PRINCÍPIO NÃO É NORMA (16ª PARTE)

Ao Dr. José Maria da Costa

 

I

De acordo com o artigo 4º do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (a chamada «Lei de introdução às normas do direito brasileiro»), «quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito». Se não vige uma regra legal expressa que resolva uma determinada relação jurídica discutida, o juiz pode criar uma regra para o caso. Diante da lacuna do ordenamento jurídico, em lugar de se aplicar uma regra legal criada ante causam, se aplica uma regra judicial criada post causam. Apesar disso, o ponto de partida para se fechar o sistema jurídico normativo não fica ao exclusivo alvedrio do juiz. O próprio sistema se encarrega de impor objetivamente ao juiz os pontos de partida devidos (que são «a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito»). A cláusula geral sobre colmatação de lacunas contida no artigo 4º da LINDB é uma regra jurídica, não um princípio de direito. É um imperativo hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser«], não um imperativo categórico [«A deve ser»]. É uma prescrição, não uma simples recomendação. É hard law, não soft law. Tem força coercitiva, não força meramente nomopneica, sugestiva ou insinuativa (sobre o conceito de nomopneia, v. nosso Princípio não é norma – 14ª parte. <https://cutt.ly/BV8zFRB>). Logo, é insuperável por qualquer órganon jusfilosófico da preferência pessoal do juiz.

Aliás, é uma cláusula genérica, que se aplica a todo e qualquer ramo do direito. Nada obstante, ramos específicos do direito podem proibir o preenchimento in malam partem de lacunas. É o caso do direito penal. Ademais, nada impede que determinados ramos do direito contenham cláusulas específicas de colmatação de lacunas. É o caso, por exemplo, do direito tributário. No Brasil, assim dispõe o Código Tributário Nacional (a Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966): «Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a equidade. § 1º. O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º. O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido».

 

II

Por isso, a esquematização judicial da regra colmatadora de lacuna não é uma criação normativa ex nihilo. A invenção judicial da regra casuística deve fazer-se «de acordo com a analogia», «de acordo com os costumes» ou «de acordo com os princípios gerais de direito». Note-se que a cláusula geral sobre preenchimento de lacunas não permite que essa criação se faça de acordo com qualquer senso de justiça, equidade ou outra dimensão de moralidade. A fonte de suprimento para se fechar o vazio legislativo não são os princípios da moral [ordo moralis]; a bem da verdade, são os princípios do direito [corpus principiorum iuris], que são os princípios da moral que o legislador selecionou, ora enunciando-os em dispositivos [= princípios de direito explícitos], ora subentendendo-os em uma sequência determinada de regras jurídicas [= princípios de direito implícitos].

Note-se, além do mais, que no preenchimento da lacuna o juiz não decide o caso «de acordo com a analogia, os costumes E os princípios gerais de direito», mas «de acordo com a analogia, os costumes OU os princípios gerais de direito». Afinal de contas, «analogia», «costumes» e «princípios gerais de direito» não se somam necessariamente na criação da regra judicial. Não se trata de três cofatores, que se complementam no processo de integração jurídico-sistêmica. O juiz pode chegar ocasionalmente a uma única e mesma regra para o caso partindo de uma analogia, de um costume e de um princípio de direito. Mas só ocasionalmente. Quase sempre, para resolver um determinado caso, o juiz chegará à regra x partindo de uma analogia, chegará à regra y partindo de um costume e chegará à regra z partindo de um princípio de direito. Em vista disso, surgem fatalmente as seguintes indagações: é possível estabelecer uma hierarquia entre a analogia, os costumes e os princípios jurídicos, tal como se estabelece no artigo 108 do CTN? A sequência apresentada pelo artigo 4º da LINDB não institui uma ordem de preferência decrescente ou sucessiva, denotando que a analogia prefere aos costumes e que os costumes preferem aos princípios de direito? Qual regra casuística deve preponderar: xy ou z? O juiz pode fazer uma escolha entre elas, ainda que não aleatória?

 

III

Uma resposta a essas perguntas exige que antes se compreendam bem esses três modos de integração (modos, não «métodos», pois não há uma linha de evidência que, percorrida sem desvios, conduza a uma única e mesma regra de colmatação). Quando se fala em resolver um caso «partindo-se de uma analogia», «partindo-se de um costume» e «partindo-se de um princípio de direito», o verbo partir assume significados distintos entre si em cada uma das três locuções. Os caminhos que permitem ao juiz preencher uma lacuna a partir de uma regra legal análoga, a partir de um costume e a partir de um princípio de direito são bastante diferentes entre si.

