Introdução
Em sua mais recente obra intitulada “Reclamação nas Cortes Supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente”, o Prof. Daniel Mitidiero empenha-se em redesenhar o cabimento da ação especial originária perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal Justiça a partir dos seguintes questionamentos por ele próprio lançados, a saber: “O que são efetivamente decisões, precedentes e súmulas? Com que sentido se pode dizer que decisões, precedentes e súmulas têm efeito vinculante? E mais: em qual esquina do direito brasileiro o efeito vinculante se encontrou com a reclamação?”[1].
Derivando de uma particular distinção entre os conceitos de decisão, precedente e súmula, o jurista gaúcho conclui que “a decisão e o precedente é que são vinculantes. As súmulas e as teses oriundas dos temas não vinculam – constrangem apenas na medida em que os precedentes subjacentes o fazem”[2].
Ato contínuo, indaga: “o que significa, porém, vincular? E dizer que uma decisão tem efeito vinculante? E que um precedente o tem?” – e responde asseverando que “vincular significa apenas ligar e obrigar. O efeito vinculante de uma decisão e de um precedente é o de ligar e obrigar. Enquanto a ligação é delimitada pelos destinatários da decisão e do precedente, a obrigação é sempre caracterizada pela ausência de opção. Uma quantidade maior ou menor de pessoas pode estar ligada à decisão e ao precedente, mas – uma vez ligadas – todas estão inevitavelmente obrigadas”[3].
Lança os seguintes questionamentos: “obrigadas, porém, precisamente a quê? Em relação à decisão, ao comando constante do seu dispositivo. Em relação ao precedente, à prescrição que ressai das suas razões. O que isso significa exatamente? O efeito vinculante da decisão é o mesmo do precedente?”[4].
Considerando uma “indevida assimilação do efeito vinculante do precedente ao da decisão e sua repercussão na reclamação”, Mitidiero enfatiza que o CPC/2015, ao vincular “o caráter obrigatório do precedente ao cabimento da reclamação para as Cortes Supremas”, teria cometido três equívocos: “Em primeiro lugar porque a vinculação ao precedente independe da existência de um mecanismo especifico para a sua imposição. Em segundo, porque as Cortes Supremas não têm por função realizar controle imediato da interpretação e aplicação de seus precedentes. Em terceiro, porque a reclamação serve para a garantia da autoridade da decisão do caso e apenas excepcionalmente para a tutela do precedente retratado em súmula vinculante”[5].
Amparado nessas teses, o jurista ressalta que as hipóteses prescritas no art. 988 do CPC “oferece[m] uma vidraça opaca para a reclamação” e “para além de um equívoco de política legislativa, o legislador incorreu nessa assimilação em inconstitucionalidade. Essa não deriva, contudo, da previsão de vinculação ao precedente, tendo em conta que a sua obrigatoriedade sequer depende de previsão legislativa. A inconstitucionalidade decorre do fato de que a Constituição só admite reclamação para as Cortes Supremas para ´garantia da autoridade das suas decisões` – e não de seus precedentes. Afora a violação do precedente subjacente à súmula vinculante, a reclamação só se presta para a garantia da autoridade dos julgados do STF e do STJ”[6].
Conforme se demonstrará, as teses sustentadas pelo Prof. Mitidiero exibem diversos equívocos ao culminar pela relativização das hipóteses de cabimento da Reclamação, seja por manifestar inequívoca contrariedade à Constituição Federal e à legislação processual de regência, seja por fixar indevidamente a premissa da derrotabilidade das normas, revelando, pois, inviáveis na perspectiva democrática do processo.
Os Contrapontos às teses firmadas na obra “Reclamação nas Cortes Supremas” de autoria do Prof. Daniel Mitidiero
A Constituição Federal dispõe acerca do cabimento da reclamação perante o STF e o STJ da seguinte forma:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
(…)
l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
(…)
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.
Note-se que o instituto processual da reclamação está adscrito no texto constitucional à finalidade de impugnar julgados que contrariam ou negam vigência a “garantia da autoridades das decisões” do STF e do STJ, bem como para promover a “preservação” das competências das respectivas Cortes. A CF também consigna, explicitamente, o cabimento da reclamação para as hipóteses de ato administrativo ou decisão judicial que aplicar ou deixar de aplicar (ação ou omissão) súmula vinculante oriunda do STF.
Assim, parece-nos que a CF, ao estabelecer o espectro de incidência da reclamação em face de decisões que venham a contrariar ou negar vigência à autoridade dos julgamentos proferidos no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade e súmulas vinculantes (no âmbito do STF) e garantir a autoridade de julgados ou decisões (no âmbito do STJ), não vetou a possibilidade de o legislador regulamentar quais as decisões, julgados ou provimentos jurisdicionais dela poderiam ser objeto.
Fora exatamente deste modo que as Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, regulamentaram a ADC, ADI e ADPF, ou seja, as ações de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade e o alcance do efeito erga omnes e eficácia vinculante dos seus julgados, inclusive, disciplinando a extensão para as decisões provisórias[7] (=cautelares ou antecipatórias) concedidas nessas espécies de ações, conforme os arts. 4º, § 3o da Lei 9.882 e 11, § 1o da Lei 9.868.
O CPC em vigor, lei federal ordinária de âmbito nacional (CF, art. 22, I), caminhou para a expansão da utilização da reclamação para alcançar, além daqueles previstos na CF acima mencionados, alguns outros provimentos (=decisões/julgados) formalmente vinculantes (=equivocadamente denominados de precedentes) estabelecidos em seu art. 927, I a III c.c. arts. 942, § 3o, 985 e 1.040.
