Pensar em causas estruturais é remontar a um movimento que despontou nos Estados Unidos, a partir da década de 1950. Muitos foram os problemas constatados em instituições públicas e privadas, que destoavam de direitos sociais assegurados na Constituição Americana.
Um dos casos mais emblemáticos e que deu o pontapé inicial foi o denominado precedente Brown vs. Board of Education of Topeka. Naquela oportunidade, foi levada à discussão da Suprema Corte Norte-Americana, a inconstitucionalidade da admissão de estudantes em escolas da rede pública, em um sistema que premia pela segregação racial e violava o direito fundamental à igualdade.
Este precedente se mostrou tão importante pelo fato de ter alavancado mudanças no sistema educacional público dos Estados Unidos, e ainda, ensejou outras inúmeras reformas estruturais em segmentos como manicômios, estabelecimentos prisionais, acesso à moradia.
Nas palavras de Fredie Didier Jr, Hermes Zaneti Jr e Rafael Oliveira, o padrão decisório adotado pela Suprema Corte Norte-Americana foi crucial para remodelar também a própria atuação jurisdicional nos Estados Unidos, que “passou a impor amplas reformas estruturai em determinadas instituições burocráticas, com o objetivo de ver atendidos determinados valores constitucionais”[1]. O leading case citado serviu, portanto, para dar vigência aos valores constitucionais que não estavam sendo adequadamente efetivados pelas políticas públicas governamentais.
No Brasil, o fenômeno dos processos estruturais se iniciou tardiamente, sobretudo com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988. O texto constitucional trouxe um amplo rol de direitos fundamentais de caráter social, assegurando à população o direito ao seu acesso, ao passo que se transformou num dever prestacional do Estado em fornecê-los, e até mesmo de entes privados respeitá-los.
Muito embora a conformação de um novo sistema jurídico permitira a judicialização de diversas questões sociais, ligados a um grupo ou a coletividade, ainda assim prevalecia um modelo de solução de controvérsias de cunho individual, reparatório, que não se mostra suficiente para promover as medidas necessárias ao atendimento de direitos e interesses da coletividade.
Jordão Violin[2] alerta que a partir do crescente acesso à jurisdição de conflitos metaindividuais, que levou à discussão problemas complexos, amplos e relevantes, o próprio sistema de tutela coletiva ressignificou o papel do processo. Se antes a preocupação, por exemplo, era assegurar que um indivíduo conseguisse se matricular em creche, o foco passa a ser o direito da coletividade em ter condições de acessar o ensino público.
À míngua de regulamentação normativa específica (e especializada) e de uma teoria própria para os litígios de caráter estrutural no ordenamento brasileiro, se faz necessário colocar indagações sobre a atuação jurisdicional em casos concretos deste jaez. E é neste ponto que se torna imprescindível cogitar o ônus argumentativo que cada sujeito processual suportará.
O esforço argumentativo, em causas estruturais, deve sofrer uma mutação para comportar as escolhas políticas[3] que, inegavelmente, refletem nas decisões judiciais.
Percebe-se: não é pelo fato de existir uma carga política neste tipo de ato decisório que se pode abrir margem para a subjetividade do intérprete (protagonismo do julgador), a seu bel-prazer definir quais medidas devem ser aplicadas; mas também não pode se perder de vista que, nesta espécie procedimental, o julgador não pode corresponder a uma figura passiva.
Da mesma forma, o papel das partes em juízo e demais sujeitos processuais necessita se adequar a estrutura de litígios que envolvam a defesa de direitos coletivos/difusos e a reestruturação de instituições a partir de sua conformação a direitos fundamentais previstos na CRFB/88. Não se mostra suficiente desincumbir em juízo o ônus apenas de deduzir uma pretensão, já que a causa de pedir e o pedido podem cambiar no decorrer procedimental. A importância do diálogo, neste viés, é essencial até mesmo para controlar e limitar a própria atividade judicante.
