O PRINCÍPIO DA INEFICIÊNCIA E AS GAMBIARRAS JURISDICIONAIS

Princípio da ineficiência

Em uma das colunas passadas, a processualista Lorena Ribeiro tratou do fato de que, com o protagonismo da jurisdição pelo fomento do instrumentalismo processual, vem ocorrendo uma inversão na ordem epistemológica encaminhadora das bases científicas do Direito, isto é, a realidade prática é que passa a informar a técnica, enquanto a teoria, por sua vez, é praticamente jogada ao esquecimento.[1]

Sob essa antilogia, vetorizada pela moda do afã resolutivo (solucionar! Solucionar! Solucionar!), valoriza-se tanto as soluções que os próprios problemas não são efetivamente observados (teorizados). Com isso, os problemas deixam de ser problemas e passam a ser premissas (pressupostos) – e isso é altamente perigoso, pois quando um problema vira uma premissa, é porque ele foi aceito (homologado, reconhecido, legitimado).

Cabe aqui uma breve digressão cotidiana para melhor sustentar o raciocínio: um determinado consumidor adquire um aparelho de ar condicionado, sob a promessa de que seu quarto ficará mais fresco. O ar é instalado, mas, quando ligado, o consumidor percebe que ele está com defeito. Com isso, ele reclama ao vendedor, que chega em seu quarto e, com uma marreta, abre um buraco na parede, sob o argumento que o ambiente “certamente ficará mais fresco”.

Perceba-se que não houve a tentativa de consertar o ar condicionado (teorizar o problema e aplicar a melhor técnica), mas tão somente a solução da questão por uma terceira via (solução prática para o calor). Claro, para tanto, aderiu-se a uma premissa, qual seja, a de que é impossível consertar o ar condicionado (ou de que não vale a pena consertar o ar condicionado). E é essa a vexata quaestio, a aceitação de uma premissa problemática não devidamente teorizada como norte informador de uma técnica resolutiva.

Claro que o exemplo não foi dos melhores, mas o mesmo modus operandi dessa inversão pode ser facilmente observado na função jurisdicional brasileira, em especial quando o assunto é a tal eficiência.

Como consabido, a palavra “eficiência” aparece no texto da Constituição Federal de 1988 três vezes, todas elas direcionadas à própria estatalidade e suas respectivas funções (art. 37 caput; art. 74, inciso II; art. 144, §7º, todos da CF/88)[2]. Com isso, é perfeitamente possível começar a desconfiar que o princípio da eficiência é um mandamento normativo constitucional muito mais voltado à administração das funções do Estado (com a Jurisdição dentre elas)[3] do que à processualidade em si (que já tem a razoável duração do procedimento como princípio informador)[4].

Todavia, com a inversão da ordem epistemológica que aqui se denuncia, quando há um problema prático de ineficiência nessa gestão da função pública (jurisdição, por exemplo) e esse problema não é efetivamente teorizado para o conseguinte empenho das técnicas adequadas, tem-se que o problema, uma vez mais, se transforma em uma premissa que, de pouco em pouco, é homologada. Pior, é homologada ao arrepio da devida processualidade.

E isso é fácil de se ver, pois basta caminhar nos corredores forenses para ser assediado com cartazes de “conciliar é legal” (quando o assédio não se dá na própria audiência, v.g. Justiça do Trabalho); basta ir à prateleira de processo em uma livraria para se deparar com obras e mais obras de “meios alternativos de solução de conflitos”; basta assistir uma aula de cursinhos para concursos para ouvir sobre a filosofia de “atuação resolutiva”; basta contemplar a existência de um juizado “especial” para sumarizar a cognição de causas “menos complexas”; basta pensar sobre o julgamento das causas sob o regime de “repetitividade”; basta perceber as tendências de padronização decisória e de jurisprudência defensiva; e por aí vai.

