O ARTIGO 357 DO CPC: UM ESTRANHO EM UMA TERRA ESTRANHA

Sabe-se que o processo de conhecimento se desenvolve em uma estrutura procedimental articulada por fases ou etapas lógicas, quais sejam, a postulatória, a instrutória e a decisória, que não são passíveis de supressão, flexibilização ou sumarização com redução do devido processo legal. Além das três fases mencionadas, Dhenis Cruz Madeira[1] também aponta a existência da fase de saneamento e a recursal.

A despeito desse debate acerca da quantidade de fases lógico-procedimentais, o Código de Processo Civil estruturou um momento procedimental voltado ao saneamento e à organização do procedimento, cujo ápice encontra-se na decisão prevista no artigo 357 do CPC.

O objetivo de tal dispositivo é que seja realizada “uma metódica organização do procedimento com a delimitação do objeto da cognição, visando a fomentar a participação conjunta dos sujeitos processuais e alcançar uma maior efetividade”.[2]

A decisão[3] de saneamento e organização se dará caso não sejam proferidas sentenças que extingam o procedimento nos termos dos artigos 485, 487, II ou em situações em que não haverá julgamento antecipado do mérito, seja total ou parcial.

Desse modo, o artigo 357 prevê que o juiz deverá, na decisão de saneamento e de organização do procedimento, (i) resolver as questões processuais pendentes, se houver; (ii) delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; (iii) definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; (iv) delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; e, caso necessário (v) designar audiência de instrução e julgamento.[4]

Conforme leciona Alexandre Varela de Oliveira, a técnica de saneamento e organização do procedimento se volta à delimitação das atividades a serem exercidas pelos sujeitos processuais, o que permite maior participação das partes na construção do pronunciamento decisório, visto que a decisão de saneamento e organização cria um itinerário a ser seguido pelo julgador no momento do pronunciamento final. [5]

Após sanear e organizar o procedimento, o pronunciamento do artigo 357 “não poderá ser alterado no primeiro grau de jurisdição”, em que “o magistrado se encontrará vinculado às questões ali estabelecidas”.[6] Contudo, antes da estabilização da decisão, é possível que as partes apresentem requerimento de ajustes e esclarecimentos (art. 357, §1º, do CPC), a fim de que algum ponto seja melhor esclarecido ou ajustado.

Sobre a estabilização da decisão, explica Diego Crevelin de Sousa:

Como se vê, toda decisão sobre o saneamento e a organização do processo, tanto a adjudicada como convencionada, se torna estável e vincula as partes e o juiz. Mas o que isso significa? Em termos lógicos, significa que as únicas questões fático-jurídicas e provas que podem ser inseridas na instrução e consideradas no julgamento são aquelas selecionadas na decisão de saneamento e organização. Não se admitirá que durante a instrução, ou depois dela, conclusos os autos para sentença, uma parte ou o juiz suscite o exame de outras questões fático-jurídicas ou a produção de outras provas que poderiam ter sido anteriormente inseridas na decisão de saneamento e organização, mas que, por qualquer razão, não foram (v. g. as partes não requereram, ou requereram e foram indeferidas). Retenha-se o ponto, para fins de esclarecimento: não estou considerando as questões fático-jurídicas e meios de provas novos (i. é, lei superveniente e prova só surgida ou justificadamente descoberta depois da decisão de saneamento e organização) nem aquelas cognoscíveis ex officio “a qualquer tempo e grau de jurisdição” (v. g. art. 485, § 3º, CPC). Não se nega a relevância teórico-prática de definir se tudo isso é apanhado (ou não) pela estabilidade em liça, apenas isso não é objeto deste texto. Minha análise se limita ao seguinte: a estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do CPC em relação às provas que poderiam ter sido inseridas na decisão de saneamento e organização, mas não foram. Ao menos dentro desses limites, e tirante eventual inconstitucionalidade dos dispositivos – que, antecipo, não diviso –, não há outra solução lógica: se a decisão de saneamento e organização especifica os meios de prova e ela se estabiliza, então só serão produzidas e consideradas no julgamento as provas especificadas na decisão de saneamento e organização. Seja qual for o cenário, o juiz terá de decidir apenas com base nesse material fático-jurídico e probatório. Afinal, outra não é a razão de ser da estabilização da decisão de saneamento e organização.[7]

Nesse ponto, apresentamos discordância a Gustavo Gonçalves Gomes, o qual entende que o juiz, com base em seu livre convencimento motivado, possa trazer “novos fundamentos e novas questões em sua sentença que, por um lapso, não tenham sido indicados na decisão saneadora. Vinculação não é o mesmo que adstrição”.[8] A discordância se dá na medida em que a própria estabilização se tornaria inócua já que seria permitido ao magistrado trazer questões e fundamentos que não foram objeto de discussão anterior, o que geraria flagrante surpresa às partes, vedado pelo artigo 10 do CPC.

