No dia 14/10/2021 o STF retomou o julgamento da ADI 5766, ajuizada pelo Procurador Geral da República contra dispositivos da Lei nº 13.467/2017, que alterou a CLT e introduziu diversas alterações que, segundo o autor, violam o acesso à justiça por estabelecer a obrigação ao reclamante de pagamento de despesas processuais quando houver a apuração de créditos, ainda que lhe seja reconhecida a gratuidade da justiça.
Nesta análise, de cunho acadêmico, sem pretensão de perscrutar os votos, busca-se apenas trazer alguns elementos para uma compreensão do tema.
1 Os textos impugnados
A Lei nº 13.467/2017 alterou inúmeros dispositivos legais, passando a conferir uma nova conformação ao regime financeiro do processo do trabalho. A despeito do equívoco em indagar sobre a vontade da lei ou vontade do legislador[1], não se pode olvidar o papel de um relator de projeto de lei, ante a sua posição de destaque, pois responsável pela formatação do texto legislativo. Isto foi identificado na tramitação do projeto que converteu-se naquela Lei, tendo o relator afirmado ser necessária a fixação de custos no processo, pois haveria um excesso de demandas[2] na Justiça do Trabalho em razão da ausência de sucumbência e pelo grande número de pedidos de gratuidade. Daí, segundo o relator, essa “litigância sem risco acaba por estimular o ajuizamento de ação trabalhista”[3]. Esse, portanto, o telos das alterações legais[4].
Os textos impugnados na ADI são os seguintes[5]:
(i) Art. 790-B. § 4º Somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo.
(ii) Art. 791-A. § 4º Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.
Segundo a parte autora, haveria a violação da Constituição Federal, que assegura, em seu art. 5º, LXXIV, a regra pela qual “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
2 O conceito de gratuidade da justiça
A gratuidade da justiça consiste na inexistência de óbices de natureza financeira antes e durante o transcurso da relação processual, a significar a dispensa momentânea de quaisquer despesas processuais para que o processo possa (a) iniciar, (b) seguir o seu curso (realização de perícia, p. ex.) ou (c) alcançar novas fases (em caso de recurso, p. ex.). Esse, portanto, o conteúdo, do que resulta o seu caráter provisório, uma vez que, adquirindo condições que superem a hipossuficiência inicial, a parte deverá suportar as despesas que a lei lhe imputa. Nesse sentido, afirma a doutrina que o “benefício da justiça gratuita atua no âmbito da responsabilidade provisória pelo custeio do processo. Não atua no âmbito da responsabilidade definitiva”[6].
Assim, o beneficiário estará dispensado do adiantamento de despesas; não está isento, porém, do pagamento dessas mesmas despesas ao final do processo, se restar vencido. Ou seja: ainda que seja beneficiário da gratuidade da justiça, o vencido tem o dever de suportá-las, a despeito de a cobrança estar condicionada ao implemento de capacidade econômica do devedor.
Deste modo, os §§4ºs dos artigos 790-B e 791-A da CLT realizam com o Código de Processo Civil uma uniformização legislativa sobre o tema. Porém, indaga se, ao admitirem a possibilidade de atribuir o pagamento de determinadas de honorários advocatícios e periciais ao reclamante beneficiário, afrontariam a Constituição Federal.
3 A simples obtenção de crédito não afasta a gratuidade da justiça
A gratuidade da justiça é um direito fundamental prestacional do Estado. Nela há uma conjunção das liberdades clássicas e de direitos sociais. Essa ubicação caminha na contemporânea concepção do processo enquanto instrumento de proteção contra o exercício arbitrário de posição de poder tanto por parte Estado-Juiz quanto da outra parte, cuja legitimidade pressupõe a efetiva participação dos envolvidos na construção da solução ao litígio.
Em razão disso, a gratuidade não corresponde a um benefício, como se o Judiciário estivesse em uma posição sacrossanta e, do alto de seu Olimpo, de forma misericordiosa, pudesse conceder a graça à parte litigante. A gratuidade da justiça é um direito constitucionalmente previsto. O seu reconhecimento, nas hipóteses autorizadas normativamente, concretiza no plano processual um dos direitos fundamentais responsáveis por possibilitar que haja uma plena solução dos conflitos intersubjetivos, não se restringindo a uma mera promessa.