Lado outro, pouco ou nada se fala sobre as “etapas mortas”[5] do processo, sobre os paradoxais prazos impróprios, sobre o excesso de férias e a obsoleta rotina de expediente forense, sobre a estabilidade apesar da improdutividade dos servidores, sobre o protecionismo corporativista da magistratura (que o digam os aposentados compulsórios)[6], sem aqui citar tantos outros embaraços administrativos que sabidamente permeiam a prática jurídica, mas que – por receio ou estratégia – tornaram-se assunto tabu nos meios acadêmico e forense.[7]

Volvendo à questão, tem-se que todos esses sintomas revelam a aceitação do problema como uma premissa básica, a de que a função jurisdicional é ineficiente. Ou seja, a ineficiência não é mais um problema, mas um ponto de partida consolidado (um dogma!). Daí, as técnicas que vêm sendo empreendidas não bebem da fonte principiológica da eficiência administrativa constitucionalizada nos idos de 1988, mas partem de seu exato oposto, do princípio da ineficiência – até porque contribuem para a sua perenização.

E é aqui que reside a necessária guinada, já que o Direito não pode anuir com isso, pois o Direito não homologa uma realidade problemática através de soluções incompatíveis com seus princípios (normas). Muito pelo contrário, o Direito existe para transformar essa realidade (ser) a partir daquilo normativamente (dever ser) restou juridificado – no caso, a eficiência das funções estatais como norma constitucional.[8]

Ora, mas não é importante “desafogar” o judiciário? Claro que sim, mas sem afogar o devido processo e a Constituição Federal. Quem vem pagando a conta é o exercício processual da Cidadania, tão censurado por abreviações e precarizações da cognitio pelo empenho das famigeradas técnicas resolutivas (gambiarras) que atendem tão somente à própria jurisdição e à conveniente eternização de sua ineficiência administrativo-funcional.[9]

Inclusive, algo tem que ser dito: jurisdição não é sinônimo de solucionar conflitos. A jurisdição é um “espaço processual”[10] discursivo no qual há procedimentos legalmente previstos para a preparação e enunciação de normas jurídicas individuais e concretas (cognição), bem como para a sua respectiva realização in concreto (execução), mediante transformação da realidade prática (ser) de acordo com a norma enunciada (dever ser).

A jurisdição é acionada (direito de ação) para a procedimentalização (processualizada) de uma pretensão ontológica para construir o discurso que culminará na respectiva resposta jurídico-deontológica (lei enunciada pela sociedade) relativa àquela pretensão in casu. Mais adiante, no que se chama execução (uma espécie procedimental também processualizada), a resposta deontológica é realizada ontologicamente, ou, nas palavras de Alexandre Freitas Câmara, passa-se à “atividade de fazer com que aquilo que deve ser, seja”.[11]

Assim, “solucionar conflitos” soa como uma ultrassimplificação. Solucionar conflitos é outra coisa. O par-ou-ímpar é uma técnica de solução de conflitos. O cara-ou-coroa é uma técnica de solução de conflitos. Ambas, inclusive, mais céleres do que os procedimentos em curso no judiciário brasileiro. A pergunta é: essas técnicas são compatíveis com aquilo que foi constitucionalizado sob o nome de devido processo (art. 5º, LIV)[12]?

Na jurisdição, justamente por ser ela um espaço jurídico-processual, todos os procedimentos (atos preparatórios da norma) e técnicas devem resguardar total compatibilidade e submissão aos princípios processuais (e.g. contraditório, ampla defesa, isonomia, fundamentação das decisões, etc), sob pena de nulidade (inexistência jurídica). Óbvio, portanto, que as técnicas empenhadas nos procedimentos em curso no espaço jurisdicional devem se banhar em fontes constitucionais compromissadas com a processualidade, sendo vedado sacrificar essas fontes com o escopo de blindagem e perpetuação da ineficiência da própria jurisdição, como se esta fosse um fim em si mesma.