Perceba-se que o art. 988 do CPC não criou novas modalidades de reclamação, mas, tão somente, disciplinou o âmbito de incidência e regulou o procedimento relativo a uma dimensão daquele instituto em uma de suas hipóteses, qual seja: a garantia da autoridade de suas decisões.
Nessa perspectiva, para além das hipóteses de reclamação em relação aos julgados oriundos do processo objetivo, o CPC passou a regular quais decisões ou julgados passam a ser dotados do qualificativo a ensejar potência (=força) capaz de, nas hipóteses de inobservância, gerar ao jurisdicionado a legitimidade para o manuseio da referida ação autônoma de impugnação[8].
Com isso, a reclamação passou a abarcar, em seu campo de observância (=objeto ou ato reclamado), decisões que contrariam ou negam aplicabilidade aos julgados proferidos em sede de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, aos enunciados de súmulas vinculantes, bem como os provimentos formalmente vinculantes compreendidos no CPC, restando, pois, rechaçada a afirmação do Prof. Daniel Mitidiero no sentido de que “a reclamação, porém, é martelo – e nem todos esses problemas são pregos”[9]. E assim o fazemos porque, ao menos no direito pátrio[10], com algumas nuances trazidas pela lei processual em vigor, a reclamação é sim, “martelo” para a “tutela” desses “pregos”.
De plano, uma advertência se faz necessária: aquilo que o Prof. Mitidiero denomina de “precedentes”, nós definimos como provimentos judiciais formalmente vinculantes, precedentes a priori, à brasileira ou paradigmas obrigatórios, para ficarmos somente nesses qualificativos.
Isso se justifica porque no Brasil não tivemos, não temos e dificilmente teremos, genuínos precedentes judiciais, frutos de um movimento secular histórico-cultural implementando paulatinamente através da constituição de decisões a partir de casos julgados, os quais poderão, no futuro e pelas mãos de outros magistrados e tribunais, virem a ser aceitos e institucionalmente realizados como critérios de resolução (=rationes decidendi) com todas as dificuldades e problemas que naturalmente advém à conformação de um precedente judicial, notadamente, porque, diversamente dos provimentos vinculantes brasileiros, o “autêntico” (seja na família do common law seja da civil law) não nasce como tal, torna-se pela prática garantida em razão do prestigio e robustez argumentativa-justificadora (=fundamentação) na solução de uma dada controvérsia. O fidedigno precedente “longe de uma vinculação de fixidez e definitiva, traduz antes o sábio dúctil equilíbrio, praticamente conseguido entre estabilidade e a continuidade jurídica, por um lado, e a abertura e a liberdade jurisdicionais, por outro, através da vinculação com as possibilidades do distinguishing e do overruling”[11].
Enfim, nossos “precedentes” vinculantes estão mais próximos dos revogados[12] “assentos portugueses”[13] e, guardadas as necessárias distinções entre o regime soviético e o Estado Democrático, às diretivas[14] da Ex-URSS do que para os legítimos precedentes sejam eles estadunidenses ou ingleses sejam aqueles práticos na tradição da civil law.
Feitas essas considerações, podemos concluir, diversamente do que expôs em sua obra o Prof. Daniel Mitidiero, que (i) decisões emanadas do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, (ii) “precedentes” formalmente vinculantes e (iii) súmulas, todos eles, quer por prescrição constitucional ou por regulamentação legal são provimentos dotados de eficácia vinculante, suficientes a desafiar a reclamação como meio idôneo à tutelar a garantia da autoridade das decisões do STF e STJ.
Vejamos.
Em sua obra, o autor averigua: “Com que sentido se pode dizer que decisões, precedentes e súmulas têm efeito vinculante? E mais: em qual esquina do direito brasileiro o efeito vinculante se encontrou com a reclamação?”[15].
Antes, porém, de responder as interpelações, uma observação a respeito do efeito erga omnes e da eficácia vinculante revelam-se de fundamental importância. Expliquemos.
Em síntese, o efeito erga omnes, eminentemente processual, atinge a todos. Sob a concepção objetiva, alcança a parte dispositiva da decisão, tornando obrigatória a sua obediência. A eficácia vinculante, em regra, alcança não só a parte dispositiva do provimento jurisdicional, mas extensivamente a fundamentação do decisum. Envolve, portanto, as rationes decidendi (=fundamentos determinantes) do ato proferido. Como se percebe, importa-se com a motivação a qual determinou os porquês de uma determinada lei ser inconstitucional. A questão não será meramente a inconstitucionalidade da lei, mas qual ou quais os fundamentos jurídicos utilizados como imprescindíveis para a declaração da inconstitucionalidade. Repise-se que, a rigor, a coisa julgada formal e material atingem a parte dispositiva (efeito erga omnes), enquanto a eficácia vinculante alveja os fundamentos que determinaram o sentido da decisão.
Logo, enquanto a eficácia vinculante da decisão, em seu aspecto subjetivo, atinge a todos os órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública em seus três níveis federativos, o efeito erga omnes, por seu turno, acerta o Poder Judiciário (à exceção do STF) e a Administração Pública em geral, bem como, reflexamente, os particulares.
O Poder Legislativo também não é atingido pela eficácia vinculante, revelando, com isso, que não está subordinado (submetido) em sua função típica aos pronunciamentos do STF. Em última análise, o legislador poderá elaborar lei de conteúdo idêntico àquele declarado inconstitucional[16].