Além disso, esse posicionamento chancela a possibilidade de o juiz decidir fora dos limites da legalidade, com base em critérios pessoais, subjetivos e discricionários, além de abrir margem para produção de prova de ofício, o que não é possível em razão da preclusão e dos pilares processuais-constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Em suma, a estabilização da decisão de saneamento e organização gera a vinculação das partes e do juiz às questões fático-jurídicas e aos meios de prova ali definidos, não sendo possível, pela preclusão, que sejam fixadas novas questões ou determinadas a produção de outras provas, inclusive ex officio.[9]

Contudo, é comum na práxis forense verificar que a fase de saneamento e organização e o artigo 357 do CPC têm sido negligenciados.

O que se verifica, em geral, é que após intimar as partes para especificarem provas[10], não há a adequada prolação da decisão de saneamento e organização do procedimento, na medida em que muitos juízes se limitam a deferir ou indeferir a produção de provas, ou até mesmo determinar sua realização ex officio, sem fixar as questões de fato sobre as quais as provas recairão e sem definir o ônus probatório.

Além da ausência de fixação das questões de fato e da atividade probatória a ser realizada, tampouco são fixadas as questões de direito para o julgamento do mérito e apenas se profere decisão acerca das questões processuais pendentes.

E, para piorar a situação, muitos advogados não verificam a existência de tal nulidade e não apontam o mencionado vício de procedimento (error in procedendo), seja por meio de omissão em Embargos de Declaração, seja por peticionamento simples com requerimento de nulidade dos atos praticados.

Vale dizer, a decisão de saneamento e organização é dever do juiz e não faculdade, conforme se extrai do caput do artigo 357 do CPC. Aqui é importante registrar que não se pode utilizar o simplório fundamento de que “as preliminares e as questões serão apreciadas em sentença ou serão objeto do mérito” como escusa para que julgadores realizem uma inconstitucional flexibilização dessa etapa procedimental, como tampouco poderão inverter o ônus probatório na sentença como técnica de julgamento.

A ausência da adequada fixação das questões fático-jurídicas, do ônus da prova e dos meios de prova gera futura ausência de fundamentação da sentença, na medida em que, como visto, a estabilização da decisão de saneamento e organização vincula o juiz ao conteúdo fático-probatório-jurídico que ali foi definido.

Isso porque, “a decisão de saneamento e organização servirá como itinerário e como filtro para as questões a serem analisadas pelos magistrados, a teor do artigo 489, §1º, inciso IV, do Código de Processo Civil”, que  irá “permitir a adequada conexão entre contraditório e fundamentação das decisões, já que se evitará o pronunciamento de uma decisão-surpresa, além de que os argumentos e provas deduzidos pelas partes durante o procedimento serão consideradas no julgamento das questões fático-jurídicas”. [11]

E nem se diga que a decisão do artigo 357 pode ser suprimida por entender o julgador ser mero formalismo que retardaria o trâmite procedimental e traria pouca celeridade. Ao contrário, é a decisão de saneamento e organização que surge como uma técnica para que haja a compatibilização entre os princípios da celeridade e da fundamentação.[12]

Ademais, um retrocesso do CPC foi não permitir o cabimento de Agravo de Instrumento contra a decisão de saneamento e organização, pois limitou o cabimento apenas às hipóteses previstas no art. 1015, as quais nem todas ocorrem nesta etapa. Evidente que a decisão de saneamento e organização deveria ser passível de Agravo de Instrumento para evitar que fosse estabilizada uma decisão com diversos vícios, mesmo após o requerimento de ajustes e esclarecimentos (ex.: alguma questão de direito que não fosse fixada ou fosse indeferida a produção de determinada prova).

Portanto, é certo que o desleixo procedimental de não realização da fase de saneamento e organização gerará prejuízos como: (i) sentenças nulas com inadequada ou nenhuma fundamentação; (ii) sentenças-surpresa; (iii) ausência de participação das partes na construção decisória; (iv) má produção probatória; (v) ônus da prova utilizado como critério de julgamento e fixado em momento procedimental equivocado; (vi) abertura de possibilidade de atuação oficiosa do magistrado na produção de provas de ofício; além de (vii) idas e vindas procedimentais em razão de declaração de nulidade do procedimento.

