A MENTIRA DO RÉU PODE SER VALORADA NEGATIVAMENTE PEJO JUIZ NA SENTENÇA?

Mentira do réuA conduta do réu que descadaramente inventa um ardil a fim de se esquivar do resultado justo de um processo judicial – contrapondo sua versão a todos os elementos probatórios que cabalmente levam a um resultado diverso – demonstra desprezo à boa-fé e a lealdade processual, comportamento que se contrapõe diametralmente à conduta perpetrada pelo acusado que permanece calado ou mesmo confessa a participação no crime.

Este comportamento, avesso ao que se espera do homem médio, é tratado no direito norte americano como perjúrio e está tipificado como ilícito penal. No direito pátrio, alguns doutrinadores defendem a impossibilidade de sua tipificação, malgrado o projeto de Lei nº 4.192/15, com esta finalidade, tenha sido rejeitado pela Câmara dos Deputados. Entrementes, demonstrar-se-á que esta conclusão é inteiramente equivocada.

Como é cediço, o texto constitucional encampa outras garantias que afiançam um processo justo e democrático, circunstâncias que espancam o “direito à mentira” propalado por muitos, sobretudo porque não há nenhum direito absoluto ou que se sobreponha os demais.

Malgrado as garantias processuais devam ser observadas e com elas não se possa transigir, é inaceitável que o processo penal se constitua como instrumento para salvaguardar condutas desleais e incompatíveis com o ordenamento jurídico pátrio, até mesmo com a própria Constituição da República.

O direito ao silêncio é expressão da garantia à não autoincriminação (“nemo tenetur se detegere”) e corolário do princípio da não culpabilidade, constituindo-se como máxima garantia do preso ou acusado não produzir provas contra si mesmo, não se obrigando a assumir postura ativa quando perguntado sobre eventual infração penal supostamente por ele praticada.

É escorreito conceber o seu desenvolvimento ao direito norte-americano, sobretudo no caso Miranda v. Arizona (1966).  Em síntese apertada, o caso em apreço tratou da situação em que um acusado foi interrogado por policiais, sem que estes o informassem previamente acerca de seus direitos, dentre eles o de permanecer calado. Em decisão histórica, a Suprema Corte Norte-Americana anulou o julgamento, admitindo a invalidade da confissão obtida nestas circunstâncias.

No direito norte-americano o direito ao silêncio também possui feição constitucional. Contudo, naquele ordenamento, o perjúrio, que nada mais é do que a mentira propalada em juízo, constitui-se como infração penal.

Houve tentativa de criminalização do perjúrio no direito penal brasileiro por intermédio do projeto de lei nº 4192/2015, que incluía no Código Penal o artigo 343-A, com a seguinte redação: “Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo”. No entanto, o aludido projeto foi arquivado pela Câmara dos Deputados.

Contudo, a reprovação do projeto, embora impeça a tipificação legal do perjúrio, não obsta o magistrado de considerar a mentira descabida como circunstância judicial negativa (art. 59, do Código Penal), em nosso sentir.

O direito de permanecer calado constitui-se como direito de defesa, impondo-se ao Estado um dever de abstenção, de modo que não se permita qualquer tipo de incursão estatal na esfera individual do preso ou acusado com o escopo de impor-lhe a obrigação de produzir prova contra si mesmo.

É em razão destes aspectos que a doutrina majoritária e a própria jurisprudência dos tribunais superiores têm considerado o interrogatório como meio de defesa, e não de provas, muito embora possa se prestar à última hipótese, como no caso de uma confissão corroborada por outros elementos de prova existentes no processo.

Esta ilação permite duas principais consequências para o réu: a primeira, analisar a conveniência e/ou oportunidade de prestar suas declarações, a fim de escolher o que lhe for mais favorável no seio do processo; a segunda, de caráter sancionatório, significa que a ausência de oportunidade de ser interrogado significa nulidade absoluta do processo.

Todavia, o direito de permanecer em silêncio outorga ao investigado apenas a oportunidade de relatar sua versão sobre os fatos ou de abster-se de falar em juízo, pois a ele não é dado menoscabar o dever de lealdade e boa-fé processual que permeiam o ordenamento jurídico como um todo.

O dever de lealdade consiste no respeito à honra e à honestidade, e aplica-se a todo o ordenamento jurídico, devendo se imiscuir também nos preceitos do Direito Processual Penal, haja vista que o último não se constitui como um jogo despido de regras, as quais se aplicam também ao acusado, e não apenas ao acusador.