Portanto, no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, o efeito erga omnes (=força de lei contra todos) expunge do ordenamento jurídico a lei declarada inconstitucional. Já a eficácia vinculante agrega-se à coisa julgada proferida no processo objetivo de constitucionalidade, conferindo qualidade especial aos pronunciamentos provisórios (=liminares) e definitivos (=coisa julgada formal e material), garantindo aos jurisdicionados a utilização da reclamação para assegurar o cumprimento e o respeito da decisão proferida pelo STF.
Diga-se, por oportuno, que, embora o STF tenha, por algum tempo, adotado a tese da vinculação tanto do dispositivo quanto dos elementos que compõem a fundamentação, atualmente, a eficácia vinculante parece recair tão somente na parte dispositiva da decisão oriunda de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, reduzindo com isso a utilização da reclamação como meio processual adequado à fiscalização da constitucionalidade, malgrado o fato de a reclamação 4.374 ter consagrado o manejo da referida ação para tal fim[17], possibilitando a (re)análise do pronunciamento objeto de ADI.
Não obstante a existência dessa oscilação na admissão da extensão do efeito vinculante à motivação da decisão fruto de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, o fato é que tal ligação (=união), certamente, criaria uma espécie de paralisia no sistema “impossibilitando a abertura e evolução do direito constitucional. A eficácia vinculante, prevista no art. 102, § 2º, é restrita ao dispositivo”[18].
No entanto, a questão do cabimento de reclamação que tenha por objeto ato (comissivo ou omissivo) em desacordo com o sentido conferido por uma decisão do STF proferida em sede de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade – parâmetro normativo), p. ex., não parece gerar dúvidas.
O legitimado, apresentando pertinência/estrita aderência entre o ato reclamado e a decisão paradigma oriunda de uma ADI, por certo, teria, ao menos, viabilizado o conhecimento da reclamação perante o STF[19].
Fixadas tais premissas, retornemos às interrogações propugnadas pelo Prof. Daniel Mitidiero.
Em relação aos dispositivos relacionados às ações de controle concentrado abstrato de constitucionalidade, a resposta é a de que o sentido do efeito vinculante é aquele emanado do comando emergente do pronunciamento do STF nas ações diretas ou declaratórias de constitucionalidade, bem como na arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do art. 102, § 2º da CF/88, o qual contempla o mérito e a tutela provisória. A ação especial para controlar a garantia da autoridade dos pronunciamentos encontra amparo no permissivo constitucional referido c.c. art. 988, II do CPC.
No que diz respeito aos provimentos vinculantes, data maxima venia, não nos convence a afirmação do jurista gaúcho no sentido de que “os precedentes não vinculam” se, ele próprio, reconhece que o julgado “indica qual é a estrada que, diante de uma questão idêntica ou semelhante, leva ao destino assinalado pelo direito. Em outras palavras, o precedente é o próprio direito devidamente interpretado pelas Cortes Supremas a partir de determinado caso” e, ainda, reforça tal entendimento ao asseverar que “o que vincula, portanto, não é a tese, mas o precedente de que deriva”[20].
Ora, o sentido da vinculação nos parece de solar clareza. É que o CPC outorgou ao STF e ao STJ a possibilidade de proferirem julgamentos em recurso extraordinário com repercussão geral e recursos extraordinário e especial representativos de controvérsia repetitiva, conferindo-lhes, explicitamente, eficácia vinculante quanto aos motivos ou fundamentação determinantes (holding ou rationes decidendi), convolando tais recursos em verdadeiros parâmetros normativos decisórios obrigatórios às instâncias ordinárias.
Tais previsões se encontram tipificadas nos art. 988, II, § 5º, II, c.c. art. 489, § 1º, V e VI[21] do CPC. Enfatiza-se que o uso da reclamação nesses casos é subsidiário, ou seja, só nasce o interesse de agir uma vez exauridos os meios recursais típicos de impugnação (=esgotamento das instâncias inferiores), com a persistência da manutenção do ato decisional violador da autoridade do Tribunal, devendo ser proposta, inclusive, antes do trânsito em julgado do ato reclamado, conforme a dicção da súmula 734 do STF.
No ponto, também nos parece rúptil a diferenciação que o Prof. Mitidiero realiza acerca das noções de “decisão” e “precedentes”, a fim de afastar o cabimento da reclamação. Para o jurista, “as decisões julgam um caso especificamente delimitado, o qual pode envolver uma controvérsia concreta ou abstrata”, enquanto “os precedentes não julgam um caso”, mas “visa a dar unidade à ordem jurídica”. Assim, conclui que “enquanto a decisão resolve uma controvérsia específica do passado, o precedente dá uma orientação geral para o futuro”.[22]
A debilidade ocorre, pois, ao contrário do que sustenta o renomado autor, a formação do precedente deve partir do julgamento da lide e jamais servir como mero pretexto para a criação de provimentos prospectivos (precedentes-relógios)[23], já que o padrão decisório se desprenderia do conjunto fático-jurídico de que se originou, afinal, conforme assevera Streck, o caso concreto “é a única razão de ser de haver tribunais”[24].
Em outros termos, o precedente é construído a partir de uma lide a ser conhecida, apreciada e julgada por meio de uma decisão, motivo pelo qual a diferenciação realizada pelo Prof. Mitidiero gera a estruturação de um provimento vinculante como se fora um edifício de ponta cabeça, distorcendo e afastando o cabimento da reclamação.
