POSSE E DETENÇÃO NO DIREITO ROMANO E NAS TEORIAS DA POSSE

Não ha certamente assumpto, em todo o direito privado, que tenha mais irresistivelmente captivado a imaginação dos juristas do que o da posse, mas também difficilmente se encontrará outro que mais tenazmente haja resistido à penetração de analyse, às elucidações da doutrina” (Bevilaqua, Clóvis, Em Defeza do Código Civil Brazileiro, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1906, p. 107).

No texto publicado nesta coluna em 20 de agosto de 2021, foram apresentadas ao leitor as origens peninsulares da posse de ano e dia. Nesta coluna pretende-se mostrar a distinção entre posse e detenção nas fontes romanas e a centralidade dessa diferenciação para as teorias subjetiva e objetiva da posse.

De acordo com a sistemática adotada pelo Código Civil de 2002 (que reproduziu a do Código Civil de 1916), é possuidor quem exerce, de modo pleno ou não, algum dos poderes inerentes à propriedade[1], ao passo que se caracteriza como detentor aquele que tem a disponibilidade material da coisa em nome de um terceiro e em cumprimento de ordens ou instruções desse mesmo terceiro, com o qual mantém uma relação de dependência[2]. A distinção é das mais relevantes: o possuidor faz jus à tutela possessória, o mero detentor não.

Essa singela distinção encontra as suas raízes no direito romano. Os contornos desses institutos, entretanto, somente foram definidos muitos séculos após a fundação de Roma. Com efeito, os juristas do direito romano pré-clássico não chegaram a distinguir entre posse e detenção, tendo incluído sob a rubrica de possessio casos de mera detentio. É por isso que Quinto Múcio Cévola, jurisconsulto que viveu nos séculos II e I a.C., incluiu entre as espécies de posse a missio in possessionem damni infecti nomine (“imissão na posse a título de dano infecto”), pela qual o pretor atribuía ao dono de um prédio o direito de ingressar no imóvel vizinho que ameaçasse ruína e praticar os atos necessários para evitar seu desmoronamento.

Paulo, jurista dos séculos II a III d. C., fez dura crítica (“…ineptissimum est…”) à classificação proposta por Quinto Múcio Cévola. Para Paulo, o que o pretor concedia ao dono do imóvel vizinho era “não a posse, mas apenas a custódia e o controle sobre a coisa”[3]. Em outras palavras: a posse (possessio) implica mais que o simples controle material da coisa. Requer, no mínimo, alguma proteção perante agressões de terceiros em geral.

Teria sido Pégaso (século I d.C.), de acordo com Ulpiano, um dos primeiros jurisconsultos a distinguir entre a posse (protegida por interditos) e a mera detenção (destituída dessa proteção)[4]. De fato, foram os juristas do período clássico que atribuíram significados diferenciados à possessio naturalis (mera detenção – elemento exterior da posse – desprovida de proteção e de expectativa de aquisição dominial), à possessio civilis (posse conducente à aquisição da propriedade por usucapião) e à possessio ad interdicta ou simplesmente possessio[5] (posse protegida por interditos)[6].

De acordo com essa terminologia, tinham mera possessio naturalis (isto é, detenção) todos aqueles que, embora apresentassem a disponibilidade material da coisa, carecessem de causa jurídica para a possuir ou de vontade de dispor da coisa para si. Isso valia tanto para aqueles cuja vontade não era relevante para o direito (tais como escravos, filhos sujeitos ao poder do paterfamilias etc.) como para os casos de apreensão material de res extra commercium (tais como bens públicos, bens sagrados etc.). Também eram meros detentores certos sujeitos que se encontravam em estado de subordinação perante o concedente da coisa (colonii e inquilinii) e aqueles que, por força de um negócio jurídico, tinham o controle material da coisa sem intenção de tê-la para si (o locatário, o depositário comum, o usufrutuário etc.)[7].

Por outro lado, gozavam da possessio ad interdicta todos os que, além do controle material da coisa, tivessem a intenção de tê-la para si, com exclusão de quaisquer outros. Era o caso, incialmente, dos concessionários de agri publici, cuja posse era defendida pela controversia de loco[8]. Ao longo do tempo, a tendência foi ampliar as hipóteses de proteção possessória (possessio ad interdicta) àqueles que mantinham a coisa em seu poder uti domini (“como proprietário”)[9]. Além disso, o pretor, por motivos de ordem pública e em função da causa possessionis, passou a considerar dignas de tutela possessória três hipóteses muito particulares de simples detenção: a do credor pignoratício (creditor pigneraticius), a do precarista (precario accipiens) e a do depositário judicial (sequester)[10].

