“Ma si consideri che la Clemenza è la virtù del Legislatore, e non dell’esecutor delle Leggi, che deve risplendere nel Codice, non già nei Giudizi particolari; che il far vedere agli uomini, che si possono perdonare i delitti, e che la pena non ne è la necessaria conseguenza è un fomentare la lusinga dell’impunità, è un far credere, che potendosi perdonare, le condanne non perdonate siano piuttosto violenze della forza, che emanazioni della giustizia. Che dirassi poi quando il Principe dona le grazie, cioè la pubblica sicurezza ad un Particolare, e che con un atto privato di non illuminata beneficenza forma un pubblico decreto d’impunità. Siano dunque inesorabili le Leggi, inesorabili gli esecutori di esse nei casi particolare; ma sia dolce, indulgente, umano il Legislatore.” (Beccaria, Dei delitti e delle pene, 1766)[1].
Segundo a tradicional periodização do direito romano no que diz respeito à sua história externa (que leva em conta as diferentes formas de governo), a partir do ano 27 a.C. (mais especificamente, 13 de janeiro) inicia-se um longo período caracterizado por um crescente aumento de poder do “primeiro cidadão” de Roma, o princeps (“príncipe”). Seu poder de dar ordens (“imperium”) foi, de fato, tornando-se cada vez mais discricionário e em sua figura foram se concentrando as principais funções decisórias. Na fase do Dominato (iniciado na transição do século III para o IV d.C.), não há mais dúvida de que se estava diante de uma monarquia absoluta.
Isso possibilitava, em tese, que o imperador se imiscuísse em poderes titularizados por outras pessoas, como o de solucionar conflitos interpessoais dizendo qual o direito no caso concreto (“iurisdictio”). Mas até que ponto se tratava de um poder ilimitado? Vejamos, como um exemplo, o poder que tinha o imperador de, em causas criminais (não meramente penais), por clemência, perdoar um crime ou afastar os efeitos de sua pena, seja de forma individual, seja de forma coletiva.
Essa manifestação de indulgência soberana, que habitualmente é caracterizada como um mecanismo de correção da função julgadora, hoje abarca os institutos da graça (também chamada por alguns de “indulto individual”) e do indulto, que são atos privativos do presidente da República[2]. Na Roma antiga, em sua fase final (Dominato), esse ato (também privativo[3]) do imperador era conhecido com a expressão “indulgentia principis”[4] e também poderia ser individual ou coletivo.
Era incomumente individual: os exemplos mais frequentemente citados pela romanística eram anteriores ao século IV d.C.[5] e tinham fundamentos relevantes, como o fato de haver prova de inocência de quem foi considerado culpado e condenado[6] ou o fato de alguém ser condenado a pena a qual não estava legalmente sujeito[7]. Em verdade, os atos coletivos eram o habitual no Dominato: a indulgência (indulto) geral[8] ou comum[9]. E algumas características dessas formas de perdão são facilmente identificáveis nas fontes.
Em primeiro lugar, deve-se observar que são perdões de crimes (“indulgentiae criminum”[10]) e não de quaisquer delitos. Tal distinção era importante para o pensamento jurídico romano, que, fora talvez uma divisão ampla entre um direito público e um direito privado[11], não fazia a separação de suas normas jurídicas em ramos claramente definidos (nem mesmo para fins didáticos – cf. Const. Omnem, de 533 d.C., que estabeleceu a sequência de estudo do direito nos cursos da época). Não se falava em direito civil, direito penal, direito tributário, direito administrativo, direito processual etc., embora ao interno de suas fontes (como o Digesto) haja blocos coerentes acerca desses temas. É isso que possibilita ao estudioso atual falar em um direito civil romano, direito penal romano, direito tributário romano, direito administrativo romano, direito processual romano etc.
Especificamente quanto ao “direito penal romano”, desde o século XIX, em particular depois da clássica obra de Mommsen sobre o tema[12], não se duvida da conveniência de se estudar em conjunto as normas jurídicas acerca dos juízos públicos (“publica iudicia”) e dos crimes (“crimina”), principalmente as concentradas na parte final do Digesto (com destaque para D. 48).