Tanto é assim que, ao julgar, p. ex., um recurso especial repetitivo, o STJ, por óbvio, aprecia a lide (=caso concreto) em que se originou referido padrão decisório no mesmo provimento vinculante (=acórdão).
No que pertine às súmulas vinculantes, tais quais os “precedentes”, não há dúvidas que o sentido da vinculatividade de seus enunciados, desde 2004, encontra assento constitucional (CF, art. 103-A) disciplinando o instituto. Pela dicção dos dispositivos, confere-se ao STF a possibilidade de instituir, mediante quórum qualificado de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, a proposição de súmula (=como parâmetro normativo decisório) com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, facultando-lhe, ainda, à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida na Lei 11.417/2006.
Os aludidos enunciados de súmulas vinculantes, para além de terem por objeto a aferição da validade de textos normativos, fixam a sua interpretação e estabelecem a eficácia, intentando solucionar o problema da insegurança jurídica e a contenção da multiplicação de processos sobre questões idênticas.
Estabelecido o alcance e a acepção da vinculação podemos, seguramente, afirmar que “as esquinas do direito brasileiro em que o efeito vinculante constitucional encontrou a reclamação” são precisamente duas: (i) a do ato administrativo e (ii) a da decisão judicial contraria à súmula aplicável ou que indevidamente a aplicou, desafiando, ipso facto, pelos legitimados, o manejo da reclamação perante o STF, o qual, conhecendo-a, julgará o pedido procedente para: (i) anular o referido ato administrativo violador do entendimento sumular e, (ii) na hipótese de decisão judicial a cassará, determinando que outra seja proferida com ou sem a observância do teor da súmula vinculante, conforme a hipótese concreta.
Desse modo, caracterizadas as súmulas vinculantes como sendo o produto oriundo da reiteração de decisões em um mesmo sentido produzidas pelo STF sobre matéria constitucional, ou seja, uma efetiva consolidação das razões fático-jurídicas determinantes, a respeito de um tema, não há resistência alguma em considerá-las parâmetros hábeis a desafiar a utilização da reclamação contra os atos administrativos ou judiciais (=objetos reclamados) –, guardadas as especificidades de cada uma dessas espécies – que lhe venham a negar aplicabilidade ou a lhes tomarem em sentido diverso daquele fixado.
Tudo devidamente alinhado e ajustado, verifica-se que a tese do jurista gaúcho, segundo a qual os dispositivos de julgamentos em ações de controle concentrado abstrato de constitucionalidade, os “precedentes” e as súmulas vinculantes não teriam, segundo as regras constitucionais e legais em vigor, o caráter obrigatório, não se sustenta.
No atual ordenamento jurídico é perfeitamente possível a assimilação do efeito vinculante aos padrões normativos acima destacados.
É dogmaticamente frágil a tese firmada pelo Prof. Daniel Mitidiero, pois, além de contrária aos expressos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais (CPC) mencionados alhures, não alcança eco perante a jurisprudência do STF e do STJ, as quais, embora possam oscilar, não negam a função primordial da reclamação como instituto processual adequado para controlar e fiscalizar a garantia da autoridade das suas decisões dotadas de efeito vinculante.
Isso é tão inteligível que, em sua obra, o Prof. Mitidiero, como última salvaguarda, lança na bacia das almas, um último suspiro: a tentativa de emplacar tese subsidiária ou residual, qual seja: a derrotabilidade das regras que estabelecem o cabimento da reclamação, tornando-a um instituto a ser viabilizado de forma aleatória (=ad hoc), ao sabor do arbítrio do Min. Relator ou como sustenta o jurista, uma espécie de “válvula de escape”.
Pela importância de se fazer o devido contraponto à tese, transcrevemos os fundamentos lançados pelo autor:
“A tutela de determinado direito pode ser equivocadamente deixada de lado por uma decisão judicial. É claro que isso é do jogo – erros e acertos são do dia a dia da Justiça Civil. A parte irresignada pode abrir a porta do recurso, mas o resto é silêncio. Existem situações ainda em que o caso pode ganhar contornos mais agudos: o direito violado pode ser de fundamental importância para o Estado Constitucional, cuja guarida é dada inclusive por precedentes do Supremo Tribunal Federal. Além dessa fundamental importância, pode haver ainda excepcional urgência: acaso não reexaminada e tutelado imediatamente, corre o risco iminente de desaparecer.
É exatamente para essas situações de fundamental importância e de excepcional urgência que o Supremo Tribunal Federal vem utilizando extraordinariamente a reclamação como válvula de escape para a tutela do direito amparado em precedente não retratado em súmula vinculante. É como se a fundamental importância e a excepcional urgência minassem as trincheiras das regras que disciplinam o cabimento da reclamação, tornando-as excepcionalmente para forçar a sua admissão no caso concreto.
Embora excepcional, não se trata de solução arbitrária. Universalismo e defectibilidade são temas bastante conhecidos na teoria do direito. As normas têm de resistir aos fatos – se cada recalcitrância fossem deixadas de lado, perderiam o seu caráter obrigatório e converter-se-iam em simples conselhos. Isso não quer dizer, contudo, que tenham de ser sempre insensíveis às efetivas particularidades de determinados casos. É possível prestar atenção – pontual e extraordinariamente – ao caso concreto e discipliná-lo de forma particular.
Isso não pode ocorrer sempre e de qualquer modo.