A possessio civilis, por sua vez, era a posse fundada em uma iusta causa possessionis, isto é, um título aquisitivo[11] que conduzisse, com base no ius civile, à aquisição da propriedade por usucapião, quando tal aquisição não fosse possível pela simples traditio ou pela occupatio[12]. Nesse âmbito, o direito romano conheceu, apenas, iustae causae específicas, tais como a compra e venda (pro emptore – D. 41, 4), a herança (pro herede – D. 41, 5), a doação (pro donato – D. 41, 6), o abandono (pro derelicto – D. 41, 7), o legado (pro legato – D. 41, 8), o dote (pro dote – D. 41, 9) e, de acordo com alguns juristas, a putatividade (pro suo – D. 41, 10). A possessio civilis se aplicava, notadamente, ao adquirente de coisa que não pertencia ao alienante (a non domino) e ao adquirente de res mancipi por mera traditio, sem a celebração da mancipatio ou da in iure cessio[13].

A extensão da tutela possessória aos bens privados e aos bens móveis promoveu a noção, no direito privado, de que era digno de proteção possessória todo aquele que tivesse a disponibilidade material da coisa em nome próprio, com a intenção de tê-la para si, mesmo que não fosse o proprietário da coisa[14]. Entre os romanistas[15], prevalece a opinião de que o elemento volitivo da posse (animus possidendi) teria sido identificado, inicialmente, pelo jurista clássico Labeão (século I d.C.)[16], e que teriam sido os juristas do período clássico tardio (séculos II e III d.C.), em especial o jurista Paulo[17], que teriam caracterizado os dois elementos constitutivos da posse romana clássica: a possessio corpore (elemento objetivo) e o animus possidendi (elemento subjetivo)[18].

A distinção entre posse e detenção, principalmente aquela que prevaleceu no período clássico do direito romano, foi de fundamental relevância para a estruturação das teorias modernas da posse, sendo precisamente a respeito disso que as clássicas teorias possessórias de Friedrich Carl von Savigny e Rudolph von Jhering[19] divergem mais radicalmente. Para a teoria de Savigny, o possuidor distingue-se do detentor em função da vontade de ter a coisa para si (affectio tenendi). Essa teoria é denominada “subjetiva” porque a distinção entre posse e detenção se dá em função da vontade: é possuidor quem tem a intenção de ter a coisa para si como dono (animus sibi habendi, animus domini) e detentor quem carece dessa intenção.

Para Jhering, por ouro lado, é o ordenamento jurídico que determina quais situações justificam o reconhecimento da posse e quais o da mera detenção. Assim, o direito romano, no que diz respeito aos sujeitos capazes de possuir, teria determinado as hipóteses de detenção em função de dois critérios: (i) as relações familiares de subordinação, pelas quais todos os que se encontravam sob o poder do paterfamilias eram privados de capacidade patrimonial e processual (escravos e filiifamilias), e (ii) o estado de dependência quase familiar em que se encontravam certos concessionários (tais como colonos e inquilinos) que pertenciam às classes mais humildes da sociedade romana e, portanto, não recebiam tutela autônoma perante o concedente. Quanto aos objetos suscetíveis de posse, o direito romano excluía do âmbito possessório, essencialmente, as coisas fora do comércio. A teoria de Jhering é dita “objetiva” porque a distinção entre possuidor e detentor independe da vontade do sujeito: é possuidor ou detentor quem a lei diz que é.

A pergunta, entretanto, permanece: qual foi o critério efetivamente adotado pelo direito romano para distinguir entre posse e detenção? Tudo indica que a teoria de Savigny é mais fiel às fontes romanas e ao espírito do direito romano histórico. A teoria subjetiva da posse, de fato, obteve ampla aceitação na doutrina e nas codificações novecentistas. Adotou-a, por exemplo, o Código Civil espanhol de 1889.

