Ao Excelentíssimo Juiz de Direito
Marcelo Furlanetto da Fonseca
I
Como já dito e redito ao longo desta série de pequenos artigos, os princípios de direito não são aplicáveis aos casos, senão as regras jurídicas. Logo, eles não têm normatividade, senão elas. A realização do princípio de direito – e, por consequência, do «estado ideal de coisas» que ele prescreve – depende da edição de regras jurídicas de concretização que façam a intermediação entre ele e o caso prático. Em um Estado democrático parlamentar, essas regras jurídicas de concretização podem ser editadas apenas pelos agentes eleitos diretamente pelo povo, que ocupam cargos políticos no Poder Legislativo [interpositio legislatoris]. Em vista disso, não compete ao juiz julgar o produto legislativo, senão somente julgar o caso em si. Para o juiz, a regra legal é um ponto de partida inegável, inquestionável, indiscutível, indubitável. Em contrapartida, em um Estado aristocrático de jurisdição, as regras jurídicas concretizadoras do «estado ideal de coisas» devem ser editadas pelo Poder Judiciário, ainda que preexistam regras expressas editadas pelo Poder Legislativo [interpositio iudicis]. a) Se o juiz usou regras legais preexistentes para a concretização do «estado ideal de coisas», é porque aprovou a opção legislativa; b) se o juiz superou as regras legais preexistentes, é porque reprovou no todo ou em parte a opção legislativa, imprimindo-lhes adaptações ex post facto para torná-las «mais adequadas» à concretização do «estado ideal de coisas»; c) se o juiz não encontrou regras legais preexistentes e criou ex post facto regras paralegais para a concretização do «estado ideal de coisas», é porque reprovou a omissão legislativa (pouco importando, aqui, se essa omissão é ou não é constitucionalmente ilícita). Nesse sentido, antes de julgar o caso em si, o juiz julga o produto do trabalho do legislador. Daí por que, para o juiz, a regra legal é só um ponto de partida invariavelmente questionável, discutível, problematizável, dubitável. No Estado aristocrático de jurisdição, a lei tem força meramente interino-persuasiva, não definitivo-vinculante (o que desmorona os pilares fundamentais de um pensamento dogmático, tornando cada operador do direito um «parlamento unipessoal», com opinião improvisada sobre tudo, e gerando um profundo estado de desorientação jurídica).
II
Percebe-se que no Estado aristocrático de jurisdição o objeto da sentença sofre um espessamento. À sentença judiciocrática se acresce um novo capítulo, com espectro de eficácia próprio, que antecede logicamente o capítulo que resolve o próprio mérito da causa. Nesse capítulo, julga-se a regra legal. Para se compreender melhor o conteúdo do capítulo, é necessário antes entender em que consiste o espectro eficacial de uma sentença. Para tanto, vale breve explanação sobre a teoria quinária, desenvolvida originariamente por PONTES DE MIRANDA. Em linhas gerais, de acordo com a teoria: i) existem cinco eficácias sentenciais (declarativa, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva); ii) a eficácia declarativa elucida a existência ou a inexistência de algo; iii) a eficácia constitutiva cria, modifica ou extingue algo; iv) a eficácia condenatória reprova algo; v) a eficácia mandamental ordena algo; vi) a eficácia executiva transfere algo do autor para o réu; vii) não há sentença pura, que só seja declarativa, constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva. Com isso já se tem subsídio suficiente para se decompor o espectro de eficácia do capítulo sentencial judiciocrático. Em (a), o juiz pronuncia a adequação entre o princípio de direito concretizando e a regra legal concretizadora [= eficácia declarativa], aquiesce a essa regra [= eficácia absolutória] e impõe essa aquiescência às partes [= eficácia mandamental] (obs.: aqui, absolvição é antônimo de reprovação, condenação, censura, advertência, significando aprovação, adesão, anuência, aquiescência; destarte, eficácia absolutória é eficácia condenatória invertida, revirada, com sinal trocado). Em (b), o juiz pronuncia a inadequação entre o princípio de direito concretizando e a regra legal concretizadora [= eficácia declarativa], censura essa inadequação ilícita [= eficácia condenatória], altera essa regra [= eficácia constitutiva modificativa] e impõe essa alteração às partes [= eficácia mandamental]. Em (c), o juiz pronuncia o que entende ser uma omissão legislativa [= eficácia declarativa], censura-lhe a ilicitude [= eficácia condenatória], cria a regra de concretização que lhe parece faltante [= eficácia constitutiva positiva] e preceitua essa criação às partes [= eficácia mandamental].