O princípio constitucional da eficiência determina que a função jurisdicional seja eficiente. Portanto, quando a jurisdição mostra-se ineficiente, cabe ao Direito torna-la eficiente (transformar essa realidade) fazendo valer a norma (dever ser) na realidade (ser). Entretanto, com a inversão epistemológica que aqui se está denunciando e com a transformação do problema da ineficiência em pressuposto da ineficiência, o conseguinte lógico que se observa nada mais é do que uma inversão da própria norma constitucional (princípio da eficiência), que passa a valer como princípio da ineficiência, fonte teórico-normativa inesgotável para uma nova espécie de “técnica” que se propaga por aí: a gambiarra jurisdicional.

[1] SOUSA, Lorena Ribeiro de Carvalho. O futuro do processo. Disponível em http//: www.contraditor.com/o-futuro-do-processo/ (acesso em 07/10/2021).

[2] CF/88: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]; Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: […]II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado[…];  Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: […] § 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

[3] Segundo José Renato Nalini, “o Judiciário precisa acordar para a realidade de que, se não se atentar para a sua atividade-meio, comprometerá toda a funcionalidade para atividade-fim.” (NALINI, José Renato. A formação do juiz e seu relacionamento com as partes, servidores e a imprensa. In: Revista CEJ. Brasília, n. 13, jan./abr. 2001 p.163).

[4] CF/88: Art. 5º. […] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006 p.64.

[6] As notícias falam por si: https://www.cnj.jus.br/desembargador-do-tjce-e-punido-com-aposentadoria-compulsoria/ ; https://www.cnj.jus.br/cnj-mantem-aposentadoria-compulsoria-a-desembargador-do-tjsp/; https://www.gazetadopovo.com.br/republica/juizes-punidos-aposentadoria-compulsoria-salarios-milionarios/ ;

[7] Aqui, acompanha-se o corajoso raciocínio de Welinton Luzia Teixeira: ”O que precisa ser observado para que a celeridade processual não seja apenas um sonho e para que os prazos processuais, já definidos pelo legislador, sejam cumpridos, é diligenciar no sentido de que o Judiciário acompanhe as realidades dos novos tempos, equipando as suas instalações com as novas tecnologias, profissionalizando e remunerando os seus funcionários (baixo escalão) com decência e, principalmente, aumentando o número de juízes, em quantidade e qualidade, visando à melhor prestação de um serviço essencial a toda sociedade. (TEIXEIRA, Welington Luzia. Da natureza jurídica do processo à decisão judicial democratizada – Belo Horizonte: Fórum, 2008, p.42.)

[8] Cita-se Rosemiro Pereira Leal, autor da teoria neoinstitucionalista do processo, a qual recusa um direito homologador das realidades historicamente blindadas (dogmatizadas) e infiscalizáveis, visto que boiam à deriva das diretrizes processuais: “O direito, no curso dos milênios, é peça (fetiche) de ocultação dos problemas fundamentais do homem, ora como mera superestrutura normativa e estratégica dos fenômenos socioeconômicos, ora como instrumento de homologação das “forças de vontade” das autocracias monárquicas, dinásticas, parlamentares, republicanistas, liberais e assistencialistas” (LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Editora Arraes, 2013 p. 2.)

[9] Como bem ensina o professor Vicente de Paula Maciel Júnior, “estabelecer políticas legislativas no sentido de simplificação do processo é algo perfeitamente aceitável, mas promover formas de exclusão de acesso à Justiça sob a máscara da modernidade é, no mínimo, repugnante, o que se traduz juridicamente como inconstitucionalidade.” (MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas. São Paulo: LTr, 2006 p. 169).

[10] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos.11ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 126.

[11] “Execução é a atividade processual de transformação da realidade prática. Trata-se de uma atividade de natureza jurisdicional, destinada a fazer com que aquilo que deve ser, seja” (CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo Civil brasileiro. – São Paulo: Atlas, 2015, p.315).

[12] CF/88: Art. 5º. […]  LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Autor

  • Advogado, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Desenvolvimento Democrático (IDDE), mestre em Direito Processual pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PPDG-PUC/MG), na linha "O processo na construção do Estado Democrático de Direito".



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