A teoria objetiva da posse, por sua vez, começou a ganhar vigor somente no fim do século XIX. Influenciou fortemente o BGB alemão e as codificações mais modernas. Porém, não foi a precisão histórica da teoria objetiva, e sim a sua maior adequação ao espírito da época, o que a tornou mais aceita ente os civilistas. Na Alemanha, convém notar, a segunda Comissão do projeto do BGB alemão rejeitou a teoria subjetiva da posse não por acreditar que fosse historicamente equivocada, mas porque a teoria objetiva, além de mais simples, era mais “germânica” e, portanto, mais compatível com o nascente nacionalismo alemão, que já lançava um olhar de desconfiança ao direito romano[20].

A codificação brasileira adotou, no que diz respeito à concepção da posse como exteriorização ou visibilidade da propriedade, a teoria objetiva de Jhering[21]. Os motivos que inspiraram essa escolha, entretanto, foram diversos daqueles que impeliram o legislador alemão. A finalidade perseguida pelo codificador brasileiro era de ordem essencialmente prática: facilitar a manutenção da paz social, objetivo que seria facilitado pela proteção da aparência, independentemente de título[22]. A posse brasileira, portanto, é um instituto verdadeiramente romano-germânico: romano quanto à origem, germânico em sua conceituação.

 

* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e suas conexões com o Direito Contemporâneo.

* Uma parte deste texto foi extraída, com adaptações, de um artigo que os autores escreveram em coautoria: Kümpel, Vitor Frederico – Olcese, Tomás, A Evolução Histórica da Posse nas Fontes Romanas, in Silveira Marchi, Eduardo César, Estudos em Memória do Professor Thomas Marky, São Paulo, YK, 2019, pp. 211-235.

[1] Art. 1.196 do CC/2002.

[2] Art. 1.198 do CC/2002.

[3] Paul. 54 ad ed., D. 41, 2, 3, 23: “…non possessionem, sed custodiam rerum et observationem concedit…”.

[4] Ulp. 16 ad ed., D. 6, 1, 9: “…Quidam tamen, ut Pegasus, eam solam possessionem putaverunt hanc actionem complecti, quae locum habet in interdicto uti possidetis vel utrubi…” = “…Porém alguns, tal como Pégaso, entenderam que essa ação <reivindicatória> abrangeria somente a posse tutelada por um interdito uti possidetis (‘como vós possuís’) ou utrubi (‘em um ou outro dos dois lugares’)”.

[5] A expressão “possessio ad interdicta” não é mencionada nas fontes romanas. A posse tutelada por interditos é indicada pelo termo possessio, sem qualquer outra qualificação, cf. Burdese, Alberto, s. v. Possesso, in Enciclopedia del Diritto, 34 (1985), p. 454. A denominação “possessio ad interdicta”, entretanto, se consagrou entre os estudiosos de direito romano.

[6] Para uma narrativa detalhada dessa evolução, cf. Moreira Alves, José Carlos, Posse – Introdução histórica, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1985, pp. 23-31.

[7] Marrone, Matteo, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006, pp. 389-390.

[8] Moreira Alves, José Carlos, Posse – Introdução histórica, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 17.

[9] Marrone, Matteo, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006, p. 389.

[10] É celebérrima a fórmula exposta por Riccobono, Salvatore, La teoria romana dei rapporti di possesso, in Bulletino dell’Istituto di Diritto Romano, 23 (1911), pp. 10-15. Por ela, seja “a” o controle material da coisa, “b” o elemento volitivo e “c” a causa que serve de fundamento à posse civil, tem-se que:

possessio naturalis = a

possessio ad interdicta = a + b

possessio civilis = a + b + c

As três exceções – que alimentaram a controvérsia entre a teoria subjetiva e a teoria objetiva da posse – eram, justamente, o credor pignoratício (creditor pigneraticius), o precarista (precario accipiens) e o depositário judicial (sequester), cuja anomalia se revela na circunstância de que, nos três casos, os romanos admitiam uma dupla possessio: a parte que entregava a coisa tinha a possessio civilis, enquanto a parte que a recebia tinha, paralelamente, a possessio ad interdicta. A fórmula que descreve a posse do credor pignoratício, do precarista e do depositário judicial seria representada da seguinte forma:

possessio (specialis) = a + c

[11] Alguns juristas romanos – Paul. 54 ad ed., D. 41, 4, 2 pr.; D. 41, 6, 1 pr.; D. 41, 8, 2; Pap. 23 quaest., D. 41, 8, 3; Ulp. 31 ad Sab., D. 41, 9, 1, 4 – exigiam sempre uma iusta causa (possessionis) real, enquanto outros entendiam – Pomp. 32 ad Sab., D. 41, 10, 4, 2; Nerat. 5 membran., D. 41, 10, 5, 2 – que bastava a convicção da sua existência (iusta causa putativa). Além disso, ao que parece, a possessio civilis, no início do direito romano clássico, exigia tanto uma iusta causa (fosse real ou putativa) quanto a bona fides do adquirente. Já no fim do período clássico, admitia-se a possessio civilis mesmo na ausência de bona fides, desde que houvesse iusta causa, cf. Talamanca, Mario, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990, p. 488.

