O PRINCÍPIO DA KOMPETENZ-KOMPETENZ: UMA ANÁLISE COMPARADA

Sobre como nem mesmo o direito comparado dá ao princípio da competência-competência a intensidade que querem lhe atribuir no Brasil

O PRINCÍPIO DA KOMPETENZ-KOMPETENZ: UMA ANÁLISE COMPARADA

Na última coluna[1], expusemos a necessidade de se revisitar o conteúdo do princípio da Kompetenz-Kompetenz (ou competência-competência) no direito brasileiro e o conceito da cláusula compromissória arbitral patológica ou dotada de vício constatável prima facie que permitem ao Poder Judiciário afastar a incidência da cláusula viciada no caso concreto.

Nesta semana, em continuidade, aprofundaremos o tema por um outro prisma, tentando exemplificar como nem mesmo o direito comparado – no qual muitas vezes se escoram a doutrina e a jurisprudência brasileiras tradicionais – dá o princípio da Kompetenz-Kompetenz o absolutismo e a independência que muitos aqui lhe atribuem.

Em novembro deste ano, comemoram-se 25 anos de vigência da Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307/96 – “LArb”) no Brasil. Seu surgimento se deu de maneira tardia, ante o fato de que, no mundo, a consolidação da arbitragem como instituição teve um crescimento exponencial após o término da Primeira Guerra Mundial. Para fins comparativos, em 1923, os Estados Unidos da América já haviam promulgado a primeira versão do Federal Arbitration Act (FAA) e, em 1979, a Convenção de Nova Iorque – o mais relevante diploma internacional relativo à arbitragem – já contava com a assinatura de mais de 75 países.

No Brasil, contudo, o instituto contou inicialmente com opositores implacáveis, ao ponto de afirmarem que “o juízo arbitral é um doente terminal”[2]. Nesse cenário, os primeiros defensores da arbitragem enveredaram esforços hercúleos para a promulgação do diploma legal homenageado, o qual ainda veio a ser objeto de controle difuso de constitucionalidade, cuja solução sobreveio apenas em 2001[3].

Nessa conjuntura, demonstra-se compreensível que o legislador buscou criar mecanismos capazes de garantir o estabelecimento e o crescimento da arbitragem, com a consequente atribuição de jurisdição e competência aos tribunais arbitrais, a partir da adoção do princípio da Kompetenz-Kompetenz, que, atualmente, é aceito de maneira quase universal pelas legislações arbitrais, decisões judiciais e demais autoridades[4]. Em essência, do postulado decorre a competência do árbitro para decidir se possui ou não jurisdição em um caso concreto, mediante a análise da convenção arbitral e seus requisitos de existência, validade e eficácia.

Essa consensualidade – e, por que não, “exclusividade” – relacionada à arbitragem, contudo, não é exatamente intrínseca ao instituto. Na realidade, a fórmula da Kompetenz-Kompetenz não exsurgiu no contexto da arbitragem, mas remonta ao direito constitucional e à ciência política, mais precisamente à discussão alemã, travada no século XIX, acerca da soberania[5]. Segundo sua acepção original, soberano era aquele que possuía competência ilimitada para determinar a extensão da sua própria competência[6].

Posteriormente, o conceito será utilizado no âmbito do processo civil alemão para assegurar a tripartição dos poderes “a fim de evitar que sobre a atividade do Judiciário pudessem incidir as forças do Executivo e do Legislativo”[7], principalmente em demandas contra a Administração Pública[8].

Há relatos da aplicação do postulado à arbitragem ainda em meados do século XIX, pelo renomado jurista francês Ledru-Rollin[9]. Seu principal escopo era preservar a eficiência de eventual processo arbitral, de modo que era vedado às partes interromper o andamento do procedimento com constantes exceções de incompetência ou outras técnicas para retardar ou tumultuar a prestação jurisdicional[10]. A adoção do princípio também foi imprescindível para a consolidação da arbitragem como instituição e o seu crescimento, porquanto impediu que os Tribunais estatais se imiscuíssem na autonomia conferida aos árbitros, com vistas a impor obstáculos à jurisdição dos tribunais privados.