Não se pode perder de vista que argumentar é algo próprio do ser humano. Nas mais diversas situações (sociais, econômicos, morais), as pessoas se dotam de argumentos para sustentar seu ponto de vista. No Direito, esta característica é ínsita a própria racionalidade que se busca alcançar em processos decisórios. Como aponta Leal, o dever de argumentar está intimamente conectado com a prática jurídica e ao processo de tomada de decisões, como mecanismo de controle e de redução de incertezas[4].
Transpondo esta discussão para o espectro do processo coletivo estrutural e da própria magnitude dos problemas (litígios) que são enfrentados por esta via procedimental, vê-se que a definição do papel (ônus) que cada sujeito deve assumir é relevante. Neste cenário, não se lida com decisões preconcebidas, cuja solução do passado já se mostra suficiente para resolver casos atuais. Ao contrário. São resoluções complexas, prospectivas, que mexem com as estruturas, como o modo de proceder de uma instituição, e, que, muitas das vezes, são tomadas na base de tentativa e erro[5].
Dentro desta perspectiva, e fundado no modelo constitucional de processo, a função judicante não pode ser protagonística, até porque o magistrado não será dotado de conhecimento técnico para chegar as soluções complexas, como as causas estruturais exigem.
Logo, o papel a ser desempenhado pelo julgador é uma ampliação do ônus argumentativo, sobretudo quando se está defronte da colisão de direitos fundamentais, o que é natural de acontecer em casos desta natureza.
A professora Suzana Henriques da Costa destaca que para a resolução de conflitos estruturais mostra-se insuficiente que as decisões – liminares, sentença ou acórdão, sejam produzidas silogisticamente, sem analisar a complexidade dos valores envolvidos[6].
Entendendo-se o ônus de argumentação como ônus de fundamentação, é na justificação do julgador que este esforço deverá ser traduzido. Nesta esteira, a solução silogística pode ser uma armadilha para mascarar crenças pessoais daquele que decide, tornando infiscalizável suas razões de decidir. Por isso, a necessidade do fundamento/motivação dos valores enunciados serem construídos em dinâmica comparticipada, dialógica.
Não se pode admitir, em nosso ordenamento jurídico, que a figura do juiz possa, em um acordo celebrado entre as partes em processos coletivos estruturais, adicionar cláusulas ou restringir outras, conforme a sua vontade. Tampouco não levar em conta em sua decisão o que a sociedade debateu por meio de audiências públicas. Por essa razão, o ônus argumentativo (de fundamentação) deve ser ampliado e exercido para que as considerações das partes e sujeitos envolvidos sejam levados em conta. Esta é a única forma de se permitir o efetivo controle.
[1] DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 303/2020, p. 46.
[2] VIOLIN, Jordão. Processo Coletivo e Protagonismo Judiciário: O controle de decisões políticas mediante ações coletivas. 196 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.
[3] “Com a afluência de questões políticas ao Judiciário, percebeu-se a insuficiência do tradicional modelo de subsunção do fato à norma para resolver litígios coletivos, em que se contrapõem interesses normalmente de nível constitucional. Assim, paralelamente à judicialização da política, observa-se a politização do Judiciário, num fenômeno bifronte que denota que a decisão judicial, nesses casos, carrega uma valoração política feita pelo magistrado”. Acerca das reflexões sobre protagonismo judicial e processos coletivos, conferir a pesquisa de Jordão Violin. (VIOLIN, Jordão. Processo Coletivo e Protagonismo Judiciário: O controle de decisões políticas mediante ações coletivas. 196 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 19).
[4] LEAL, Fernando Ângelo Ribeiro. Ônus de argumentação, relações de prioridade e decisão jurídica: mecanismos de controle e de redução da incerteza na subidealidade do sistema jurídico. Tese de doutorado. UFRJ, 2012.
[5] VIOLIN, Jordão. Processos estruturais em perspectiva comparada: a experiência norte-americana na resolução de litígios policêntricos. 256 f. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019,
[6] COSTA, Susana Henriques da. A imediata judicialização dos direitos fundamentais sociais e o mínimo existência: relação direito e processo. In: Ada Pellegrini Grinover; Kazuo Watanabe; Susana Henriques da Costa. (Org.). O processo para solução de conflitos de interesse público. 1ª ed.Salvador: Juspodivm, 2017, v. 1, p. 416.