Justamente porque a gratuidade da justiça consiste em um direito fundamental, em face da força normativa que se espraia da Constituição Federal, o Judiciário há de estar com o espírito aberto na tarefa de concretizar esse comando a partir de uma interpretação adequada à Constituição dos textos infraconstitucionais que regulam o tema da gratuidade da justiça.
Outrossim, mais do que uma atualização vocabular, essa mudança de perspectiva importa em uma alteração por completo da compreensão dos requisitos a serem atendidos para que seja reconhecido o direito à gratuidade da justiça. A insuficiência de recursos não quer dizer, por óbvio, a pobreza, em sua concepção de falta de recursos (inclusive para a sobrevivência), pois o texto constitucional não chega a tal píncaro de restrição, ao que se soma o fato de que tal interpretação levaria ao cúmulo de atender a um número pequeno de pessoas que acorrem ao Judiciário, tendo em vista também o deficit informacional. Assim, resta ultrapassada toda e qualquer tentativa de confiná-la à hipótese de pobreza ou de miserabilidade[7]. Exige-se, tão somente, que a pessoa não possua condições de efetuar o pagamento das despesas processuais sem o sacrifício da manutenção, pessoal ou familiar[8].
Logicamente, a gratuidade da justiça não corresponde a uma garantia fundamental absoluta[9], autorizando-se a fixação de restrições, todavia, observados diversos requisitos: impõe-se uma (a) autorização constitucional à restrição, a qual (b) deve ser proporcional e (c) atender a um interesse social e não meramente público, (d) sujeitar-se ao controle jurisdicional e, ademais, seja (e) exaustivamente fundamentada[10].
Observando apenas este último requisito, há se registrar que as restrições devem ostentar um caráter normativo, não apenas financeiro. O único argumento que muitos trazem diz respeito ao efeito positivo de diminuição do número de processos, o que efetivamente ocorreu. Além de não enfrentar as causas desse grande número de demandas ajuizadas – por exemplo, de estabelecer medidas punitivas ao descumprimento estratégico dos direitos trabalhistas –, atenta-se a uma das consequências desse fator. Argumentar exclusivamente com aportes de análise econômica do direito importaria na admissão de que o direito, especialmente o constitucional, não teria um conteúdo próprio, antes, deveria render homenagens ao deus Mercado.
Ademais, não se pode olvidar que a rejeição de um pedido nem sempre decorre de um espírito aventureiro (para as litigâncias temerárias há meios, que poderiam ser aprimorados pelo legislador), antes decorre de um amplo espectro de causas: inexistência do direito postulado, deficit probatório, convencimento do julgador etc.
Note-se, outrossim, ser possível conjecturar uma alteração radical na concepção do próprio direito de ação. De fato, se anteriormente, talvez, pudesse se objetar que o direito de ação no processo do trabalho talvez fosse um direito abstrato em seu máximo grau, a atrair a crítica que muitos desferiam a essa configuração de ser um direito dos que não possuem direito, atualmente tem-se uma concepção imanentista do direito de ação.
Há se registrar, portanto, que a gratuidade da justiça não é um conceito meramente matemático, de conteúdo zero ou negativo, a significar que, obtido algum crédito, qualquer fosse o valor, automaticamente a pessoa deixaria de fazer jus à gratuidade da justiça e, portanto, deveria suportar o custo no processo. Esse raciocínio importaria, na realidade, em negar o direito à gratuidade da justiça, atribuindo-se a este instituto uma ontológica aleatoriedade, pois vinculado ao sucesso ou não da parte no processo. Ora, a Constituição Federal não assegura a gratuidade da justiça apenas aos perdedores na demanda, mas sim aos litigantes que sejam carentes de recursos financeiros. Daí, para que o litigante deixe de fazer jus à gratuidade da justiça e, portanto, seja obrigado a fazer face a alguma despesa ou custo processual, deverá ocorrer uma mudança na sua realidade econômica, alterando-se aquele panorama financeiro que existia anteriormente.
4 A necessidade de preservação de um valor mínimo ao reclamante
Parece-nos que a existência de um critério matemático ou rígido seja algo arbitrário[11]. Com efeito, defende-se que a realidade financeira concreta dos litigantes seja o fator primordial na análise dos requisitos necessários para gratuidade da justiça, uma vez que previsão abstrata deixaria de contemplar um grande número de hipóteses de litigantes que teriam tal direito e, ademais, poderia incluir pessoas que não fariam jus, tendo em vista a riqueza da vida real. Assim, é correto afirmar que a gratuidade da justiça deve ser identificada em cada caso concreto[12].