Com efeito, nesse momento inicial da aplicação do postulado da Kompetenz-Kompetenz, recebeu o instituto um caráter quase absoluto. Dessarte, defendia-se que ao árbitro cabiam a primeira e a última palavra acerca de sua própria competência, cujas decisões eram impassíveis de revisão judicial. Veja-se, a título de exemplo, que o jurista alemão Martin Zeltner, em sua dissertação para a Universidade Friedrich-Alexander, de Nuremberg, em 1961, conceitua o postulado como a vinculação do Tribunal estatal à decisão do tribunal arbitral acerca de sua competência[11].

Essa foi a concepção que a doutrina e a jurisprudência pátrias defendem ter sido adotada pelo legislador brasileiro ao adicionar o art. 8.º, parágrafo único, à Lei de Arbitragem, segundo o qual “caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”.

Contudo, concomitantemente à transnacionalização dos conflitos submetidos à arbitragem e à consolidação do instituto em quase todos os países do mundo, o postulado da Kompetenz-Kompetenz recebeu novos contornos, mais harmônicos com as exigências democráticas de accountability e dos freios e contrapesos. Com efeito, a despeito de se tratar de atividade privada, é cediço que a arbitragem possui natureza jurisdicional. Nessa toada, a sua autonomia, embora necessária, não é absoluta, mas deve observar os valores democráticos e a ordem pública brasileira. Nesse exato sentido leciona Georges Abboud, para quem

“a sujeição dos Tribunais às leis e à Constituição não induz a perda da independência judicial. Juízes são independentes, não para julgar conforme o seu senso de retidão, mas, para poderem aplicar o direito sem pressões de outra ordem, como a política e a econômica.

(…)

Esse pano de fundo sobre independência judicial e sua vinculação à legalidade é uma dimensão de accountability do exercício da função jurisdicional, consequentemente, os deveres impostos no CPC 489, § 1º e na LINDB 20 e 21 são extensíveis à atuação do árbitro por se tratar de atividade efetivamente jurisdicional.”[12]

Ocorre que, no Brasil, alguns dos mecanismos da arbitragem têm sido utilizados subterfúgio para a inobservância de princípios basilares do Estado Democrático de Direito. Dentre os mecanismos que vêm sendo deturpados, insere-se o postulado da Kompetenz-Kompetenz, porquanto a interpretação da doutrina e da jurisprudência acerca do princípio, ao atribuir-lhe contornos absolutos, incorre em confusões técnicas e acarreta teratologias jurídicas, como a que supostamente permitiria tolher o direito de ação de uma parte que sequer concordou com uma cláusula compromissória ou permitir que prevaleça, no ordenamento jurídico, uma decisão arbitral contra legem porque não passível de revisão judicial.

Em nossa visão – conforme inclusive tivemos a oportunidade de expor na última coluna[13] –, o direito brasileiro não recepciona o suposto caráter absoluto do princípio da Kompetenz-Kompetenz. Na realidade, isso não é uma exclusividade de nosso ordenamento, eis que, de uma análise da aplicação do postulado em diferentes ordenamentos, embora com pequenas divergências, são raros os sistemas que oferecem ao tribunal arbitral a competência exclusiva, absoluta e irretratável para decidir acerca de sua própria competência e da existência, da validade e da operabilidade da cláusula arbitral.

Gary B. Born, em sua obra International Arbitration: Law and Practice[14], apresenta brevemente a diferença entre as principais abordagens, adotadas por diferentes países, acerca da alocação, entre o Poder Judiciário e o Tribunal Arbitral, da autoridade para decidir acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem, as quais passamos a descrever.

Primeiramente, na França, o direito posto e a jurisprudência reconhecem a prioridade do Poder Judiciário para exercer a sua jurisdição, ao menos à primeira vista. Assim, apenas se as partes demandadas em um processo judicial venham a oferecer alguma objeção jurisdicional aos tribunais, estes encaminharão o caso à arbitragem, salvo na hipótese de que a convenção de arbitragem seja manifestamente nula. Por outro lado, caso as partes recorram primeiro à arbitragem, caberá exclusivamente ao Tribunal Arbitral a análise acerca da validade da convenção[15].

Com efeito, o artigo 1.448 (1) do Código de Processo Civil francês dispõe expressamente que, quando uma controvérsia relativa a uma convenção de arbitragem é submetida à jurisdição estatal, este deve se declarar incompetente, salvo se o tribunal arbitral ainda não tiver sido instaurado, e a convenção de arbitragem seja manifestamente nula ou manifestamente inaplicável[16].

