivo das regras. As regras se realizam aplicando-se. Os princípios se realizam aplicando-se as regras que os concretizam. Logo, os princípios não se realizam de modo direto, imediato ou per saltum, mas de modo indireto, mediato ou per interpositionem. Eles são imperativos categóricos [«A deve ser»]. Exprimem apenas um «estado ideal de coisas» a ser promovido ou alcançado (obs.: não se comunga aqui da distinção dworkiniana entre policyprinciple, que é mais conteudística que estrutural: ambos têm teleologicidade, não hipoteticidade). Não descrevem in abstrato a situação fática sobre a qual almejam incidir [= preceito primário]. Tampouco descrevem in abstrato as consequências jurídicas decorrentes dessa incidência [= preceito secundário]. Ou seja, não «explicam» o receituário da própria aplicação. Sofrem de uma privação estrutural, que lhes impõe uma privação funcional. Por isso, não são «autoaplicáveis». Para que um princípio se realize, entre ele e o caso prático deve interpor-se uma regra, que é um imperativo hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser»]. Aplicando-se a regra intermediadora, ela se realiza; realizando-se a regra intermediadora, realiza-se por via reflexa o princípio, que ela concretiza. Daí por que a realização de uma regra é sempre uma realização de primeira mão; a realização de um princípio, de segunda mão. Por conseguinte, só se pode dizer que o juiz «aplica um princípio» entre aspas, sob ressalva, como metonímia, tomando-se a regra concretizadora pelo princípio concretizado. Quando o juiz «aplica» um «ideal de justiça, de equidade ou de alguma outra dimensão de moralidade», na realidade aplica uma regra que ele próprio criou para densificar esse ideal (conquanto, não raro, essa criação seja inconfessa, ocultando-se no labirinto intrincado da fundamentação decisória). Dentre as diferentes «possibilidades deontológicas de densificação», o juiz escolhe unilateralmente aquela que lhe parece «a mais oportuna e conveniente» para resolver a situação concreta. Logo, princípios não se aplicam a «casos difíceis» [hard cases], nem a «casos fáceis» [easy cases]. Princípios nunca se aplicam tout court. Simplesmente é impossível aplicá-los ex vi naturæ suæ. De qualquer forma, entre o princípio e a regra não existe um caminho unívoco. Não se pode dizer que, ao «aplicar» um princípio, o juiz aplica a única regra metodicamente possível ao caso. Podem ser múltiplas as regras concretizadoras, todas igualmente válidas entre si.

Em terceiro lugar, a «aplicação per saltum» de um princípio a um hard case não impede que o juiz moralista atue com discricionariedade e crie uma nova regra para o caso. Quando muito se pode afirmar que essa «aplicação» diminui o grau de discricionariedade na esquematização da regra nova. Afinal, o juiz não inventa a regra ex nihilo: ele toma como ponto de partida um «ideal de justiça, de equidade ou de alguma outra dimensão de moralidade». Nada obstante, um quantum ineliminável de discricionariedade sempre há. Como já dito à exaustão ao longo desta série de artigos, para resolver o caso prático desde um princípio, o juiz precisa optar por uma das inúmeras regras válidas que o densificam, dado que existem inúmeros meios para se atingir o «estado ideal de coisas» que todo princípio prescreve. Nesse sentido, o juiz dispõe de uma ampla margem de escolha (embora se esteja longe do voluntarismo desparametrizado descrito por HART). Em síntese, o juiz dispõe de uma indisfarçável discricionariedade. Daí por que, em toda «aplicação» de princípios, há mais de político que de técnico, mais de criação que de interpretação, mais de sobresunção que de subsunção, mais de eleição que de dedução, mais de deliberativo que de burocrático, mais de legislação que de jurisdição. Quando o juiz «aplica per saltum» um princípio [rectius: quando o juiz cria uma regra que concretiza esse princípio], ele exerce uma atividade pseudojurisdicional. Essa atividade tem natureza político-paralegislativa. O juiz moralista esquematiza ao seu próprio talante uma regra com hipótese de incidência e consequência jurídica bem delimitadas, procedendo como um «microlegislador indômito», um «legislador monocrático», um «parlamento de um homem só». Esquematiza casuisticamente a regra judicial paralegislativa e, em seguida, aplica-a. Age como se tivesse legitimidade democrática para plasmar naquele caso específico a vontade do povo soberano («la volonté générale»). Não por outro motivo, regras sobre o preenchimento de lacunas deveriam constar em texto de constituição, não em texto de lei, visto que permitem que in casu o juiz «legisle» [rectius: jurisle], excepcionando a separação de poderes. No Brasil, esse preenchimento obedece à regra do artigo 4º do Decreto-lei 4.657/1942 («Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito»); porém, é dispositivo que deveria constar da CF/1988. Isso porque a lacuna é preenchida com uma regra nova, que o juiz criou inspirado em uma regra antiga análoga, um costume ou um princípio.

