Em 09.09.2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação nº 134/2022[1], que dispõe acerca do tratamento sobre precedentes qualificados pela função jurisdicional. As recomendações do CNJ teriam objetivo de aprimorar e trazer maior eficiência à própria atividade jurisdicional.
Dentre as diversas recomendações constantes da nº 134/2022, a do artigo 10 nos chamou atenção. Referido artigo dispõe:
Art. 10. Recomenda-se que haja menção expressa, na decisão, sobre as razões que levam à necessidade de afastamento ou ao acolhimento dos precedentes trazidos pelas partes (art. 489, § 1º, V e VI, do CPC/2015).
Ou seja, o CNJ recomendou que juízes e tribunais, ao aplicar ou afastar os precedentes trazidos pelas partes, devem mencionar expressamente as razões que levam à decisão, em observância ao dever de fundamentação constante do artigo 489, §1º, V e VI, do CPC.
Mas, por qual motivo essa recomendação nos gera uma certa perplexidade?
No Estado Democrático de Direito[2], fundamentar uma decisão é “justificar o órgão estatal julgador, no processo, as razões pelas quais a decisão foi proferida”[3], sem que a justificação seja contaminada por influxos dos sentimentos pessoais do magistrado ou seu livre convencimento, posto que tal justificativa “tem de ser feita dentro de um conteúdo estrutural normativo que as normas processuais lhe impõem” [4], a partir dos argumentos fáticos, jurídicos e das provas trazidas pelas partes nos autos do procedimento.
A fundamentação da decisão deve ser o resultado da atividade procedimental realizada em torno das questões discutidas e dos argumentos produzidos em contraditório pelas partes em todas as fases e etapas procedimentais já que suportarão os efeitos da decisão final.[5] É por isso que Ronaldo Brêtas conclui que os argumentos das partes, como razões de justificação produzidas em contraditório, irão ser a base para as razões da decisão, o que possibilita a geração de um pronunciamento decisório participado, democrático e legitimado.[6]
Logo, a fundamentação das decisões não pode ser negada pelo julgador, pois:
[…] gera déficit de legitimidade e democraticidade do processo; não permite a participação e influência das partes no resultado decisório; impossibilita que as partes exerçam controle e fiscalizem a atividade jurisdicional; olvida a efetivação de direitos e garantias fundamentais; gera um espaço de suspensão e exceção da legalidade; fere o contraditório e a ampla defesa já que os conteúdos de tais princípios serão ignorados pelo magistrado; aumenta a discricionariedade e subjetividade do julgador; fere a imparcialidade; possibilita o aumento do número de decisões declaradas nulas por recursos interpostos, dentre inúmeros outros retrocessos que serão causados à democracia.[7]
Assim, cumpre mencionar que a ausência de fundamentação, além de tornar a decisão nula, também a torna inconstitucional e gera um estado de exceção[8], já que ignora o que foi debatido em contraditório pelas partes e não permite o exercício de fiscalidade.
Por isso nos gerou certa perplexidade a recomendação em comento. Primeiro, porque nos estranha o CNJ recomendar que haja a observância de um dever constitucional. Ora, o artigo 93, IX, da Constituição é claro ao dispor que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” e na mesma linha segue o artigo 11 do CPC.
Desse modo, a fundamentação não pode ser tratada como uma simples recomendação, mas, sim, como um DEVER de todos órgãos do Judiciário, inclusive para que as partes possam exercer controle e fiscalidade sobre as decisões, independentemente de se tratar ou não de aplicação ou distinção de precedentes.
Segundo, pois recomendar um dever constitucional – que seria uma obrigação – nos dá a ideia de que o CNJ chancela a ausência de fundamentação, algo como: “recomendo fundamentar, mas se não o fizer, está tudo bem!”. O significado de recomendação nos parece muito mais próximo de um aconselhamento do que uma obrigação.
E, terceiro, se há a recomendação, é evidente que existem juízes e tribunais que não fundamentam a aplicação ou distinção dos precedentes como determina o artigo 489, §1º, incisos V e VI, do CPC.