Não pode ocorrer sempre. Enfrentando o problema, observa a doutrina que o universalismo sensível aos casos ´preserva a força normativa das regras, permitindo que venham a ser superadas ou derrotadas apenas e tão somente na presença de uma razão grave, trazida ao julgador pela parte interessada e por ela devidamente comprovada, que justifique sua flexibilização e cuja consideração não desencadeie um efeito sistêmico de grave insegurança`.
Não pode ocorrer de qualquer modo. A parte tem o ônus de alegar especificamente a gravidade e a excepcionalidade do caso e prova-las, mostrando que não é razoável a aplicação da norma geral no caso particular, tendo o juiz o dever de justificar analiticamente o seu acolhimento enfrentando todos os requisitos necessários à superação da norma.
O Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a fundamental importância e a excepcional urgência como razões graves e extraordinárias, tem oferecido bons exemplos de superação da regra do cabimento da reclamação ao viabilizar, pontual e extraordinariamente, mediante o seu emprego, a tutela do precedente não retratado em súmula vinculante”[25].
E, conclui:
“O seu emprego nesse terreno deve ficar restrito à sumula vinculante e aos casos em que o precedente de excepcional importância deve ser tutelado diante de excepcional urgência, funcionando como válvula de escape para a tutela dos direitos”[26].
De um modo direto, o que pretende o Prof. Daniel Mitidiero com a tese da derrotabilidade das regras a respeito do cabimento da reclamação à luz da CF e do CPC é uma licença outorgada ao subjetivismo. Em outros termos, toda vez que o Min. Relator, no STF – ao que tudo indica a tese seria aplicada apenas para as reclamações ajuizadas perante a Corte Constitucional e restrita a “precedente não retratado em súmula vinculante” –, deparar-se com uma situação “de excepcional urgência como razões graves e extraordinárias” poderá conhecer de reclamação que atenda ou não aos requisitos de cabimento da ação originária especial.
Com o devido respeito, os provimentos dotados de eficácia vinculante a serem utilizados como paradigma normativo a permitir a cassação de eventual objeto reclamado possuem todos eles – decisão com eficácia vinculante e efeito erga omnes emanada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, recurso extraordinário ou especial repetitivos e súmulas vinculantes – autorização constitucional e legal à legitimar, pelos titulares legitimados, o aforamento de reclamação perante o STF e o STJ.
Não nos parece crível promover uma relativização desses pressupostos ou requisitos de cabimento para permitir o uso da ação em situações nas quais já se encontram amparados o menear da via processual.
Em verdade, o que transparece desses últimos argumentos promovidos pelo Prof. Mitidiero é a sensação cristalina de que a tese principal, ao pretender excluir os provimentos judiciais vinculantes por ele contestados do âmbito de incidência da reclamação, está desacreditada prima facie, situação pela qual, como ele mesmo epiteta, faz nascer a “válvula de escape”, que, ao fim e ao cabo, traduz-se em nada mais, nada menos, do que em uma licença doutrinária para o agir autoritário do STF e do STJ na aferição subjetiva do cabimento da ação especial originária aqui tratada.
Invocar em favor do órgão julgador hipóteses de “excepcional urgência” e/ou “razões graves e extraordinárias” é prejudicial ao direito posto, na medida em que legitima posturas destituídas de critérios objetivos de controle a serem exercidos pelas partes. A criação de situações “emergenciais” não são escusáveis para permitir o depauperamento do jurídico frente ao político ou à moral particularmente considerada.
Uma espécie de permissão para dizer o seguinte: mesmo que tudo o que foi sustentado no início não for suficiente para demostrar a mínima plausibilidade jurídico-positiva da tese principal, a tese subsidiária poderá contribuir para que o arbítrio judicial redefina as características institucionais da reclamação à mingua dos textos normativos existentes e vigentes.
Dessa maneira, “ao invés de gerar racionalidade e previsibilidade ao sistema jurídico, torna-se um berço de irracionalidade”[27], já que tais decisões se dariam por meio de critérios decisórios subjetivos, ou seja, sem observar as garantias da legalidade e o devido processo (CF, art. 5º, II e LIV).
A tese da derrotabilidade (=defeasibilty) das regras é absolutamente incabível para a hipótese pretendida. Afirmar que um texto normativo é “derrotável” significa, grosso modo, a dizer que ele está sujeira a exceções implícitas que não podem ser exaustivamente identificadas previamente, de forma que não é possível antecipar quais as circunstâncias que serão determinantes e suficientes para sua aplicação.
Definitivamente não é isso que se extrai da compreensão técnica dos dispositivos constitucionais e legais que estabelecem tanto os paradigmas normativos com eficácia vinculante quanto as hipóteses cerradas de cabimento da reclamação.
O conceito de “norma derrotável” possui paralelismo com os conceitos de “dever prima facie” e de “norma aberta”, muito diverso dos dispositivos que tratam, como já disse, dos parâmetros vinculantes e eventuais atos administrativos ou judiciais contrários aos seus respetivos conteúdos normativos.
A ideia de derrotabilidade, portanto, para estruturas de regras nas quais não há qualquer espaço de “indeterminação ao direito”, pois todas as normas – sejam regras, sejam princípios – têm sua “zona de certeza”, cuja aplicação a dado conjunto de casos se revelam claras para o intérprete, não se sustenta, tal qual como ocorre nos casos das regras constitucionais e processuais atinentes à identificação das (i) hipóteses de cabimento da reclamação e (ii) das descrições das causas de pedir[28] com a indicação do paradigma normativo vinculante e do objeto impugnado, demonstrando, entre eles, o indispensável cotejo analítico (=aderência estrita)[29].