Genericamente, as condutas antijurídicas (“iniuria”[13]) geram para quem as realizou o dever de reparar o dano (em ações pessoais ou reais de caráter ressarcitório ou restitutório[14]) ou a sujeição a uma pena pecuniária (nos delitos privados, a ação pode objetivar tanto uma coisa e uma pena, quanto somente uma pena[15]). Nesses casos, do próprio fato do delito[16] surge uma relação obrigacional que dá ao prejudicado (particular) o direito de demandar em juízo aquilo que lhe é devido (“actio”[17]), a título de ressarcimento ou de pena. Não cabe ao imperador intervir nessa relação jurídica de direito privado.
Contudo, há outras condutas antijurídicas que atingem bens (valores) juridicamente protegidos que são tidos pela sociedade da época como mais relevantes, de interesse público. Condutas que exigem penas (punições) mais severas por meio de juízos públicos (ou seja, de processo com características próprias) movidos por iniciativa não somente daquele que sofreu o prejuízo, mas, em regra, por qualquer um do povo[18]. Tais são os crimes (“crimina”), que não são fontes de relações jurídicas obrigacionais (como os “delicta”).
Dentre os crimes mais graves está a lesa-majestade[19]: no período posterior ao imperador Constantino (ou seja, a partir do século IV d.C.), caracterizado pelo aumento do poder absoluto do imperador, é claramente justificável a rígida proteção da autoridade do príncipe e dos interesses públicos maiores. Muitas condutas estavam abrangidas por esse crime: de atentados à vida do imperador ou de altos funcionários[20] a perturbações à “pax Ecclesiae” (“paz da Igreja”) ou à “nostra tranquillitas” (“tranquilidade imperial”)[21].
Por influência religiosa, era também típico no período pós-clássico o aumento de importância que se dava aos crimes contra a organização familiar e os “bons costumes” (nas Institutas, mencionados antes mesmo de hipóteses de grave violência física contra as pessoas, como o caso dos sicários[22]). A previsão de crimes estendia-se também para casos de parricídios[23], falsificação de documentos[24], prática de violência física com ou sem emprego de armas[25], peculato[26], crimes eleitorais e de concussão[27] etc.
Conforme a pena a ser imposta, esses crimes se diferenciavam em capitais e não capitais. No caso (mais grave) dos capitais, poderia ser imposta pena de morte, de banimento e perda da cidadania e patrimônio, de deportação ou de trabalho em minas. Já nos não capitais era imposta a pena de infâmia em conjunto com uma pena pecuniária, que, em princípio, não vertia em favor da vítima[28].
A gravidade dessas penas, o fato delas tocarem o interesse público e de o imperador ser o protetor do “populus Romanus” davam ao príncipe a legitimidade e o fundamento para, em casos especiais, conceder o perdão ou afastar os efeitos da punição (no que se chamava de “restitutio” por “indulgentia principis”[29]).
Entretanto, não poderia ser dada a seu bel-prazer. Tratava-se de um exercício de discricionariedade, não de arbitrariedade política. Deveria, portanto, levar em conta as funções da pena e não deveria projetar efeitos maléficos, como sentimentos de impunidade.
Se, na origem do direito romano, a função primordial da pena (criminal ou não) era retributiva (não que tenha perdido essa função depois[30]), em época com maior concentração do poder pelo imperador é natural que a previsão e punição de crimes se torne mais um mecanismo de controle social (daí, inclusive, o aumento significativo da relação de crimes nessa época). Ou seja, um mecanismo de proteção da “disciplina pública” (ou “ordem pública”[31]), o qual, para que funcionasse, exigia por vezes grande publicidade na aplicação das penas[32]. A pena assume uma função preponderante de prevenção geral[33], ao lado da evidente função de prevenção especial[34]. É o que alguns chamam de “pedagogia do terror”.