III
À luz do Estado democrático parlamentar, a sentença (a) é plenamente válida. Em contraposição, as sentenças (b) e (c) são reformáveis e, se passadas em julgado, se tornam rescindíveis, porquanto são proferidas contra ius in thesi, violando «manifestamente norma jurídica» [CPC, art. 966, V] (obs.: onde se escreve «norma jurídica», leia-se unicamente regra jurídica, haja vista que princípio de direito não tem normatividade). Nas sentenças (b) e (c), viola-se a garantia constitucional da separação dos poderes [CF, artigos 2º e 60, § 4º, III], que é uma regra jurídica, uma proposição deôntica hipotético-condicional [Se x, então y deve ser], não um princípio de direito, uma proposição deôntica categórica [X deve ser]. Na sentença (b), o juiz usurpa função legislativa para modificar inadvertidamente uma regra legal; na sentença (c), o juiz usurpa função legislativa para criar uma regra que o próprio legislador houve por bem nunca criar, ou não criar por enquanto. Todavia, na sentença (b), viola-se outrossim a própria regra legal modificada pelo juiz. Portanto, já tendo havido o trânsito em julgado, é possível rescindir, re-cindir, decepar de cima a baixo, eliminar de ponta a ponta ambos os julgados [= iudicium rescindens] a fim de que ambas as causas sejam rediscutidas [= iudicium rescissorium]: em (b), para se reexaminar a causa desde a regra legal original, tal como positivada pelo legislador, sem a arbitrária modificação paralegislativa efetuada pelo juiz ativista na sentença rescindenda; em (c), para se reexaminar a causa sem a regra paralegal, que o juiz ativista inventou na sentença rescindenda como se legislador fosse. É necessário apagar os capítulos judiciocráticos das duas sentenças, reabrir as duas litispendências e reapreciar as duas causas à margem dos quadrantes excêntricos do principiologismo. Em suma, deve-se julgar quem julgou a regra legal para que o segundo julgamento desfaça o primeiro, que operou contra legem scriptam. Deve-se devolver à regra legal a dignidade que a «aplicação per saltum» do princípio tornou nenhuma. Com isso se direciona a ação rescisória à augusta tarefa de expulsar do Estado democrático parlamentar a intrusão pestilenta e parasitária do Estado aristocrático de jurisdição.
IV
Mas existe um outro fundamento rescisório contra as sentenças características do Estado aristocrático de jurisdição. A «aplicação direta ou per saltum de princípio» [= invenção judicial da regra de intermediação entre o princípio de direito e o caso prático] permite ao juiz manipular o resultado do julgamento, podendo fazer vencedora da causa a parte que ele porventura tenha apadrinhado, ou seja, podendo oficiar nos autos sem a devida imparcialidade, neutralidade ou objetividade (obs.: os três termos são absolutamente equivalentes entre si – cf. nosso Imparcialidade como esforço. <https://cutt.ly/xGAh7YA>). Na situação (b), se uma determinada regra legal dá ganho de causa à parte A, o juiz pode invocar um princípio (às vezes, de existência duvidosa), retorcer ardilosamente a regra legal e, com isso, inverter o resultado do julgamento, proporcionando ganho de causa à parte B. Na situação (c), se a falta de uma determinada regra legal dá ganho de causa à parte A, o juiz pode invocar um princípio (por vezes, forjado ex nihilo) e a partir dele criar ardilosamente para o caso uma regra paralegal, que inverta o resultado do julgamento, proporcionando ganho de causa à parte B. Tanto em (b) quanto em (c), os julgados podem ser rescindidos para que as vitórias sejam conferidas à parte A. No entanto, não é indispensável que o juiz tenha agido efetivamente com intenção de favorecimento para se que se configure a quebra de imparcialidade. Não é preciso perscrutar o estado anímico-subjetivo do magistrado. Basta o risco objetivo de que atue com dolo de privilegiamento. Basta a ausência aparente de seriedade funcional. Basta a desconfiança que o seu comportamento pode produzir aos olhos de qualquer cidadão comum. Basta, enfim, que pratique uma conduta socialmente típica de parcialidade (entendimento que vai ao encontro da doutrina da «aparência de imparcialidade» desenvolvida pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos nas seguintes sentenças: Piersack vs. Bélgica, j. 01.10.1982; De Cubber vs. Bélgica, j. 26.10.1984; Pfiefer y Plankl vs. Áustria, j. 25.02.1992; Sainte-Marie vs. França, j. 16.12.1992; Fey vs. Áustria, j. 24.02.1993; Padovani vs. Itália, j. 26.02.1993; Nortier vs. Países Baixos, j. 24.08.1993; Saraiva de Carvalho vs. Portugal, j. 22.04.1994).