Seguindo este espírito, o artigo 5º do Código de Processo Civil dispõe: “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. Não se pode chegar a outra ilação senão pela obrigação das partes de se comportarem em conformidade com a boa-fé objetiva.

Com efeito, a boa-fé objetiva possui íntima correlação com a lealdade e a cooperação. Aliás, o dever de cooperação também foi incluído no artigo 6º do Código de Processo Civil, cujo escopo é alcançar uma decisão de mérito justa e efetiva.

Embora o dever de boa-fé processual não esteja registrado de forma expressa no Código de Processo Penal, não se pode olvidar que o próprio estatuto, em seu artigo 3º, admite a interpretação extensiva e analógica, o que, a nosso ver, permite a sua aplicação no âmbito do ordenamento jurídico sub examine.

Em relação à boa-fé objetiva, é possível concluir que todo o ordenamento jurídico pátrio – não apenas o processual civil – está permeado pela obrigatoriedade de aplicação do preceito, já que uma das funções da jurisdição é a aplicação do direito objetivo no caso concreto, escopo que não será atingido sem a cooperação das partes no processo penal.

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a necessidade de aplicação da boa-fé objetiva ao processo penal, no caso, para rejeitar a denominada “nulidade de algibeira”, conforme excerto do aresto abaixo transcrito:

“(…) a jurisprudência dos Tribunais Superiores não tolera a chamada ‘nulidade de algibeira’ – aquela que, podendo ser sanada pela insurgência imediata da defesa após ciência do vício, não é alegada, como estratégia, numa perspectiva de melhor conveniência futura. Observe-se que tal atitude não encontra ressonância no sistema jurídico vigente, pautado no princípio da boa-fé processual, que exige lealdade de todos os agentes processuais” EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp n.º 1.382.353/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 13/5/2019.

O trecho sub examine realça a obrigação das partes na manutenção da lealdade processual durante o curso do processo, afastando-se comportamentos contraditórios à expectativa dos atores envolvidos, sobretudo quando a “estratégia” defensiva se constitui como cilada para obtenção de um resultado benéfico ao réu.

Neste contexto, entendemos que o comportamento mentiroso do réu no curso do processo não pode passar despercebido pelo magistrado sentenciante, mormente quando a mentira destoa cabalmente de todo o contingente probatório que emana dos autos.

Com este propósito, o legislador atribuiu ao magistrado alguma discricionariedade em relação às circunstâncias judiciais, permitindo que a pena seja ajustada em conformidade com a realidade que permeia a prática de um delito, especialmente no que concerne à personalidade do agente.

Sabendo que a desonestidade se enquadra no conceito de personalidade como circunstância judicial – que é pouco similar ao conceito da psicologia – não pode ser outra a ilação senão a de permitir-se a valoração negativa desta circunstância judicial quando o réu opta por esta atitude desleal.

Conforme sobredito, o comportamento do acusado que assume uma postura ativa é destoante dos valores que permeiam o ordenamento jurídico pátrio, especialmente a igualdade e a lealdade processual, vetores existentes no sentido de conduzir o processo ao seu objetivo, que é a pacificação social.

Ora, se a própria Constituição da República prestigia a lealdade, o comportamento mentiroso revela que o acusado despreza valores de alçada constitucional, impondo-se, então, que sua ação receba a devida resposta do ordenamento jurídico, no caso, no momento da individualização da pena.

Concluindo, sabemos que a doutrina e a jurisprudência majoritárias inclinam-se pela impossibilidade da valoração negativa da circunstância judicial da personalidade em razão da mentira do réu. Contudo, é preciso repensar esta tendência, sob pena de se garantir um prêmio ao investigado ou réu que age em total deslealdade com o juízo.

 

Referências 

CARVALHO, Gabriela Ponce; DUARTE, Evandro Pisa. As Abordagens Policiais e o Caso Miranda v. Arizona (1966): violência institucional e o papel das cortes constitucionais na garantia da assistência do defensor na fase policial. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 303-334, jan.-abr. 2018.

DELFINA, Cleber Pereira. A mentira do réu como elemento relevante na dosagem da pena. In: Revista Jurídica ESMP-SP, V. 5, 2014: 117-144.

GOMES, Magno Federici. Credibilidade sustentável no mercado e a falta do perjúrio o Direito Penal Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Volume 147/2018. p. 525-563. Setembro/2018. DTR\2018\19331.

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