O que se percebe é que juízes e tribunais têm se limitado a aplicar ou afastar precedente por meio de uma mera reprodução do ementário das decisões ou apenas transcrição das teses fixadas, sem sequer realizar a demonstração da presença ou ausência da similitude fático-jurídica da lide em julgamento com o precedente em discussão.
O CNJ recomendou que se fizesse o óbvio de um “sistema” de precedentes, que é fundamentar as razões pelas quais são aplicáveis ou não à lide em julgamento. Entretanto, a recomendação pode dar margem a práticas autoritárias de não se fundamentar decisões, o que “relega o processo argumentativo (sempre salutar ao Direito), indo de encontro à própria Constituição”.[9]
Se fosse para reforçar o óbvio (já que no Brasil parece que o que está escrito na Constituição e nas leis não é suficiente), o CNJ poderia ter dito: “juízes e tribunais, fundamentem suas decisões e observem o artigo 489, §1º, V e VI, do CPC. Apliquem a Constituição!”.
[1] A Recomendação nº 134/2022 pode ser visualizada no seguinte link: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4740
[2] Conforme leciona Rosemiro Pereira Leal, nos Estados Dogmáticos – liberal, social e procedural -, fundamentar uma decisão é uma falácia: “O imperium da JURISDIÇÃO que é o núcleo de operacionalidade do direito de Estado Dogmático é que vai gerar a secular falácia da fundamentação das decisões ardilosamente transmutada numa garantia (ativismo-protagonismo) de realização jurisdicional do justo, do infalseável, do coerreto, do coerente, do consistente, num desfile tópico-retórico de doxas e endoxas pelo senso comum do conhecimento dogmático da auctoritas”. LEAL, Rosemiro Pereira. A falácia da fundamentação das decisões no Estado Dogmático e a hermenêutica do garantismo, ativismo e protagonismo jurisdicionais. In: PEGINI, Adriana Regina Barcellos et all. Processo e liberdade: estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Londrina: Thoth, 2019, p.790.
[3] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p.177.
[4] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito., cit., p.180.
[5] É o que leciona Lorena Ribeiro de Carvalho Sousa: “[…] pode-se chegar à conclusão de que o contraditório é uma garantia inafastável de oportunizar aos sujeitos processuais (aqueles que sofrerão os efeitos da decisão) participação, de modo a influir discursivamente na construção do ato decisório, propiciando a sua legitimidade e racionalidade e evitando-se, pois, as denominadas decisões surpresas”. SOUSA, Lorena Ribeiro de Carvalho. O dever de fundamentação no Código de Processo Civil de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p.103.
[6] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito., cit., p. 182.
[7] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Da compatibilidade entre celeridade e fundamentação das decisões. Revista ESMAT, v. 11, n. 17, p. 77-96, 17 set. 2019, p. 88. Disponível em: < http://esmat.tjto.jus.br/publicacoes/index.php/revista_esmat/article/view/284/240>.
[8] Sobre a ausência de fundamentação como estado de exceção explicam Antônio Carvalho Filho e Luciana Benassi Gomes Carvalho: “A falta de fundamentação decisória é, por conseguinte, uma anomia que funda o estado de exceção e que ultraja o próprio direito pelo ato de violência (=força) […]. Essa decisão, portanto, funda zona anômica (grosso modo, falta de regras [regulação] e objetivos [fins]) na qual suspende-se o direito para, dentro dele próprio, dar potência de lei para a decisão judicial que sequer respeitou os seus limites. Em outras palavras, representa um ato de violência, que deixa de ser qualificado como jurídico-normativa e por isso se coloca no paradoxo do ‘estar-fora’ do direito pretender pertencer a ele”. CARVALHO FILHO, Antônio; CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Falta de fundamentação como “estado de exceção”: uma visão a partir da deficiência endoprocessual e do ativismo judicial. In: PEGINI, Adriana Regina Barcellos et all. Processo e liberdade: estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Londrina: Thoth, 2019, p.141. Para uma análise mais aprofundada do Estado de Exceção, conferir: AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
[9] BERRI, Carolina Heloísa Guchel. As Supremas Cortes do Brasil e dos Estados Unidos da América: seus sistemas comparados de prestação jurisdicional e a problemática dos precedentes”. Belo Horizonte: Dialética, 2021, p. 140.