Eventual existência da “zona de penumbra” – que, ressalte-se, é eminentemente contingencial – não rompe com a característica da previsibilidade das regras esposadas sobre a temática, devido à sua coexistência com a “zona de certeza” que marca os textos normativos[30] aqui tratados.
Com efeito, é bom dizer que a opção político legislativa consagrada no CPC é no sentido do reconhecimento da ampliação do efeito vinculante aos provimentos legais estabelecidos no art. 927 do diploma processual, mormente para o alegado combate à alta litigiosidade (conflitos repetitivos e/ou “de massa”), capazes de gerar um cem número de feitos perante o “sistema de Justiça Civil”.
Pretender alterar, por meio da atuação das “Cortes Supremas”, essa realidade jurídico-positiva, implementando a diluição ou a aniquilação das hipóteses de cabimento da reclamação – entre outros, para garantia a autoridade das decisões produzidas pelo STF e pelo STJ (além dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça em relação ao IRDR e ao IAC, p. ex.) – revela, a um só tempo, (i) a tentativa de desprestigiar a política legislativa produzida democraticamente pelo Parlamento Nacional e (ii) no empreendimento impróprio daqueles Tribunais de Superposição na inconcebível façanha de realizar transversalmente (=fora de suas funções típicas), a incidência da reclamação à margem das situações constitucionais e legais explicitamente consagradas, promovendo, para tanto, juízos de conveniência e oportunidade (ad hoc).
Não cabe ao Poder Judiciário substituir o legislador derivado (=constitucional e/ou ordinário). No arranjo institucional democrático suas funções são diversas daquelas desempenhadas e afetas ao Poder Legislativo. Compete-lhe, em vista do aumento dos provimentos impregnados de efeitos vinculantes, “por dever de accountability, assimilar a obrigação de fiscalizar a aplicação desses pronunciamentos”[31], desenvolvendo “uma jurisprudência aberta à revisibilidade e cassação” de decisões contrárias aos seus provimentos dotados de caráter vinculante, sob pena de “corrermos o risco de as decisões vinculantes dos Tribunais Superiores – mesmo aquelas constitucionalmente previstas – operarem no plano meramente simbólico e o direito imposto judicialmente passar a gozar da baixa dignidade nos mesmos moldes que a legislação tradicional”[32], essa última sendo, de fato, objeto de críticas pelos “precedentalistas”, inclusive, pelo Prof. Mitidiero.
Vale dizer, a perspectiva de que o STF e o STJ possam atuar desprendidos de limitações constitucionais e legais encerra por desvirtuar a democracia, como aponta Wendy Brown:
“(…) o governo dos tribunais equivale a uma subversão da democracia. Essa forma de governo não só inverte a crucial subordinação do poder judicial ao legislativo – subordinação que depende da soberania popular -, senão que transfere poder e politiza uma instituição que não tem caráter representativo”[33] (tradução livre).
Acreditar que os provimentos dotados de eficácia vinculante por si só gerariam uma drástica redução do número de recursos e reclamações não passa, ao mesmo tempo, de uma ingênua ilusão e de um paradoxo:
“A crença nos precedentes judiciais com tábua de salvação para solucionar os problemas jurisdicionais brasileiros beira às raias da loucura.
Não há nenhum dado ou estatística sobre a relação entre precedentes judiciais e razoável duração do processo. A duração razoável do processo (tempestividade jurisdicional e procedimental) depende diretamente de uma organização estatal e judiciária eficiente e não apenas de um sistema de aplicação de precedentes judiciais. A colocação dos precedentes judiciais como fator de aceleramento das decisões judiciais contribui diretamente para impor problemas de aplicação do Direito aos juízes. A ausência de uma estrutura normativa forte na aplicação do precedente irá contribuir para a duração acima do razoável do processo”[34].
Ademais, o argumento de que as funções precípuas do STF e do STJ consistiriam em Cortes Supremas (=uma “norte americanização” do direito brasileiro) criando “condições para que “trabalhem menos para que trabalhem melhor”[35], a fim de reduzir o número de reclamações, traz em si uma busca por eficiência meramente quantitativa[36] que olvida não só a legitimidade democrática das decisões, mas também a real função constitucional de tais Tribunais de Superposição, a qual não se presta à criação de teses gerais, abstratas e ininterpretáveis à artificial-estéril redução do número de processos[37].
À guisa de conclusão
Se o número de reclamações não para de crescer, produzindo uma verdadeira avalanche de feitos, evidentemente, por conta do natural efeito bumerangue[38] ou colateral que teriam produzido o aumento das hipóteses de cabimento da reclamação só há um caminho certo e constitucionalmente adequado a trilhar para se promover a alteração desse cenário estabelecido: transmude-se a lei através dos competentes processos legislativos de reforma da legislação, diminuindo-se, p. ex., as vinculações expressas, mas jamais poderemos conceber que o enfrentamento dessas questões se deem por meio da “derrotabilidade” de regras posta no ordenamento, impregnadas de posturas arbitrárias pautadas em pseudoconceitos fluídos sem qualquer ancoramento constitucional-legal, como pretendem as teses lançadas na obra “Reclamação nas cortes supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente”, de criação do jurista Daniel Mitidiero, ora analisada.