Ora, há, portanto, um claro aspecto político na previsão e punição de crimes. E na política criminal romana o perdão geral a certos crimes também podia ter fundamentos políticos (no sentido de uma estratégia política[35]) ou ser uma forma de o imperador destacar em seu governo valores como a humanidade (“humanitas”), de grande importância em um contexto de cada vez maior influência do cristianismo.
E a humanidade imporia, por lógica, a restrição às rigorosas penas capitais (especificamente a pena de morte passou a ser somente aplicada em casos de impossibilidade de reeducação do condenado ou de grande gravidade para o contexto da época[36]) e a admissão de que penas mais rigorosas podem ser atenuadas pelo reconhecimento de que o crime decorreu de uma natural fragilidade do ser humano[37].
Dentre os casos de indulto por política criminal, há um grande destaque nas fontes de perdões dados por ocasião da Páscoa cristã[38]. Eram casos de indultos (por sua extensão, poderiam mesmo ser tidos como anistias) que atingiam a grande maioria dos condenados, com exceção dos condenados por alguns crimes considerados graves (pelo mesmo fundamento que a nossa CF proíbe a graça em alguns casos[39]) e dos reincidentes[40]. Em outros termos, a medida não podia favorecer condutas de grande reprovabilidade social ou aqueles que se aproveitavam da presumível habitualidade dela[41] para se manterem impunes[42] (o reincidente é qualificado como “indignus humanitate”[43]). Ou seja, a medida não poderia prejudicar a função primordial das penas na época do Dominato: a prevenção geral, sob pena de afetar a “disciplina pública” (não poderiam ser um “público decreto de impunidade”).
Ademais, as penas precisavam minimamente manter seu caráter educativo e de prevenção especial[44]. Sugestivo que o indulto fosse concedido em uma época de profunda reflexão cristã, como a Páscoa, que reforça igualmente o caráter ético da medida: pressupõe o arrependimento do condenado, que deve efetivamente desejar a renovação em uma vida mais reta[45].
Sugestivo, também, que os imperadores romanos expressamente tenham estabelecido que o indulto marcava os beneficiados e não afastava todos os efeitos da punição, como a “infamia”[46], que era uma condenação moral por conduta pública ou privada inadequada (com reflexos jurídicos importantes, como a impossibilidade de ascender a certos cargos ou funções públicas[47] ou a perda do direito de votar: era, portanto, uma causa de diminuição da capacidade por perda da “illibata existimatio” – “reputação ilibada”[48]).
Por fim, a intervenção do imperador somente podia ter lugar após a conclusão definitiva do julgamento (“res iudicata”[49]), com a prolação de sentença que não podia ser mais alterada pelo juiz competente[50].
Obedecendo essas regras, ao invés de enfraquecer seu poder (“imperium”), o imperador acabava por reforçar sua “auctoritas” (prestígio) pela logicidade e benevolência (“humanitas”) de uma medida eticamente orientada a uma finalidade compatível com os valores da sociedade da época. Acima de tudo, essa excepcional medida do imperador refletia um profundo respeito às instituições políticas de Roma (mesmo em um período de grande concentração de poder em suas mãos, como foi o Dominato).
Belo exemplo do direito romano. A ser seguido.
* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e em suas conexões com o Direito Contemporâneo.
[1] C. Beccaria, Dei delitti e delle penne, 5ª ed., Lausanna, 1766, pp. 202 e 203.
[2] CF, art. 84, XII.
[3] D. 48, 19, 27 pr.
[4] E.g. C. 9, 51, 3 pr., da primeira metade do século III d.C.
[5] E.g. C. 9, 51, 1, do início do século III d.C.
[6] Cf. D. 48, 18, 1, 27 (em sua parte final).
[7] Cf. D. 48, 19, 9, 11.
[8] E.g., C. 9, 51, 9, do final do século III d.C.
[9] E.g., C. 9, 51, 5, da primeira metade do século III d.C.
[10] C.Th. 9, 38.