1) No preenchimento de lacuna «a partir de analogia», o vazio legislativo não é colmatado propriamente pela analogia per se, mas por uma regra nova que o juiz cria inspirado numa regra legal análoga preexistente. Contudo, da regra legal análoga à regra judicial de integração se chega por assemelhação. Se a regra legal inspiradora X é do tipo «Se A é → B deve ser», a regra judicial inspirada Y é do tipo «Se A’ é → B’ deve ser». Dessa forma, X ~ Y. 2)

No preenchimento de lacuna «a partir de costume, o vazio legislativo não é colmatado propriamente pelo costume per se, mas por uma regra nova que o juiz cria inspirado num costume preexistente. Todavia, do costume à regra judicial de integração se chega por reproduçãocopiagem ou imitação. Se o costume inspirador X é do tipo «Se A é → B deve ser», a regra judicial inspirada Y é do tipo «Se A é → B deve ser». Destarte, X = Y.

Por fim, 3) no preenchimento de lacuna «a partir de princípio de direito», o vazio legislativo não é colmatado propriamente pelo princípio per se, mas por uma regra nova que o juiz cria inspirado num princípio de direito preexistente. Contudo, do princípio à regra judicial de integração se chega por densificação ou concretização. Se o princípio inspirador X é do tipo «A deve ser», a regra judicial inspirada Y1 é do tipo «Se B é → C deve ser». Sem embargo, nas maior parte dos casos, Y1 é só uma das possibilidades de densificação de X. O princípio X é concretizável por qualquer das regras Y1, Y2, Y3, … Yn. Daí por que o juiz escolhe uma delas como a mais «adequada», «justa» ou «equitativa» para preencher a lacuna segundo o seu senso particular, sem que haja qualquer trilha metodológica única e unívoca entre X e Y1.

 

IV

Como se vê, não se preenche lacuna com a analogia em si, mas com uma regra judicial inspirada em uma regra legal análoga; nem com a regra consuetudinária em si, mas com uma regra judicial inspirada na regra consuetudinária; nem com o princípio jurídico em si, mas com uma regra judicial inspirada no princípio jurídico. A regra legal análoga, a regra consuetudinária e o princípio jurídico não são os suprimentos em si, mas as fontes do suprimento. Não se tapam os buracos do sistema normativo com a regra legal análoga, com a regra consuetudinária ou com o princípio jurídico, mas com algo que se constitui a partir deles, começando-se por eles, desde eles. Eles são as fontes de inspiração para que o magistrado crie as regras colmatadoras de lacunas, como se legislador fosse, e as aplique aos casos concretos, sendo o juiz que é. Mais: trata-se das únicas fontes de inspiração admitidas, não sendo possível socorrer-se de qualquer outra [= exclusividade da cláusula geral sobre colmatação de lacunas]. Aliás, são fontes bastantes para não se incorrer em non liquet, não havendo lacuna que a partir delas não se possa preencher [= suficiência da cláusula geral sobre colmatação de lacunas].

Ora, se a lacuna é preenchida por uma regra judicial inspirada em uma regra legal análoga, em uma regra consuetudinária ou em um princípio jurídico, é porque falta ao ordenamento jurídico aquilo de que ele se constitui: regra. O ordenamento jurídico é um conjunto sistemático de regras – e apenas de regras – com estrutura escalonada. Há quem diga que o direito não se faz somente delas. Para uns, o direito se faz de regras e princípios; para outros, a dogmática jurídica faz parte do direito; há ainda quem sustente que o direito é uma unidade dinâmica de três fatores operantes: fato, valor e norma. No entanto, quem disser o direito vai além das regras terá de reconhecer que essa dimensão extrarregulativa do direito está fora do ordenamento jurídico. Terá de reconhecer que os elementos do direito que não são regras gravitam ao redor do ordenamento jurídico sem jamais o adentrar. Em suma, terá de reconhecer que direito > ordenamento jurídico. Decididamente, dentro do ordenamento só existem regras. Nada mais do que isso.