No Brasil, o artigo 357 do CPC ainda é um estranho em uma estranha terra (Stranger in a strange land[13]) na qual não se observa o que é previsto na lei[14], enquanto a dogmática tradicional e os operadores do direito fazem coro ou encontram-se letárgicos à tirania judicial.

É preciso alterar esse marasmo e essa apatia para que a fase de saneamento e organização seja devidamente aplicada e observada, a fim de que os pronunciamentos decisórios possam ter a legitimidade democrática pelo devido processo.

[1] MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição: uma inserção no estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2011, p. 201-206.

[2] VARELA, Alexandre de Oliveira. Técnica de saneamento e organização do procedimento no Código de Processo Civil. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p.103. Importante mencionar que aqui não se defende a efetividade na mesma perspectiva da instrumentalidade do processo, mas como ganho de legitimidade. Ver: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: da vinculação à democratização. D’Plácido, 2018, p. 230-237.

[3] Entendemos ser equivocado o uso da nomenclatura “despacho saneador” que era adotada no CPC/39 e comumente mencionada no CPC/73, visto que o conteúdo decisório se trata de clara decisão interlocutória e não possui a simples característica de mero ato ordinatório para dar prosseguimento ao procedimento.

[4]  “Nessa decisão, que se estrutura de modo bipartite, além de corrigidos eventuais vícios ou nulidades processuais (saneamento), serão delimitadas as questões de fato e de direito, a atividade probatória a ser realizada, e definido o ônus da prova (organização)”. MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Da compatibilidade entre celeridade e fundamentação das decisões. Revista ESMAT, v. 11, n. 17, p. 77-96, 17 set. 2019, p. 90. Disponível em: <http://esmat.tjto.jus.br/publicacoes/index.php/revista_esmat/article/view/284/240>.

[5] VARELA, Alexandre de Oliveira. Técnica de saneamento e organização do procedimento no Código de Processo Civil, cit., p.109.

[6] VARELA, Alexandre de Oliveira. Técnica de saneamento e organização do procedimento no Código de Processo Civil, cit., p.161-162.

[7] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e sempre a prova de ofício: o silencioso sepultamento dos poderes instrutórios supletivos no CPC/15. Empório do direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/52-ainda-e-sempre-a-prova-de-oficio-o-silencioso-sepultamento-dos-poderes-instrutorios-supletivos-no-cpc-15. Acesso em: 20.03.2022.

[8] GOMES, Gustavo Gonçalves. O novo saneamento do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 326.

[9] Sobre o tema da preclusão e da prova ex officio: HELLMAN, Renê Francisco. A prova de ofício, a lealdade processual e o contraditório: análise do REsp 1.693.334 – RJ. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: <https://www.contraditor.com/a-prova-de-oficio-a-lealdade-processual-e-o-contraditorio-analise-do-resp-1-693-334-rj/>. Acesso em: 20.03.2022. MUNDIM, Luís Gustavo Reis. A prova ex officio e a preclusão: a volta dos que não foram. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/prova-ex-officio-e-preclusao-a-volta-dos-que-nao-foram/ .MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Poderes instrutórios do juiz no Código de Processo Civil e processualidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 112-116.

[10] Importante mencionar que o CPC/73 não continha previsão legal para que juízes intimassem as partes para especificarem as provas, o que tampouco há no CPC/15, mas que, na prática, é o que ocorre. Essa criação extralegal de determinações judiciais inexistentes também é violadora da legalidade, pois juízes e tribunais não podem criar atos sem previsão legal, já que o procedimento tem por base o modelo legal.

[11] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Da compatibilidade entre celeridade e fundamentação das decisões, cit., p.91.

[12] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Da compatibilidade entre celeridade e fundamentação das decisões, cit..

[13] Aqui fazemos referência à música do Iron Maiden “Stranger in a strange land” apenas como analogia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UJsl-bB7lmk.

[14] Conforme desabafo crítico de Lenio Streck, ainda lutamos para fazer cumprir a textualidade do CPC. STRECK, Lenio Luiz. Ano 7-CPC: Quando no Direito (não) enxergamos o que (não) queremos. Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-mar-17/senso-incomum-quando-direito-nao-enxergamos-nao-queremos>. Acesso em: 20.03.2022

Autor

  • Mestre e especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Pós-graduando em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral. Membro da ABDPRO, do INPEJ e da ACADEPRO. Advogado e professor

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