[12] Burdese, Alberto, s. v. Possesso, in Enciclopedia del Diritto, 34 (1985), p. 454.

[13] J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, pp. 274 e 311.

[14] A. Burdese, s. v. Possesso, in Enciclopedia del Diritto, 34 (1985), p. 455.

[15] Cf. Rotondi, Giovanni, Possessio quae animo retinetur, in Bulletino dell’Istituto di Diritto Romano, 30 (1921), p. 11; Moreira Alves, José Carlos, Posse – Introdução histórica, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 23; Riccobono, Salvatore, La teoria romana dei rapporti di possesso, in Bulletino dell’Istituto di Diritto Romano, 23 (1911), p. 16, entre outros.

[16] Iav. 5 ex post. Lab., D. 41, 2, 51 (“Quarundam rerum animo possessionem apisci nos ait Labeo…” = “Diz Labeão que a posse de certas coisas podemos obter pela intenção…”). Essa primeira parte do fragmento é genuína (isto é, não se suspeita que tenha sido interpolada), cf. Rotondi, Giovanni, Possessio quae animo retinetur, in Bulletino dell’Istituto di Diritto Romano, 30 (1921), p. 11 e Mitteis, Ludwig – Levy, Ernst – Rabel, Ernst, Index interpolationum quae in Iustinianis Digestis inesse dicuntur, t. III, Weimar, Hermann Böhlaus Nachfolger, 1935, col. 195.

[17] Burdese, Alberto, s. v. Possesso, in Enciclopedia del Diritto, 34 (1985), pp. 457-458.

[18] Cf. Paul. 54 ad ed., D. 41, 2, 3, 1: “Et apiscimur possessionem corpore et animo, neque per se animo aut per se corpore…” (“E obtemos a posse com a materialidade aliada à intenção, e não somente com a intenção, ou com a materialidade…”); Pauli sent. 5, 2, 1: “Possessionem adquirimus et animo et corpore: animo utique nostro, corpore vel nostro vel alieno. Sed nudo animo adipisci quidem possessionem non possumus, retinere tamen nudo animo possumus, sicut in saltibus hibernis aestivisque contingit” (“Adquirimos a posse com a apreensão material aliada à intenção, <devendo> a intenção <ser> necessariamente nossa, a apreensão material <podendo ser> nossa ou alheia. Com efeito, não podemos começar a possuir por mera intenção, embora a mera intenção nos permita conservar a posse, como ocorre com as pastagens sazonais durante a temporada invernal ou estival”).

[19] Acerca das respectivas teorias, de modo geral, cf. Savigny, Friedrich Carl, Das Recht des Besitzes, 7ª ed., Wien, Carl Gerold’s Sohn, 1865, pp. III-727; Jhering, Rudolph, Ueber den Grund des Besitzschutzes, 2ª ed., Jena, Mauke, 1869, pp. III-224.

[20] Riccobono, Salvatore, La teoria romana dei rapporti di possesso, in Bulletino dell’Istituto di Diritto Romano, 23 (1911), pp. 5-7.

[21] Art. 485 do CC/1916.

[22] Bevilaqua, Clóvis, Em Defeza do Código Civil Brazileiro, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1906, p. 109.

Autor

  • Vitor Frederico Kümpel é livre docente em Direito Notarial e Registral (2020), doutor (2003) e bacharel (1991) pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus, autor de obras, pesquisador jurídico e juiz de direito titular II do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

    Tomás Olcese é doutor (2016), mestre (2012), bacharel (2009) e pós-doutorando (2020-2022) pela Universidade de São Paulo (FDUSP), professor do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Civil “LLM (Master of Laws) em Direito Civil”, oferecido pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), professor do Curso de Especialização em Direito Civil “Novos Paradigmas Hermenêuticos nas Relações Privadas” da FDRP/USP e advogado inscrito na OAB/SP.

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