[11] Cf. Inst. 1, 1, 4.
[12] T. Mommsen, Römisches Strafrecht, Leipzig, Duncker & Humblot, 1899. Em ambiente italiano, seu equivalente foi C. Ferrini, Esposizione storica e dottrinale del diritto penale romano, in E. Pessina, Encicplopedia del diritto penale italiano I, Milano, Libraria, 1905, p. 3 a 428.
[13] Inst. 4, 4 pr.
[14] Inst. 4, 6, 17.
[15] Inst. 4, 6, 18.
[16] Inst. 4, 1 pr.
[17] Inst. 4, 6 pr.
[18] Inst. 4, 18 pr. e 1.
[19] Inst. 4, 18, 3.
[20] Como em C.Th. 9, 14, 3 (397 d.C.).
[21] Como em C.Th. 16, 1, 4 (386 d.C.).
[22] Cf. Inst. 4, 18, 4 e 5.
[23] Inst. 4, 18, 6.
[24] Inst. 4, 18, 7.
[25] Inst. 4, 18, 8.
[26] Inst. 4, 18, 9.
[27] Inst. 4, 18, 11.
[28] Inst. 4, 18, 2.
[29] Cf. C. 9, 51.
[30] Cf. C. 9, 24, 3 (393 d.C.), ou Nov. 142, 1 (558 d.C.).
[31] Cf. C. 9, 2, 10 (290 d.C.), e C. 9, 30, 1 (384 d.C.).
[32] Como em C.Th. 9, 7, 6 (390 d.C.).
[33] Cf. D. 48, 19, 28, 15.
[34] Nov.Th. 11 pr. (439 d.C.).
[35] Como em C.Th. 9, 40, 24 (419 d.C.).
[36] Nov. 77, da década de 540 d.C.
[37] Nov. 134, 13 (556 d.C.).
[38] C.Th. 9, 38, 3 (369 d.C.), C.Th. 9, 38, 4 (370 d.C.), C.Th. 9, 38, 6 (381 d.C.), C.Th. 9, 38, 8 (385 d.C.).
[39] CF, art. 5º, XLIII. Cf., igualmente, a Lei 8.072/1990, art. 2º, I.
[40] C.Th. 9, 38, 1 (322 d.C.) e C.Th. 9, 38, 6 (381 d.C.).
[41] C. 1, 4, 3 (385 d.C.).
[42] C.Th. 9, 38, 6 (381 d.C.).
[43] C.Th. 9, 38, 10 (405 d.C.).
[44] C. 1, 4, 3 (385 d.C.).
[45] Const. Sirm. 7 (380-381 d.C.).
[46] C. 9, 43, 3 (371 d.C.).
[47] E.g., C. 10, 59, 1, do final do século III d.C., e C. 12, 35, 3 (213-217 d.C.).
[48] C. 9, 51, 7, de meados do século III d.C., e D. 50, 13, 5, 1.
[49] A rigor, apesar da proximidade conceitual, existe uma diferença importante entre a terminologia romana (“res iudicata”) e a contemporânea (“coisa julgada”). Atualmente, “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (CPC, art. 502). Daí se dizer que “a sentença faz coisa julgada…” (CPC, art. 506) e não que “a sentença é (ou contém) a coisa (ou a matéria) julgada”. “Coisa julgada material” (que comumente se indica com a expressão latina “auctoritas rei iudicatae”) é uma qualidade que deriva da parte dispositiva de uma decisão de mérito.
Já no direito romano justinianeu, “res iudicata” era a própria solução da disputa judicial pela pronúncia do juiz, que poderia ser condenatória ou absolutória (D. 42, 1, 1). A “autoridade” (“auctoritas”) da “coisa julgada” (“res iudicata”) poderia mesmo ter “força de lei” (D. 1, 3, 38). Assim, “auctoritas” não era a própria “res iudicata”, mas sim uma qualidade dela.
[50] Nesse sentido, cf. D. 42, 1, 45 pr. e 1.