 

V

Não é difícil perceber que em qualquer dos três modos de fechamento do sistema existe algum grau de criatividade. Por isso, quando supre um vazio legislativo, o juiz desempenha uma atividade jurisdicional imprópria. Na colmatação de lacunas, o trabalho do juiz é menos jurisdicional que legislativo, menos deliberativo que burocrático, menos técnico que político, menos interpretativo que criativo (para uma distinção entre interpretação e criação, v. nosso Garantismo é textualismo?. <https://cutt.ly/UV0aDbf>). Trata-se de uma atividade judiciária não jurisdicional, de uma atividade jurislativa extralegislativa, em que o Poder Judiciário não se limita a aplicar direito já criado pelo Poder Legislativo ou, excepcionalmente, pelo Poder Executivo. O juiz mesmo cria o direito que aplicará ao caso, de uma maneira paralegislativa, como se fosse um «parlamento de um homem só». Sendo assim, o suprimento judicial de lacuna inflige uma leve fissura no Estado democrático-parlamentar de direito legislado [CF/1988, preâmbulo e artigos 1º, caput, e 5º, II], caracterizando-se como uma concessão episódica a uma espécie de «Estado aristocrático-judiciário de direito jurisprudencial».

Daí por que a cláusula geral de colmatação de lacunas deveria constar não de lei, mas da própria Constituição Federal. É regra materialmente constitucional, que tem habitado – de modo formal, mas indevido – texto infraconstitucional. Isso não significa que se tenha de decretar a inconstitucionalidade do artigo 4º da LINDB e libertar simplesmente o juiz de qualquer parâmetro operativo para o preenchimento de lacunas. Entendimento contrário produziria aquilo que a doutrina alemã chama de «lacuna jurídica ameaçadora» [bedröhliche Rechtslücken] (sobre o tema, v. MENDES, Gilmar. Jurisdição constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 276-277). A inexistência de uma cláusula geral de colmatação de lacunas seria pior que as próprias lacunas que ela procura preencher. Seria um salvo-conduto para o juiz estilhaçar a autonomia do direito, criando arbitrariamente regras de colmatação fundadas em imperativos fluidos de politicidade, moralidade, religiosidade, economicidade ou qualquer outra dimensão extrajurídica de socialidade.

 

VI

Essa inevitável criatividade judicial implicada em todo e qualquer processo de integração sistêmica vai de encontro, em alguma medida, aos postulados fundamentais de um Estado democrático-parlamentar de direito legislado. Nele, a criação do direito é função primacial do Poder Legislativo. Aos Poderes Executivo e Judiciário se reserva a função primacial de aplicar fidedignamente o direito criado no Poder Legislativo pelos representantes eletivos do povo. No Poder Judiciário, a aplicação se faz sob a garantia da imparcialidade (que é majus); no Poder Executivo, quando muito sob a garantia da impessoalidade (que é minus) (para uma distinção entre imparcialidade e impessoalidade, v. nosso O juiz e o administrador público... <https://cutt.ly/WBrzFpP>). A função jurídico-criativa, que define a própria razão de ser do Legislativo, se chama jurislação. A função jurídico-aplicativa, que define a própria razão de ser do Executivo, se chama administração. A função jurídico-aplicativa, que define a própria razão de ser do Judiciário, se chama jurisdição.

No entanto, os três poderes têm função normativa. O Legislativo produz norma para criar direito; o Executivo e o Judiciário, para pormenorizar o que se criou. Noutras palavras: a normatividade legislativa é regulatória; as normatividades executiva e judiciária, regulamentatória. Mediante lei, v. g., o Legislativo regula. Mediante decreto, v. g., o Executivo regulamenta. Mediante regimento interno, v. g., o Judiciário regulamenta (obs.: a essa divisão político-funcional, que se convencionou chamar de «separação de poderes», é possível haver – e, no Brasil, há – exceções previstas na própria Constituição).

Ora, quando se analisa esse arranjo institucional, conclui-se que ao menos duas barreiras se impõem ao Judiciário para que ele não se arvore arbitrariamente nas funções típicas dos outros dois Poderes: a 1) imparcialidade e a 2) não criatividade (para um aprofundamento do tema, v. nosso As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais… <https://cutt.ly/bBeLsTN>). Por isso, ante a garantia implícita da não criatividade judicial, é possível afirmar que o modo de preenchimento preferível é sempre o modo menos criativo. Nesse sentido, é possível estabelecer uma hierarquia entre os meios de integração.