Não obstante, há dois votos do STF no sentido de proporcionar ao reclamante que aufere créditos a garantia de recebimento do valor equivalente a uma vez o máximo valor pago pela Previdência Social.
Caso se utilize como referência valor pago pelo INSS, é possível identificar na própria CLT a menção a esse indicador, não obstante, diverso qual ao valor. De fato, embora incorretamente chamado por muitos como “hipersuficiente”, há uma categoria de empregado que, aos olhos do legislador, gozaria de maior liberdade contratual, pois recebem valor superior a duas vezes o teto máximo pago pela Previdência Social, como se no parágrafo único do art. 444 e no art. 507-A. Entendeu o legislador pela admissibilidade de uma regulação normativa diversa em relação a esse trabalhador, utilizando, para tanto, sua remuneração ou o seu salário.
Deste modo, caso se adote um critério matemático, parece-nos que a CLT apresenta um parâmetro específico, de forma a garantir ao beneficiário da gratuidade da justiça uma intangibilidade de seu crédito a duas vezes o teto pago pela Previdência Social.
Conclusão
Em linha de conclusão, ao assegurar ao beneficiário da gratuidade da justiça a intangibilidade de um determinado valor, há se reconhecer que o STF tem implementado uma proteção que os reclamantes não gozam nem mesmo perante a Justiça do Trabalho – órgão jurisdicional que tem autorizado a retenção de qualquer valor que eventualmente a parte venha a receber, em típica vitória de Pirro. Não se pode olvidar, no entanto, que a Constituição Federal não utiliza um conceito financeiro para o reconhecimento da gratuidade da justiça. Quanto a esse tema, é importante relembrar, com Lênio Streck, que a “noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais”[13].
[1] STRECK, Lênio Luis. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 455.
[2] Efetivamente a medida adotada pelo legislador foi eficiente para diminuir a litigiosidade: se em 2016 houve 3.700.642 casos novos (Relatório Geral da Justiça do Trabalho, 2020, p. 41); em 2020, 2.975.899 (Justiça em números, 2021, p. 107).
[3] Trecho do relatório em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1544961.
[4] Não obstante, o argumento de ser o Brasil um país que concentraria 92% das ações trabalhistas do mundo foi objeto de uma refutação objetiva e ensurdecedora feita por João Renda Leal Fernandes (O mito EUA: Um país sem direitos trabalhistas? Salvador: Juspodivm, 2021, p. 251-284). Na realidade, trata-se da adoção de mecanismos simplistas de tentativa de diminuição dos processos, como, aliás, se verificou na Inglaterra, o que foi afastado pela Corte Constitucional daquele país ([2017] UKSC 51. (On appeal from: [2015] EWCA Civ 935). UNISION vs Lord Chancellor).
[5] Na mesma ADI tem impugnação do § 2º do art. 844 da CLT.
[6] DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Benefício da gratuidade da justiça. 6ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 22. Destaques originais
[7] Como afirmara Jorge Americano: “Para alcançar a assistência, não é preciso que o indivíduo viva da caridade pública, basta que esteja colocado na contingência de, ou deixar perecer o seu direito por falta de meios para fazê-lo valer em juízo, ou ter que desviar para o custeio da demanda e constituição de patrono os recursos indispensáveis à manutenção própria, e dos que lhe incumbe alimentar, dentro do conceito de família.” (Comentários ao código de processo civil do Brasil, v. 1, p. 124-125, apud ASSIS, Araken. Processo civil brasileiro: v. II, t. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 552.
[8] NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. Manual de direito processual civil. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 232.
[9] Como, aliás, com quase todos os direitos fundamentais. Neste sentido, cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021, p. 117.
[10] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 863-870.
[11] Não obstante, temos decidido por um critério linear, qual seja, em assegurar à parte reclamante o mesmo tratamento que o CPC confere a outros empregados, isto é, a intangibilidade equivalente a 50 salários-mínimos (art. 833, § 2º, CPC), salvo para pagamento de dívida alimentícia – natureza sob a qual os honorários não se enquadram, a despeito de sua natureza alimentar. Não se nega, todavia, que os tribunais trabalhistas têm admitido a penhora de salários para quitação de dívidas trabalhistas.
[12] Nagib Slaibi Filho, apud DIDIER JR.; OLIVEIRA, O benefício…, 2016, p. 60.
[13] Jurisdição…, 2002, p. 127.
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