V
Lembre-se que, ao fim e ao cabo, as causas de impedimento e suspeição [CPC, artigos 144 e 145] são isto: situações-tipo, que colocam em xeque a equidistância do julgamento e que, por isso, permitem afastar-se ex ante o juiz do caso (caso ainda não tenha proferido sentença), nulificar-se o seu julgado (caso tenha proferido sentença ainda não passada em julgado) ou rescindi-lo (caso tenha proferido sentença já passada em julgado). Decerto, sendo a imparcialidade do juiz um direito fundamental implícito de liberdade do cidadão em juízo (que se subentende no art. 5º, LIV, da CF/1988), as causas de impedimento e suspeição não se podem circunscrever a listas taxativas ou exaustivas. Tampouco se pode dar crédito a uma distinção ontológica entre elas: em não raras vezes, de um código procedimental para outro, uma causa de suspeição vira uma causa de impedimento e vice-versa. Por isso, pode-se falar exclusivamente em fatores de risco objetivo de quebra de imparcialidade judicial, cuja enorme diversidade não pode caber em um rol discreto, simplório, superficial, fragmentário, descontínuo, casuístico, assistemático, coletado sensitivamente a esmo e cheio de particularidades (sobre a exemplificatividade dessas causas e a indistinção entre elas, v. nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 179 e ss. V. também SOUSA, Diego Crevelin de. Distinção entre impedimento e suspeição. <https://cutt.ly/FGWSi2X>; idem. Conteúdo mínimo e pré-legislativo da garantia da imparcialidade… <https://cutt.ly/UGWSzTc>). Em outras palavras: para fins rescisórios, as causas de impedimento e suspeição integram um mesmo e único rol exemplificativo, ao qual se adiciona por interpretação extensiva a «aplicação direta ou per saltum de princípio» [rectius: a invenção judicial de regra de intermediação entre o princípio e o caso]. Dessa forma, quando se prescreve a rescindibilidade de julgado proferido por «juiz impedido» [CPC, art. 966, II], na realidade se prescreve a rescindibilidade de julgado proferido por juiz cuja condição funcional, circunstância pessoal ou conduta dentro ou fora do processo ponha em dúvida a isenção do seu julgamento. Em matéria de imparcialidade, vige um imperativo de precaução, prevenção, cuidado.