Nos Estados Unidos, por sua vez, a lei de arbitragem (Federal Arbitration Act), de maneira geral, permite que decisões interlocutórias judiciais vinculantes solucionem objeções arbitrais exsurgidas. Dessarte, caso uma parte almeje encaminhar um litígio iniciado no Judiciário à arbitragem, caberá ao tribunal estatal a decisão final acerca da existência, validade e eficácia da cláusula compromissória arbitral.[17] Nesse cenário, se o tribunal decidir pela higidez da cláusula, encaminhará as partes para a arbitragem; caso contrário, afastará, de maneira fundamentada, a incidência da cláusula arbitral e determinará o prosseguimento do feito.

A última abordagem apresentada por Born é a adotada pela Lei Modelo da United Nations Comission on International Trade Law (UNCITRAL) sobre Arbitragem Comercial, a qual, segundo o jurista, é incerta, pois da leitura de seu artigo 8 (1)[18] depreende-se que aos tribunais cabe uma decisão final acerca da validade da convenção arbitral[19]. Contudo, diversos tribunais, ao adotar a referida Lei Modelo, sustentam que o Judiciário deve estar adstrito à uma inquirição prima facie de eventuais vícios do pacto antes de encaminhar as partes à arbitragem.

Consoante se denota das abordagens expostas por Born, não há um consenso internacional acerca da extensão e dos limites imponíveis ao princípio da Kompetenz-Kompetenz. De toda forma, é possível concluir que o primado, de fato, não possui caráter absoluto, ou seja, da sua incidência não decorre, necessariamente, que o árbitro será sempre o único responsável por analisar se possui ou não competência para julgar o caso, e tampouco que essa decisão não poderá ser objeto de revisão judicial.

Essa conclusão decorre, ainda, da análise de outros modelos. A título de exemplo, o § 1.032 (1) do Código de Processo Civil alemão (Zivilprozessordnung – ZPO) dispõe que, na hipótese de matéria sujeita a cláusula compromissória arbitral ser judicializada, com posterior objeção jurisdicional oferecida pelo demandado, deverá o Judiciário considerar a ação inadmissível, salvo se a convenção arbitral for nula, ineficaz ou inoperante – ou seja, após exercer juízo a respeito da avença.

Na realidade, a legislação arbitral alemã foi reformada em 1998, resultando na alteração de paradigma no enfrentamento da questão da Kompetenz-Kompetenz. Antes disso, diante da ausência de regramento específico sobre a possibilidade ou não de o árbitro decidir, de maneira vinculante, acerca de sua competência, o Tribunal Federal Alemão (Bundesgerichthof – BGH) entendia apenas ser possível se proceder dessa maneira caso as partes firmassem, além da cláusula compromissória, uma cláusula independente de Kompetenz-Kompetenz[20]. Ante a existência dessa avença, cabia ao Poder Judiciário tão somente a análise da sua validade e interpretação, mas não o julgamento do caso como um todo – embora seja verdade que referida cláusula poderia ser afastada para impedir, por exemplo, um processo injusto na designação dos árbitros[21].

Esse entendimento foi superado com a alteração legislativa de 1998, que inseriu diversos dispositivos ao Código de Processo Civil. Desde então, o árbitro pode decidir acerca de sua própria competência, bem como da existência e da validade da cláusula arbitral[22]. Contudo, essa decisão não vincula as Cortes estatais, de modo que cada parte do procedimento arbitral terá um mês para apresentar eventual impugnação ao Poder Judiciário[23], cuja conclusão deverá ser observada pelo árbitro e pelas partes.

Por fim, cumpre mencionar que a Convenção de Nova Iorque permite às partes levar ao Judiciário questões concernentes à validade e eficácia da cláusula arbitral antes mesmo de que sejam analisadas pela jurisdição privada (art. II, 3). Caso a Corte entenda que a cláusula arbitral é nula e sem efeitos, inoperante ou inexequível, não deverá encaminhar as partes à arbitragem, mas declarar a competência do Tribunal estatal para apreciar aquela matéria.

Ante o exposto, denota-se que, dentre os principais diplomas legais acerca da arbitragem, não há a adoção de uma interpretação absoluta do princípio da Kompetenz-Kompetenz, segundo a qual apenas o árbitro teria competência para decidir acerca da sua competência e da validade, existência e operabilidade da cláusula compromissória. O que se observa, na realidade, é algo bem diferente: uma tentativa de harmonizar a autonomia do árbitro com outros postulados imprescindíveis ao Estado Democrático de Direito, como a separação dos poderes, os deveres de accountability e os direitos fundamentais das partes.

