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O INUSITADO CASO DO JULGAMENTO DO ARE N.º 1.351.247/SP

O julgado do recurso que nunca existiu

O INUSITADO CASO DO JULGAMENTO DO ARE N.º 1.351.247/SP

Não é tarefa das mais simples redigir um texto técnico-jurídico sobre algo que não existiu sequer hipoteticamente.

Todavia, o STF, pela lavra do Min. Luiz Fux, proferiu uma decisão[1] a respeito, ou melhor, apreciando um recurso que não foi interposto pela parte sucumbente e, tampouco, pela parte vitoriosa.

De forma bem sucinta e naquilo que interessa para a compreensão dos fatos, cuidou-se de uma ação originariamente proposta na Justiça Federal em São Paulo cujo objetivo era obter, além de uma pensão vitalícia e o pagamento de remuneração vencida e vincenda calculada com base no soldo correspondente ao grau hierárquico de 3.º sargento, uma indenização por danos morais e materiais.

Os pedidos foram julgados parcialmente procedentes determinando que a ré procedesse à “reforma militar do autor, a partir do seu licenciamento, sob a remuneração calculada com base no posto hierarquicamente imediato”, rejeitando-se os demais pedidos.

Após o manejo de recursos de apelação pelas partes, o Tribunal Regional Federal da 3.ª Região proferiu acórdão no bojo do qual se consignou:  “não conheço de parte do recurso do autor e, na parte conhecida, dou parcial provimento à apelação para condenar a União ao pagamento de indenização de dano moral, nos termos acima expostos, bem como dou parcial provimento à apelação da União e ao reexame necessário apenas para determinar a observância do art. 1°-F da Lei n.° 9.494/97, na redação da Medida Provisória n° 2.180/2001 e, posteriormente, da Lei n.° 11.960/2009”.

Foram interpostos recursos especial e extraordinário, ambos inadmitidos. O primeiro juízo negativo de prelibação foi assentado nos seguintes óbices: (α) o acórdão recorrido está em sintonia com a jurisprudência do STJ, como por exemplo: AgInt no REsp 1.610.752/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/05/2019, DJe 24/05/2019 e REsp 1.703.452/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/04/2018, DJe 25/05/2018 e (β) revisitar a conclusão do acórdão, no que diz respeito à indenização fixada, “pressupõe revolvimento do acervo fático-probatório dos autos, inviável no âmbito especial, nos termos do entendimento consolidado na Súmula n.º 7 do C. Superior Tribunal de Justiça”. Por sua vez, o extraordinário foi inadmitido, visto que a “solução da controvérsia (…), pressupõe, necessariamente, o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que torna inviável o seu processamento, nos termos da Súmula 279/STF”.

Diante disso, a ré, expressamente, manifestou ciência do conteúdo das decisões denegatórias dos recursos extremos, oportunidade na qual (i) renunciou a via impugnativa própria do agravo interno em RE e (ii) interpôs agravo em REsp (AREsp).

No STJ a pretensão foi rechaçada sob o fundamento de que a recorrente “deixou de impugnar especificamente” todos os fundamentos da decisão de inadmissibilidade do especial. Tal decisão transitou em julgado.

Desconhece-se o motivo pelo qual os autos eletrônicos foram remetidos ao STF, talvez porque na certidão de trânsito em julgado emitida no STJ conste, ao final do documento, como uma espécie de “modelo” o seguinte: “Remeto o presente processo eletrônico ao Supremo Tribunal Federal”.

Sabemos todos que “modelos” são “modelos”, ou seja, meras representações que auxiliam como simples referências não prescindindo de maiores análises e detidas adaptações para tornarem-se úteis às hipóteses concretas. Não obstante isso, também é corrente o uso de “modelos” como sendo “produtos finais e acabados”. Vida que segue!

