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A DOUTRINA DA MULTIDÃO

Doutrina da multidão

Jeremy Waldron defende a democracia como nossa melhor teoria de governança.[1]Por esse motivo, existe, segundo ele, uma integridade que não pode ser ignorada: o compromisso do Estado de Direito com a separação de poderes e, principalmente, com a legislação.[2] Significa dizer que, cada poder, obediente à sua limitação funcional, junto ao reconhecimento do desafio da legislação, resultam em uma articulação democrática de governo.

Para traduzir o desafio da legislação e sua inegável relação com a separação de poderes, no capítulo 04 de seu livro A Dignidade da Legislação,[3] Waldron analisa uma passagem do livro de Aristóteles que poderia ter sido melhor aproveitada na teoria da democracia. Trata-se de uma pergunta sobre o que deve ser o poder supremo do Estado, já precedida pelo alerta de que qualquer resposta envolveria uma consequência. Entre as possibilidades apresentadas pelo próprio Aristóteles, estão a multidão e o indivíduo.

A multidão, ou seja, o povo, ganhou a formulação para a resposta da pergunta feita por Aristóteles. O povo é quem deve estar no poder da pólis. Basicamente porque, embora poucos homens bons possam ter excelência, os “muitos” ganham em sua unidade, na possibilidade de, quando reunidos, compreenderem muito melhor o todo do que somente um indivíduo. Waldron, nesse sentido, apresenta duas versões argumentativas – chamadas por ele de “doutrina argumentativa da multidão” (“DSM”) – para engendrar a discussão sobre soberania e sobre a atuação do povo quando a detém e atua como um “corpo” que toma decisões, teoricamente, mais assertivas em conjunto, reunindo conhecimento.

A primeira versão diz respeito à comparação da atuação do povo como um “corpo” que aja dessa forma em conjunto e da atuação de um só membro desse “corpo” que, embora seja excelente, não toma decisões tão assertivas sozinho. No entanto, essa premissa não se estende em favor dos “muitos” se comparada com um grupo de aristocratas que também aja como um corpo. Por isso, seria necessário colocá-la de modo que os subconjuntos, atuando como esse corpo, não suplante a soberania dos “muitos”; até porque, não diz respeito somente ao poder[4] em si, mas à aristocracia.

A segunda “DSM”, considera que o “corpo” atuando em conjunto com a reunião de conhecimento, decide melhor do que subconjuntos de indivíduos que atuam como um corpo e reúnem seus conhecimentos. Waldron olha para essa questão interessado em observar a percepção das formas de democracia que conhecemos. Essas versões apresentadas se entrelaçam ao que chamamos por oportunidade conferida à sociedade em manifestar às instituições políticas anseios, questionamentos e desacordos. Inclusive sobre a maneira como se pensa a respeito da relação entre o indivíduo e o poder, sobre o indivíduo e a democracia.[5]

Apresentadas essas premissas, fica claro que estamos diante de argumentações que elevam os “muitos” à posição participativa nas discussões da pólis. Sobre isso, algumas abordagens poderiam ser feitas sobre essa concepção aristotélica – inclusive sobre até que ponto a soberania dos “muitos” é realmente creditada por Aristóteles e qual a relação das premissas em sua projeção de justiça distributiva, por exemplo – mas o que importa, nesse contexto de discussão, é a aproximação da lógica da “DSM” à legislação.[6]

Tendemos a esquecer duas coisas sobre o processo de legislação: i) existe pluralismo e, portanto, desacordo sobre as mais variadas questões entre os milhões de indivíduos, e, ii) seguramente, a lei falhará por não atingir essa sensibilidade – que dirá atender os detalhes sobre os quais os homens querem deliberar.[7] E o que isso significa? Significa que, embora a democracia possua uma dimensão substantiva de moralidade[8] em constante rediscussão, a democracia é um acordo solene que indica, sobretudo, a importância da garantia da participação de cada indivíduo nas decisões políticas.

Não à toa, o processo majoritário (leia-se processo legislativo) é lento e cauteloso, institucionalizado e procedimental, com uma estrutura racional de proteção aos anseios minoritários[9] que se liga ao impedimento de violações às decisões legislativas que ocorrem –recorrentemente– por meio de decisionismos nas argumentações judiciais. Para além disso, o direito é fenômeno concorrido, comumente alvo de revisões e simpáticas dinamizações que descumprem o pacto formal de internalização e discussão dos desacordos sociais e, por esse motivo, a doutrina da multidão nos oferece mais do que uma visão sobre o valor substancial da participação da maioria propriamente dita, ela indica a consequência dessa participação em contexto de estrutura normativa.