Nestes termos, concluímos nossos contrapontos às teses esboçadas pelo Prof. Mitidiero reforçando a supremacia da legalidade e o compromisso de poder “compreender-se hoje a afirmação da autonomia do direito” reconhecendo “que ela é em absoluto indispensável – pois, digamo-lo numa paráfrase à concludente eloquência de Hannah Arendt, o último e verdadeiramente fundamental direito hoje do homem é afinal o ´direito ao direito`”[39].
[1] MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas cortes supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 44-45.
[2] MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 46-49.
[3] Ibid., p. 51.
[4] Ibidem.
[5] Ibid., p. 14. Introdução.
[6] MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 51-52.
[7] Vide, p. ex.: ADI 1573 MC, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 11/06/1997, DJ 05/09/1997; Rcl 595, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 28/08/2002, DJ 23/05/2003 e Rcl 39101, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 15/04/2020, DJe 13/05/2020.
[8] Nesse sentido, Lenio Luiz Streck: “o Novo CPC, ao regulamentar a reclamação em seus arts. 988 a 993, apenas segue uma linha já traçada pela jurisprudência do Supremo Tribunal”, sendo certo que o instituto processual “não se presta tão somente às hipóteses previstas na CF; seu cabimento como mecanismo de distinguishing foi analisado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da reclamação nº 7.569/SP”. (A [nova] reclamação no CPC/2015. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 24, n. 93, p. 129-147, jan./mar.2016, p. 130-131).
[9] “A ampliação do campo da reclamação aparece na esteira da transformação de nossas Cortes Supremas. Primeiro, o controle abstrato de constitucionalidade. Segundo, a súmula vinculante. Terceiro, a eficácia do precedente. A reclamação, porém, é martelo – e nem todos esses problemas são pregos” (MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas cortes supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33).
[10] Não se nega a possível inadequação de se buscar definir a eficácia vinculante de um provimento jurisdicional a partir da utilização vis-à-vis com o eventual instituto processual que lhe possa servir de meio principal ou subsidiário de impugnação. Todavia, a reclamação, instituto processual genuinamente brasileiro, é remédio legislativamente prescrito para todas as decisões ou julgados com carga eficacial vinculante.
[11] NEVES, A. Castanheira. O instituto dos assentos e a função jurídica dos Supremos Tribunais. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 669.
[12] Os assentos foram revogados em Portugal por força de decisão emanada do Tribunal Constitucional, que os declarou inconstitucional em relação à força obrigatória geral, porque, independentemente da sua natureza legislativa ou jurisdicional, apenas as leis poderiam estabelecer normas vinculantes aos tribunais e a terceiros. Com o advento da reforma do processo civil de 1995, os assentos foram substituídos pelo julgamento ampliado de revista (732-A e 732-B do CPC português) e aqueles até então existentes passaram a ter efeito de acórdão, ou seja, entendimento jurisprudencial meramente persuasivo (ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo (REPRO). São Paulo: RT, v. 208, junho/2012, p. 203-240, p. 218-219).
[13] De acordo com as lições de A. Castanheira Neves as características dos assentos são: “confere 1) a um órgão judicial (a um tribunal) de prescrever 2) critérios jurídicos universalmente vinculantes, mediante o enunciado de 3) normas (no sentido estrito de normas gerais, ou de ´preceitos gerais e abstratos`), que, como tais, 4) abstraem (na sua intenção) e se destacam (na sua formulação) dos casos ou decisões jurisdicionais que tenham estado na sua origem, com o propósito de 5) estatuírem para o futuro, de se imporem em ordem a uma aplicação futura” (Op. cit., p. 2-4).
[14] As diretrizes expedidas pelos tribunais soviéticos eram instruções vinculativas para as jurisdições subordinadas, determinando como deveriam decidir casos concretos (NEVES, A. Castanheira, Op. cit., p. 7-10).
[15] MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 44-45.
[16] Exemplo: ADI 5105, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 01/10/2015, DJe 16.03.2016. ADI conhecida como “reação legislativa ou reversão jurisprudencial”.
[17] “Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo fosse concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovassem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Reclamação como instrumento de (re)interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. Preliminarmente, arguido o prejuízo da reclamação, em virtude do prévio julgamento dos recursos extraordinários 580.963 e 567.985, o Tribunal, por maioria de votos, conheceu da reclamação. O STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no “balançar de olhos” entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição. 4. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 5. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. 6. Reclamação constitucional julgada improcedente” (Rcl 4.374, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2013, DJe 04/09/2013).
[18] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 622.
[19] “(…) Os atos questionados em qualquer reclamação – nos casos em que se sustenta desrespeito à autoridade de decisão do Supremo Tribunal Federal – hão de se ajustar, com exatidão e pertinência, aos julgamentos desta Suprema Corte invocados como paradigmas de confronto, em ordem a permitir, pela análise comparativa, a verificação da conformidade, ou não, da deliberação estatal impugnada em relação ao parâmetro de controle emanado deste Tribunal. (…) O remédio constitucional da reclamação não pode ser utilizado como um (inadmissível) atalho processual destinado a permitir, por razões de caráter meramente pragmático, a submissão imediata do litígio ao exame direto do Supremo Tribunal Federal” (Rcl 6534 AgR., Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 25/09/2008, DJe 17.10.2008, RT v. 98, n. 879, 2009, p. 162-170 e RF v. 104, n. 400, 2008, p. 360-370).
[20] MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 46-49.