Em quarto lugar, a necessidade de se estabelecer uma relação forte entre o direito e a moral, debilitando-se a autonomia do direito, é um falso problema. Infelizmente, três grandes verdades têm escapado à miopia dos juristas, causando-se assim toda sorte de confusões: 1) é pelo caminho do processo legislativo que se vai dos princípios morais aos princípios jurídicos expressos e às regras jurídicas [movimento descendente]; 2) é pelo caminho da indução amplificadora que se vai das regras jurídicas aos princípios jurídicos implícitos [movimento ascendente]; 3) os princípios jurídicos expressos e os princípios jurídicos implícitos se cruzam no meio do caminho dos dois movimentos, orbitando numa zona intercalar entre os princípios morais e as regras jurídicas, entre a moral e o ordenamento jurídico. Isso significa que os princípios jurídicos – seja na interpretação das regras, seja na colmatação das lacunas – já tornam o direito, senão plenamente sintonizado, ao menos não divorciado completamente dos princípios morais. Ou seja, os princípios jurídicos resguardam no direito um «ethisches Minimum» [JELLINEK]. A sintonização do direito com a moral não se faz ab extra, mediante a intrusão alopoiética de princípios morais, mas ab intra, mediante a extrusão autopoiética de princípios jurídicos. Com isso não se corre o risco de se ressuscitarem desacordos morais já resolvidos pelo legislador. Pois, em um Estado democrático-parlamentar de direito legislado, a moral importa unicamente ao legislador. Somente o Poder Legislativo é o lugar apropriado para se institucionalizarem juízos morais sobre a lei. E desses juízos morais não cabe ao juiz extrair qualquer diretriz prático-funcional para si mesmo. Ao juiz deve ser indiferente a moralidade ou a imoralidade da lei. Se um princípio moral inspira a edição de uma regra jurídica, por exemplo, ele se apresenta para o direito como um dado extrínseco, uma matéria-prima pré-jurídica (salvo se esse princípio moral inspirar outras regras jurídicas, tornando-se também um princípio jurídico implícito, ou se for positivado por algum dispositivo, tornando-se também um princípio jurídico explícito). Apenas interessa ocasionalmente ao legislador, que cria o direito, não ao juiz, que o aplica. Se acaso o juiz promove moralizações aqui e ali, fá-las não porque «aplica per saltum» princípios morais, mas porque, aplicando uma regra jurídica, realiza indiretamente o princípio moral, que porventura a inspira. Logo, não se pode falar em «reforço jurídico da moral», nem em «reforço moral do direito». O direito não contém a moral, nem é igual a ela; muito menos é contido por ela, como se dela fosse um subconjunto. Em suma: direito não é moral; direito não é moral especializada; moral não é direito generalizado; moral não é direito; direito não é moral generalizada; moral não é direito especializado. Ainda assim, é necessário fazer alguma justiça: jusmoralistas como ALEXY foram um pouco além de DWORKIN. De minha parte, sugiro que de DWORKIN se fique um pouco aquém.

Autor

  • Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

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