A multidão de Aristóteles lembra, então, que a participação dos indivíduos se conecta diretamente ao lugar de correção das distorções existentes na pluralidade: a instituição democrática da legislação. Sobre isso, Waldron adverte que a legislação não é uma lógica com a qual seja simples conviver, exatamente pelo fato de que em grande parte do tempo, compartilharemos a implementação de uma opinião sobre a justiça que não é a nossa, sendo, porém, o fator crucial para que o Estado de Direito se instaure. Perceba que a pedra de toque é a responsabilidade e a integridade que existe no exercício do Poder Legislativo, importando a participação universal e a tolerância de lidar com apreciações sobre as quais não consentimos.

Em determinado tópico de seu estudo sobre Aristóteles, Waldron assevera, ainda, sobre o fato de que as opiniões diferentes, para a concepção aristotélica, não se reduzem a uma repetição unânime de opiniões compartilhadas[10], elas são, na verdade, sinal de debate, de discussão articulada que complementa as deliberações a serem realizadas pela assembleia legislativa. Inclusive, acrescenta que Aristóteles enxerga a política como uma interdependência genuína, de modo que estamos inevitavelmente ligados e dependamos da pólis. A responsabilidade do poder, nesse sentido, diz muito mais sobre a compreensão da pluralidade e do dissenso de um Estado.

A separação de poderes se amarra exatamente nessa responsabilidade e compromisso com a limitação funcional dos poderes. Ao Executivo e Judiciário se aplicam, com a mesma necessidade do Poder Legislativo, a preocupação com a observância de suas respectivas funções, especialmente no que tange à legitimação de discussão das questões sociais. Por esse motivo, a multidão de Aristóteles se trata, sobretudo, da conexão entre a autoridade do primeiro, a independência do segundo e a dignidade desse terceiro.[11] Ao fim, o que se revela é que o enfrentamento à realidade de que jamais será possível todos concordarem sobre o mesmo aspecto de maneira igual, deve ser realizado e colocado em um campo de debate legítimo: a legislação.

Não estaremos prontos para lidar com essa verdade, no entanto, enquanto existir o imaginário[12] de que os desacordos e dissensos sobre a pluralidade de questões sociais presentes no nosso dia a dia, podem ser integrados ao Direito como tarefa a ser resolvida ou minimizada através da metodologia axiológica de moralização da aplicação jurídica. Há contornos relevantes que integram a exegese – e que precisariam de um texto só para eles – mas o que se quer dizer é que a realidade social é extremamente complexa e, tantas vezes, inalcançável pela sistemática estatal, por melhor que ela se constitua.

Motivações de transformação dessa realidade surgirão, inevitavelmente. E são compreensíveis. O problema é que não se pode fugir do fato de que a lógica da legislação não é fácil de se relacionar, encontrando posicionamentos enveredados pela ótica de que é possível alcançar o espírito social por elucubrações principiológicas, além da lei e em detrimento dela, conforme a excelência de quem visualiza a concretude. Essa é uma questão também notada por Waldron sobre os escritos de Aristóteles: o âmago da DSM é precisamente o fato de que precisamos lidar com o pensamento prático dos indivíduos trabalhando em grupo, ao invés de confiarmos em nossas primazias individuais.

Waldron idealiza um Estado de Direito compromissado com o tratamento dos indivíduos e com o reconhecimento de suas perspectivas e visões sobre a sociedade, e com uma estruturação que reconheça isso. A separação de poderes, para ele, significa um princípio político que empreende uma separação qualitativa entre eles, não representando apenas um óbice a concentração de poder ou um equilíbrio entre os poderes.[13] Uma separação que identifica, principalmente, a singularidade da legislação e sua importância no reconhecimento da composição plural de um Estado e o retorno ao processo político majoritário e sua autoridade.

[1] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2019. São Paulo. Item 9.8.1. P. 16.