VI
Nas sentenças (b) e (c), o juiz comete error in iudicando. Isso porque julga errado o magistrado que pretere a regra jurídica (que é norma jurídica e, assim sendo, elemento do ordenamento jurídico) e prefere o princípio de direito (que não é norma jurídica e, por isso, não é elemento do ordenamento jurídico, conquanto seja elemento do direito) (para um aprofundamento do tema, v. nosso Princípio não é norma – 5ª parte. <https://cutt.ly/7GP5EHu>). Por conseguinte, não tendo havido ainda o trânsito em julgado, é possível reformarem-se ambas as sentenças (o que se obtém, obviamente, mediante a interposição de recursos). A reforma se pode conseguir já em julgamento de apelação [CPC, art. 1.009] ou, se desprovida por maioria, em julgamento não unânime estendido [CPC, art. 942]. Se mesmo assim não se logra a reforma, podem ser interpostos os recursos extraordinário e especial. Mas é imprescindível que na primeira oportunidade se prequestionem as regras constitucional e legal federal violadas e, dessa maneira, se viabilize a admissibilidade dos recursos excepcionais (cf. enunciados de súmula 282 do STF, 356 do STF e 211 do STJ). 1) Se o princípio serve per saltum de fundamento à ação, como se norma jurídica fosse, deve-se proceder ao prequestionamento desde a contestação; 2) se o princípio serve de fundamento direto à exceção, sem se invocar uma regra legal federal que o concretize, deve-se desde a réplica promover o prequestionamento; 3) se para evitar decisão-surpresa o juiz consulta as partes sobre a eventual «aplicação» de um princípio até então incogitado, deve-se proceder ao prequestionamento desde a manifestação imediata; 4) se de surpresa a autoridade judicial «aplica» um princípio até então incogitado, deve-se proceder ao prequestionamento desde as razões de apelação, visto que a sentença apelanda é nula por error in procedendo [CPC, artigos 9º e 10]. Nas situações (b) e (c), prequestionam-se as regras constitucionais sobre a separação dos poderes [CF/1988, artigos 2º e 60, § 4º, III] e a imparcialidade do juiz [CF/1988, art. 5º, LIV, implícito]; nada obstante, na situação (b) é possível também prequestionar a regra legal federal, que foi reformulada pelo juiz indevidamente.
VII
Como se nota, prequestiona-se tão apenas regra jurídica: regra constitucional federal para a interposição de recurso extraordinário, regra legal federal para a interposição de recurso especial. Decididamente, princípios de direito não são prequestionáveis. Afinal de contas, não tendo normatividade jurídica, não são passíveis de violação, afronta, descumprimento, ofensa, desacato, desrespeito. Justamente porque não são normas jurídicas, os princípios não fazem parte do ordenamento jurídico, não ocupam qualquer patamar hierárquico dentro da estrutura escalonada, não se encaixam no esquema piramidaliforme kelseniano. Nem poderiam: não existem princípios inferiores fundados, que decorram de princípios superiores fundantes. Quando muito, gravitam difusamente ao redor do ordenamento jurídico, sem se organizarem sob qualquer forma geométrica de estruturação. Logo, não se há de falar em princípio «constitucional», nem em princípio «infraconstitucional», nem em princípio «legal», nem em princípio «infralegal». Ainda que se trate de princípio expresso, estar previsto em dispositivo da Constituição não faz dele algo «constitucional»; estar previsto em dispositivo da lei não faz dele algo «legal»; estar previsto em dispositivo de regulamento não faz dele algo «regulamentar». Os adjetivos «constitucional», «legal» e «regulamentar» qualificam aí os dispositivos, não os respectivos princípios que enunciam (para um aprofundamento do tema, v. nosso Princípio não é norma – 5ª parte. <https://cutt.ly/7GP5EHu>). Consequentemente, não se pode prequestionar um princípio, nem para se interpor recurso extraordinário, nem para se interpor recurso especial. Sequer se prequestiona «princípio geral de direito» [LINDB, art. 4º] usado pelo juiz para criar regra preenchedora de lacuna, pois é esta regra, não aquele princípio, que se aplica. Além do mais, isso obrigaria o tribunal superior a se imiscuir em matéria fática, pois o obrigaria a verificar se a regra de preenchimento criada individualizadamente pelo juiz foi a mais adequada para as particularidades do caso concreto (obs.: se assim não fosse, seriam absurdamente prequestionáveis tanto a regra análoga quanto a regra costumeira usadas pelo juiz quando a lei é omissa).