Daí porque, seja em razão da necessidade de se fazer uma leitura eminentemente constitucional do conteúdo do princípio da Kompetenz-Kompetenz no Brasil – que privilegie o acesso à justiça, o devido processo legal, a duração razoável do processo e a eficiência –, seja porque nem mesmo o direito comparado dá ao princípio a intensidade que querem lhe atribuir a doutrina e a jurisprudência no Brasil, a correta interpretação do instituto impõe o reconhecimento de que o principio não pode retirar do Poder Judiciário a competência para analisar, a qualquer tempo, a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem.

E, diferentemente do que alegam aqueles que defendem a radicalização do princípio, permitir que o Judiciário tenha a última palavra a respeito da existência, validade, eficácia da cláusula compromissória arbitral não enfraquece a arbitragem, mas a fortalece. Afinal, é difícil acreditar que o mau uso do instituo – permitindo que, em muitos casos, transforme-se em um entrave ao acesso à Justiça, ao invés de um densificador de tal princípio – possa contribuir para a sua sobrevivência e crescimento.

Assim, para que a arbitragem viva outros 25 anos, melhores e mais intensos, não deve temer a ingerência judicial na análise da legalidade da cláusula compromissória arbitral, embora nem mesmo o (real) conteúdo do princípio da Kompetenz-Kompetenz permita que a arbitragem dela se esquive.

[1] https://www.contraditor.com/vicio-na-clausula-compromissoria-arbitral/

[2] WALD, Arnoldo Arbitragem: passado, presente e futuro. In: Revista de Arbitragem e Mediação, v. 50, pp. 59-78, 2016.

[3] STF, Tribunal Pleno, SE 5.206, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.12.2001, DJe 30.4.2004.

[4] BORN, Gary B. International Arbitration: Law and Practice. Holanda: Kluwer Law International, 2012, 52.

[5] Boucaron-Nardetto, Magali. Le Principe Compétence-Compétence en Droit de l’Arbitrage. Nice: Université Nice Sophia Antipolis, 2011, p. 10

7] NERY, Maria Carolina. Arbitragem e Poder Judiciário: proposta para um diálogo. 1.ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 72.

[8] Boucaron-Nardetto, Magali. Le Principe Compétence-Compétence en Droit de l’Arbitrage. Nice: Université Nice Sophia Antipolis, 2011, p. 11.

[9] Idem, p. 15.

[10] Ibidem, p. 15.

[11] ZELTNER, Martin. Die Kompetenz-Kompetenz der Schiedsgerichte. Nuremberg: Faculdade de Direito da Universidade Friedrich-Alexander, 1961, p. 126.

[12] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 5.ª Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1304.

[13] Cf. https://www.contraditor.com/vicio-na-clausula-compromissoria-arbitral/

[14] BORN, Gary B. International Arbitration: Law and Practice. Holanda: Kluwer Law International, 2012.

[15] Idem, pp. 52-53.

[16] Art. 1.448 do Code de procédure civile: “Lorsqu’un litige relevant d’une convention d’arbitrage est porté devant une juridiction de l’Etat, celle-ci se déclare incompétente sauf si le tribunal arbitral n’est pas encore saisi et si la convention d’arbitrage est manifestement nulle ou manifestement inapplicable.”

[17] BORN, Gary B. International Arbitration: Law and Practice. Holanda: Kluwer Law International, 2012, p. 53.

[18] “O juízo perante o qual é proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem remeterá as partes para arbitragem se uma das partes assim o solicitar, até o momento de apresentar as suas primeiras alegações relativas ao mérito da disputa, a menos que constate que referida convenção de arbitragem é nula, inoperante ou ineficaz.”

[19] Ibidem.

[20] LACHMANN, Jens-Peter. Handbuch fùr die Schiedsgerichtpraxis, 3.ª Ed., Colônia: Verlag Dr. Otto Schmidt KG, 2008, p. 187.

[21] Ibidem.

[22] V. § 1.040 (1) do ZPO.

[23] V. § 1.040 (3) do ZPO.

Autor

  • Maria Carolina Starzynski é Bacharel em comunicação social pela FAAP e graduanda do 10º semestre de direito na PUC-SP.
    Renato Montoanelli Tescari é Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Professor assistente na cadeira de Direito Processual Civil na PUC/SP. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPro. Advogado com atuação no contencioso judicial e em arbitragem.

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