[2] No Estado de Direito de Waldron, a separação de poderes é intrinsecamente ligada ao devido processo, isto é, a obediência à integridade do Legislativo, Executivo e Judiciário conduz o poder político de maneira adequada. Em certo momento de sua proposição teórica sobre a separação de poderes, Waldron inclusive destaca o argumento de John Locke em seu Segundo Tratado de Governo. Ao discutir a respeito da sociedade civil, Locke propõe o investir a legislação em uma assembleia representativa, de modo que a autoridade seja colocada sob a coletividade dos homens, chamada de Senado ou Parlamento. Assim, nenhuma intenção de superioridade ou soberania poderia suplantar a autoridade da força da lei. WALDRON, Jeremy. Political Political Theory. 2016. London. Cap. 3, P. 66.

[3] WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. 2003. São Paulo. Cap. 04, p. 113.

[4] Waldron o identifica como poder real, explicando que um regime aristocrático pode se beneficiar da doutrina da multidão. Por isso, o foco da comparação se dá no momento em que se tem a atuação como um corpo, e não como membros individuais.

[5] É preciso que fique claro que a proposição de Waldron deve ser considerada sob o aspecto ideal e, portanto, sob essa limitação metodológica.

[6] O cerne da concepção de Waldron revela o Direito como resultado desse acordo deliberativo e democrático realizado antes da normatização, a aproximação da legislatura à concepção aristotélica resulta em um Estado de Direito que reclama a consciência dos indivíduos sobre a ordem normativa que se encontra nesse processo de representação.

[7] Aristóteles faz essa relação também com os julgamentos: “[…]. Tampouco alguém nega que a decisão de tais matérias deve ser deixada ao homem, mas argumenta-se que deve haver muitos juízes, não apenas um. Pois todo governante que foi treinado pela lei julga bem, e certamente pareceria estranho que uma pessoa enxergasse melhor com dois olhos ou ouvisse melhor com dois ouvidos ou agisse melhor com duas mãos ou pés do que muitas pessoas […]. ” WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. 2003. São Paulo. Cap. 04, p. 125.

[8] Termo utilizado por Bruno Torrano em: Positivismo Ético Moderado. Cap. 3. Pág. 274.  TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei. Entre Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2ª Ed. 2019. Belo Horizonte.

[9] Sobre a proteção das minorias e o estabelecimento de mecanismos contramajoritários de equilíbrio e limites da democracia: Positivismo Ético Moderado. Cap. 3. Pág. 273.  TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei. Entre Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2ª Ed. 2019. Belo Horizonte.

[10] WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. 2003. São Paulo. Cap. 04, p. 142.

[11] A separação dos poderes tal como ele defende permite que visualizemos a diferença entre promover decisão judicial, legislar e governar. No Estado de Direito de Waldron, a separação de poderes é intrinsecamente ligada ao devido processo, isto é, a articulação na governança, de obediência à integridade do Legislativo, Executivo e Judiciário conduz o poder político de maneira adequada. O respeito a esse princípio norteador da ideia apresentada pelo autor, nos permite apreender a imperatividade da lei, fundamental para o governo democrático e, portanto, para a contenção da tirania que se reveste principalmente quando a lei é uma questão de escolha e não de obediência.

[12] O reconhecimento do desafio a respeito da legislação é um imperioso contraponto à perspectiva de Estado de Direito apresentada pelo neoconstitucionalismo: movimento de enaltecimento do ponto de vista do jurisdicionado, imbuído de mecanismos abertos de interpretação, na tarefa de consolidação dos compromissos constitucionais.

[13] […]. Compreendido dessa maneira, o estado de direito não é simplesmente o princípio de que os funcionários e os cidadãos devem aplicar e obedecer a lei mesmo quando ela vai contra os seus interesses. É o princípio de que um funcionário ou um cidadão deve fazer isso mesmo quando a lei – na sua opinião confiante – for injusta, moralmente incorreta, ou mal orienta- da como questão de política. Pois a decretação da medida em questão é indício da existência de uma opinião quanto à sua justiça, sua moralidade ou sua conveniência, que é diferente da deles; alguém deve ter sido a favor da lei ou achado que era uma boa ideia. Em outras palavras, a existência da lei, juntamente com a opinião do indivíduo, é indício de discordância moral na comunidade quanto à questão subjacente. […] (WALDRON, 2003, p. 44-45, apud GALVÃO, 2014, p. 37)

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Autor

  • Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Aracruz – FAACZ e pós-graduanda em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minhas Gerais (PUC). Escritora.

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