 

VII

Antes, porém, é chegada a hora de se estabelecer uma distinção entre duas figuras que, em não raras vezes, são confundidas entre si: a interpretação extensiva e a analogia. Na interpretação extensiva, o juiz estende a hipótese de incidência ou a consequência jurídica a situações ignoradas pela regra jurídica, embora semelhantes às situações literalmente contempladas [A → B; J: A’ → B ou A → B’]. Na analogia, o juiz cria uma regra jurídica até então inexistente, com hipótese de incidência e consequência jurídica assemelhadas às partes constituintes de uma regra jurídica preexistente [A → B; J: A’ → B’]. Na interpretação extensiva, o juiz cria elementos para uma regra jurídica, porém não uma regra jurídica nova. Na analogia, o juiz cria todos os elementos de uma regra jurídica e, portanto, uma regra jurídica nova. Tanto em um caso quanto noutro, elabora-se um juízo de similitude ou semelhança [= elemento criativo] a partir de uma base textual preestabelecida [= elemento interpretativo].

Não se trata de criatividade pura, pois o juiz não parte do nada, mas de uma base textual. Tampouco se trata de interpretatividade pura, pois o juiz extrapola os determinantes semântico-pragmáticos da base mencionada. Na realidade, orbita-se uma zona intercalar entre a interpretação e a criação. Na interpretação extensiva, prepondera o elemento interpretativo [= «interpretação-criação»]; na analogia, prepondera o elemento criativo [= «criação-interpretação»]. Na interpretação extensiva, o juiz é mais juiz que legislador; na analogia, o juiz é mais legislador que juiz. A interpretação extensiva é uma expressão do Estado democrático-parlamentar de direito legislado; a analogia, uma concessão ad hoc ao «Estado aristocrático-judiciário de direito jurisprudencial». Por conseguinte, diante da garantia da separação de poderes, é de se esperar que a justificação da analogia (cuja criatividade é majus) exija um ônus argumentativo mais pesado que a justificação da interpretação extensiva (cuja criatividade é minus). Não sem motivo, o emprego da analogia é correntemente limitado ao preenchimento de lacunas; em contraposição, o leque de possibilidades para a interpretação extensiva costuma ser muito mais amplo.

 

VIII

Na colmatação de lacuna a partir de um princípio de direito, há um grau máximo de criatividade judicial. Afinal, como visto acima, o juiz simplesmente escolhe uma das tantas regras de densificação possíveis sem qualquer percurso metodológico. Ele próprio estrutura a regra jurídica esquematizando a hipótese de incidência e a consequência jurídica que entende mais adequadas para o caso. Em contrapartida, o grau de criatividade judicial é menor quando se colmata lacuna a partir de um costume, ou mesmo de uma analogia. Quando o juiz invoca um costume, ele não faz escolhas: a regra judicial tem praticamente a mesma estrutura da regra consuetudinária. Nesse sentido, na colmatação de lacuna a partir de um costume, há um grau mínimo de criatividade judicial. Por outro lado, quando o juiz procede a uma analogia, a regra judicial não é uma imitação desimaginosa da regra legal análoga, nem o produto de uma construção desinibida. O grau de criatividade judicial é médio. Fica na zona intercalar entre o uso de um costume e o uso de um princípio de direito. O juiz se inspira na regra legal análoga, mas essa inspiração não lhe permite distanciar-se sobremaneira dela. Enfim, o juiz não pode romper o vínculo de semelhança entre a regra legal inspiradora e a regra judicial inspirada.

Entretanto, isso não significa que o costume seja necessariamente preferível à analogia. É importante lembrar que a regra consuetudinária está fora do direito e que a regra legal análoga está dentro dele. Consequentemente, a regra judicial produzida a partir de uma analogia tende a sintonizar-se mais com a «lógica substancial» do ordenamento jurídico do que a regra judicial produzida a partir de um costume. Isso indica que a regra produzida pelo juiz mediante analogia seria provavelmente a regra que o legislador teria produzido se houvesse previsto a situação concreta. Não sem motivo há quem defenda que o juiz deve valer-se, «por primeiro, da analogia; ao depois, dos costumes; e, por fim, dos princípios gerais do Direito» (COSTA, José Maria da. Justiça alternativa é retrocesso. <https://cutt.ly/jBrXBTc>. Do mesmo autor, v. Código Florestal Comentado. Ribeirão Preto: Migalhas, 2020, p. 26).

Uma coisa é certa: o uso de princípios jurídicos para o preenchimento de lacunas é a ultima ratio.

Autor

  • Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

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