O “inusitado” é que no STF, não sabemos precisar o porquê, autuou um “recurso extraordinário com agravo” inexistente. Proferiu-se uma decisão monocrática  da lavra do Presidente da Corte, com fundamento nos art. 932 do CPC e art. 13, V, “c” do RISTF,  no âmbito da qual consta “análise dos autos” e a negativa de seguimento ao “agravo interno” fazendo incidir, ainda, o óbice intransponível da Súmula 279 do STF e majorando a verba honorária em 10% em desfavor  da “parte recorrente, nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil, observado os limites dos §§ 2.º e 3.º do referido artigo (….)”.

O STF, enquanto instituição máxima do Poder Judiciário nacional não pode cometer essa cinca.

Equívocos interpretativos ocorrem, fazem parte da compreensão do direito (linguagem). Uma decisão é passível de análises, críticas ou qualquer espécie de temperamentos, desde que justificáveis. Aliás, é exatamente a justificativa que faz com que tenhamos e, de fato, temos mais de uma resposta correta, seja ela em perspectiva doutrinária, seja do ponto de vista do caso concreto. Isso é uma possibilidade que a intepretação de textos normativos nos oferece. Direito não é imutável; a facticidade não comporta represamentos em numerus clausus no âmago dos nossos provimentos vinculantes ou em qualquer espécie de “dado”.

No episódio pilhérico a única certeza é que as coisas não funcionaram. Um recurso inexistente gerou uma decisão nula (vício transrescisório) emitida pelo Presidente do STF. Um consequente destituído de antecedente. Uma resposta sem pergunta. Um julgamento sem objeto. Uma jurisdição sem “ação/recurso”.  Uma automação judicial com fiscalização humana deficitária. Uma artificialidade sem “inteligência”.

Necessitamos muito mais do que saber trabalhar com “precedentes” no Brasil; é preciso, compreender e assimilar como se labora acertadamente com “modelos” e “inteligência artificial – IA[2], estabelecendo algoritmos adequados, transparentes e funcionais às diversas situações que possam surgir na profusão de ações e recursos dissemelhantes.

Subverter essa ideia e ignorar as causas e suas complexidades nos levará a cometer enganos, lapsos, prejuízos e desgastes tanto às partes quanto ao próprio funcionamento da estrutura do Poder Judiciário.

Aprendamos com esse erro; ignorá-lo, além de importar em mais um obstáculo em busca da efetividade qualitativa na prestação jurisdicional, lançar-nos-á, necessariamente, “cada vez mais, a matematização e a formalização desintegrativa (…) para só considerar como únicas realidades as fórmulas e equações que governam as entidades quantificadas (…) o pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitat multiplex). Ou ele unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou ao contrário, justapõe a diversidade sem conceber a unidade[3].

Façamos uma pundorosa e sóbria prestação jurisdicional: (a) tempestiva à medida da complexidade de cada espécie de causa; (b) adequada quanto à solução a ser conferida ao litígio seja ele serial ou não à luz do direito positivo vigente e, por fim, (c) controlável por meio dos recursos e meios impugnativos previstos taxativamente no rol dos diplomas procedimentais inerentes à cada ramo do direito.

[1] ARE n.º 1.351.247/SP, Rel. Min. Presidente, DJ 20/10/2021, DJe 21/10/2021.

[2] Uma observação se faz necessária: a “IA” é uma realidade. Profissionais sérios, responsáveis e capacitados estão diuturnamente envolvidos em importantes projetos com o objetivo de propor melhoras, aprimoramentos e na obtenção de resultados positivos para que essa “ferramenta” tecnológica seja de uso frutífero tanto para o Poder Judiciário e Administração Pública em geral quanto aos destinatários dos serviços em geral.

Nossa crítica é dirigida à situação especificamente, a qual merece urgente correção e, jamais, à tecnologia ou aos profissionais que com ela desenvolvem soluções.

[3] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliana Lisboa. 4. Ed. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 12.

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Autor

  • Pós Doutor pela Universidade de Coimbra (UC/PT), estágio pós doutoral pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS) e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Membro da ABDPro - Associação Brasileira de Direito Processual. Advogado da União (AGU)

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