VIII
Tampouco se prequestiona dispositivo. Regras são prequestionáveis, não dispositivos. Na verdade, dispositivos são mencionáveis. É possível mencionar dispositivo sem prequestionar regra, tal como é possível prequestionar regra sem mencionar dispositivo. Daí por que não há propriamente «prequestionamento implícito». A expressão mais confunde que esclarece. Ou se prequestiona às claras, ou não se prequestiona; ou se menciona às claras, ou não se menciona. Não há presquestionamento nem menção que se subentendam. Se há farta discussão nos autos sobre a incidência ou não de uma determinada regra jurídica (especulando-se os elementos da sua hipótese de incidência, os elementos da sua consequência jurídica e a eventual adequação do caso à regra), mas não se faz qualquer alusão numérica a artigos, parágrafos, incisos, alíneas, itens etc., há prequestionamento de regra, mas sem menção a dispositivo. Pouco importa: se a regra jurídica violada é da Constituição, há de se admitir o recurso extraordinário para que a ordem constitucional seja recomposta pelo Supremo Tribunal Federal; da mesma forma, se a regra violada é de lei federal, há de se admitir o recurso especial para que a ordem legal federal seja recomposta pelo Superior Tribunal de Justiça. O lócus específico da regra violada na caudalosa malha textual, isso é absolutamente irrelevante. Sem embargo, é inegável que o mencionar torna o prequestionar induvidoso, facilitando o juízo de admissibilidade do recurso excepcional. Nesse caso, convém lembrar que regra e dispositivo são noções assimétricas. i) Às vezes, um único dispositivo rende uma única regra; ii) às vezes, dois ou mais dispositivos rendem uma única regra; iii) às vezes, um único dispositivo rende duas ou mais regras. Desse modo: em (i), prequestionar uma única regra implica mencionar um único dispositivo; em (ii), prequestionar uma única regra implica mencionar vários dispositivos; em (iii), prequestionar várias regras implica mencionar um único dispositivo. Uma coisa é indiscutível: tendo em vista que não se prequestiona princípio, a fortiori não se prequestionam dispositivo sobre princípio explícito, nem dispositivos sobre regras das quais se possa induzir princípio implícito.
IX
Como se viu ao longo do texto, o sistema jurídico instituído pelo Estado democrático parlamentar dispõe de importantes mecanismos – notadamente a ação rescisória e os recursos excepcionais – para debelar o principiologismo e, como ele, o intrusivo Estado aristocrático de jurisdição. Grosso modo, no Estado democrático parlamentar, vigem a supremacia do parlamento, a primazia da lei e a centralidade das regras; no Estado aristocrático de jurisdição, supremacia dos tribunais, a primazia da jurisprudência e a centralidade dos princípios. De certo modo, a existência da ação rescisória e dos recursos excepcionais é uma expressão do primeiro modelo de Estado. Trata-se de remédios processuais que só fazem sentido no Estado democrático parlamentar, justamente porque servem para o proteger. Dizer que princípio é norma jurídica significa dizer que ele pode ser violado por decisão de mérito transitada em julgado e que, por isso, essa decisão pode ser rescindida [CPC, art. 966, V]; entretanto, na prática, isso mergulha todas as decisões judiciais nos mares revoltos de uma rescindibilidade ampla, geral e irrestrita, desfuncionalizando a ação rescisória e, por conseguinte, desmoralizando-a. Por outro lado, dizer que princípio é norma jurídica significa dizer que existem «princípios constitucionais» e «princípios legais» e que, portanto, os primeiros podem ser tutelados pelo STF em recurso extraordinário e os segundos pelo STJ em recurso especial; na prática, porém, isso confere ao STF e ao STJ uma supercompetência discricionária: para revisar um acórdão que encampe um entendimento ideologicamente incômodo, posto que secundum legem, basta-lhes inventar um princípio violado e adjetivá-lo retoricamente de «constitucional» ou «legal» (embora essa adjetivação seja impossível sob o ponto de vista ontológico). Contudo, antes de se recolocarem a ação rescisória e os recursos excepcionais a serviço do Estado democrático parlamentar, é preciso expulsar dele os presbíteros do Estado aristocrático de jurisdição. Em síntese, é impreterível reaparelhar os tribunais superiores com gente que leve as regras a sério. Mas isso fica a cargo da política…