[21] O STJ, reforçando a eficácia vinculação de seus provimentos estabeleceu que, a “regra do art. 489, §1º, VI do CPC a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de 2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado” (REsp 1.698.774-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 01/09/2020, DJe 09/09/2020).
[22] MITIDIERO, Daniel, Op. cit., p. 46-47.
[23] “Percebe-se, então, que assim como os relógios, os precedentes obrigatórios permitiriam uma autossuficiência em razão de predeterminar as decisões e prever o que será aplicado no futuro, sob os fundamentos de segurança jurídica e isonomia. Vê-se, nesse sentido, que a defesa dos precedentes obrigatórios acaba por preconizar precedentes prospectivos, sempre voltados à aplicação futura dos entendimentos jurisprudenciais” (MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: entre nuvens e relógios. Revista Meritum, Belo Horizonte, vol. 15, n. 1, p. 118-146, jan./abr. 2020, p. 127. Disponível em: http://www.fumec.br/revistas/meritum/article/view/7759).
[24] Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 51.
[25] MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas cortes supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 85-87.
[26] Op. cit., p. 127.
[27] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: da vinculação à democratização. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 187.
[28] De forma singela “a causa remota será o fato constitutivo da pretensão do reclamante, ou seja, a descrição de conduta comissiva ou omissiva de determinada autoridade (administrativa ou judicial) que represente usurpação de competência, desrespeito a julgado, ou violação de súmula vinculante. A causa próxima, ou seja, a qualificação jurídica daquele fato constitutivo, será o adequado enquadramento daquela conduta em uma das hipóteses tipificadas como autorizadora do uso da reclamação” (LEONEL, Ricardo Barros. Reclamação constitucional. São Paulo: RT, 2011, p. 246-247 e 249-250). No mesmo sentido: “A causa de pedir remota na reclamação são os fatos constitutivos alegados pelo autor que configurem uma situação material, in concretum, de usurpação de competência, ou de desrespeito à autoridade de decisão ou, ainda, de inobservância de súmula vinculante, de decisão em controle concentrado de constitucionalidade, de acórdão de julgamento de casos repetitivos e de incidente de assunção de competência. Em outras palavras, a causa de pedir remota se traduz em uma situação concreta – ao menos em narrativa realizada pelo autor – que pretenda caracterizar alguma das hipóteses de cabimento previstas no art. 988 do CPC. São os fatos afirmados na petição inicial, que o autor entenda enquadrarem-se em uma das hipóteses de cabimento da reclamação constitucional. Tais hipóteses constituem um rol exaustivo, que não pode ser aumentado sequer por analogia. Se o autor descreve duas ou mais situações concretas suficientes para caracterizar uma ou mais, das hipóteses de cabimento, haverá cumulação objetiva de demandas reclamatórias, já que presente mais de uma causa de pedir remota” (AZEVEDO, Gustavo. Reclamação constitucional no direito processual civil. São Paulo: Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 140). E, por fim, para os classificam a causa de pedir remota e próxima de forma diversa (invertendo as proposições), a causa de pedir próxima é a conduta afrontosa. Quanto à causa de pedir remota, na reclamação, tem-se que o seu conteúdo e a necessidade de ser resguardada a competência e a autoridade dos julgados. Nesse sentido: MORATO, Leonardo Lins. Reclamação e a sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. São Paulo: RT, 2007, p. 124-125.
[29] Entre multifárias decisões, destacamos: Rcl 22039 ED, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 12/05/2017, DJe 31/05/2017; Rcl 36688 AgR., Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2019, DJe 07/11/2019 e Rcl 28015 AgR., Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 16/03/2018, DJe 04/04/2018.
[30] VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: represando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 116-117 e 119-120.
[31] ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 931.
[32] Ibidem.
[33] BROWN, Wendy. Ahora todos somos demócratas. In: AGAMBEN, Giorgio et all. Democracia en suspenso. Madrid: Ediciones Casus-Belli, 2010, p. 65.
[34] SOARES, Carlos Henrique. Paradoxos dos precedentes judiciais. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 25, n. 100, p. 55-83, out./dez. 2017, p. 72.
[35] MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas cortes supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, introdução.
[36] Segundo Helena Patrícia Freitas, “a concepção de eficiência econômica neoliberal acaba por se entranhar na efetividade, em sua inteireza, de modo a contaminar o seu ideário democrático e fazendo irromper uma virulência, de modo que o processo passa a ser visto como um mero instrumento a serviço da jurisdição, sendo os jurisdicionados apenas consumidores, e, assim, todas as cogitações pautam-se em averiguações de racionalidade econômica tecnicista e vinculadas a resultados matemáticos-financeiros” (Eficiência da jurisdição: necessidade de sua (des)construção para efetivação do modelo constitucional de processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p.190).
[37] “(…) o Judiciário não pode ser Einsatzgruppen (forças-tarefa de extermínio) de processos” (STRECK, Op. cit., p. 68).
[38] É uma espécie de efeito bumerangue “em que o Supremo decide por solução coletiva evitando demandas múltiplas, mas quando assim age corre severíssimo risco de voltar contra este uma imensidão de reclamações individuais” (FERREIRA, William Santiago. Súmula vinculante – solução concentrada: vantagens, riscos e a necessidade de um contraditório de natureza coletiva (amicus curiae). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FISCHER, Octávio Campos; FERREIRA, William Santos (Coords.). Reforma do judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: RT, 2005, p. 817).
[39] O direito hoje e com que sentido? 3ª Ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2012, p. 73.
*Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 29, n. 113, p. 199-217, jan./mar. 2021.