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3+4=7… E A (IR)RACIONALIDADE DE CLASSIFICAÇÕES ROMANAS

3+4=7... E A (IR)RACIONALIDADE DE CLASSIFICAÇÕES ROMANAS

“Demos o nome de Digesto ou Pandectas a esses <cinquenta> livros…, concluindo toda obra em aproximadamente cento e cinquenta mil linhas. E os dividimos em sete partes, não sem premeditação e justo motivo, mas levando em conta a natureza e a ciência dos números e produzindo uma divisão das partes em harmonia com eles” (Justiniano, Const. Tanta 1)[1].

Superado o momento inicial do curso, o bom estudante de direito, já mais confiante de si, invariavelmente se torna questionador. Como uma criança de três anos: é a fase dos porquês. Só que dúvidas postas por crianças são mais fáceis de responder do que as apresentadas por jovens adultos e, muitas vezes, professores inseguros são colocados em situações constrangedoras resolvidas com frases clássicas. Quem nunca ouviu: “depois vamos ver isso”, “essa matéria será melhor estudada daqui a tantos semestres”, “infelizmente agora não há tempo para responder a sua dúvida”, “você não compreendeu porque ainda não estudou bem o tema” etc.? Com isso, começam a se acumular as “perguntas não respondidas durante a graduação”… Alguns só vão encontrar as devidas respostas em uma pós-graduação, outros como fruto do esforço e pesquisa individual e outros nunca terão as respostas… o que não impede o exercício profissional, mas gera sempre um incômodo ao verdadeiro intelectual.

E será que sempre haverá uma resposta lógica para todas as nossas dúvidas? Ou temos de nos conformar com a irracionalidade de alguns conceitos, categorias, classificações etc.?

Muitos bons alunos, conquistada ainda mais confiança, parecem ter um prazer quase sádico de buscar contradições no discurso de professores e grandes autores. Lembro que tive um colega durante a graduação (e que talvez esteja lendo este texto agora) que se dedicou arduamente a encontrar contradições em Pontes de Miranda. E Pontes de Miranda, que tanto valorizava o conhecimento matemático, tinha sim as suas inconsistências… assim como Teixeira de Freitas, Windscheid, Jhering, Savigny, Pothier, Domat, Cujácio, Bártolo, Acúrsio etc., pois todos foram seres humanos… e a falibilidade é uma característica humana.

Tudo isso parece talvez óbvio, contudo não infrequentemente vejo muitos defenderem a logicidade do ilógico ou, mais comumente, defenderem a lógica de algo sem entender qual seja. E eu, por muitos anos, arrastei muitas dúvidas acerca do direito romano que nenhum manual (à minha disposição) respondia convenientemente. Em especial no que diz respeito às classificações. Não me parecia clara a razão para: haver quatro fontes das obrigações (Inst. 3, 13, 2), quatro servidões prediais rústicas (Inst. 2, 3 pr.), três gêneros de homens (Inst. 1, 5 pr.), três condições (status) para a capacidade de direito e três modos para a sua diminuição (Inst. 1, 16 pr.) etc. Por que eram necessárias sete testemunhas em testamentos (Inst. 2, 10, 2)? Por que aos sete anos o menor adquiria alguma capacidade de agir (Theoph. 3, 19, 10)? Por que as Institutas eram divididas em quatro livros (Const. Imperatoriam 4) se eram três os seus conceitos-chave (Inst. 1, 2, 12)? Seriam falhas dos clássicos juristas ou mera incompreensão de um jovem romanista-civilista?

Passaram-se anos até que tive contato com um antigo trabalho produzido na Universidade de Oxford que analisava a artificial simetria de algumas classificações nas Institutas de Justiniano por conta de uma simbologia numérica[2]. Foi o momento em que percebi que a numerologia influenciou muitas das classificações romanas: descobri que o meu erro estava em não verdadeiramente entender qual era a lógica de muitos juristas romanos.

Vejamos o exemplo de Justiniano e mais especificamente sua principal obra de sistematização do direito (as Institutas – famoso manual para os estudantes primeiranistas dos cursos de direito de Bizâncio).

A simbologia dos números era importante para o famoso imperador bizantino. A primeira versão do Código de Justiniano (uma parte do Corpus Iuris Civilis que reunia normas promulgadas por imperadores romanos – as constituições imperiais) havia sido dividida em 12 livros como uma homenagem à Lei das XII Tábuas (século V a.C.) e não é mero acaso que as Institutas tenham quatro livros e três conceitos-chave (Inst. 1, 2, 12).

Também para o Digesto (parte principal do Corpus Iuris Civilis e que foi elaborado em conjunto com as Institutas), ele adotou uma divisão em sete partes “não sem premeditação e justo motivo, mas levando em conta a natureza e a ciência dos números” (Const. Tanta 1):

(i) Πρῶτα (“Elementos <do direito>”): os temas fundamentais do direito, abrangendo os livros 1 a 4 (Const. Tanta 2);

(ii) De iudiciis (“Dos processos”): que compreende os livros 5 a 11 (Const. Tanta 3);

(iii) De rebus (“Das coisas <que se confia que sejam entregues>”): é composta pelos livros 12 a 19 (Const. Tanta 4);

(iv) Umbilicus (“<A parte do> meio”): todas as várias matérias dos oito livros seguintes (20 a 27) correspondem às regras jurídicas “mais úteis e mais belas”, abrangendo temas como: direitos reais de garantia, edito dos edis curuis, provas, casamento, tutela e curatela (Const. Tanta 5);

(v) De testamentis: seus 9 livros (28 a 36) compõem a parte mais extensa do Digesto, tratando de vários aspectos da sucessão testamentária (Const. Tanta 6);

(vi) Sexta parte: não é conhecida com uma expressão específica e abrange temas variados em 8 livros (37 a 44), como direito das sucessões (em continuação à parte anterior), aquisição e perda da propriedade (tratando da usucapião) e proteção da posse (Const. Tanta 7);

(vii) Sétima: a última parte do Digesto também abrange temas variados, nos livros 45 a 50 (Const. Tanta 8); assim como a primeira parte do Digesto, há aqui uma predominância de temas de direito público e o emprego de autores e obras bem diversos do restante da compilação; dentre seus temas, podem ser mencionadas, genericamente, as obrigações verbais (livros 45 e 46), os delitos privados e públicos (que forma o bloco conhecido como “libri terribiles” – livros 47 e 48, que tiveram uma forma de compilação um tanto quanto particular com relação ao restante do Digesto), a apelação (títulos 1 a 13 do livro 49), outros temas variados de direito público, como o direito tributário romano (D. 49, 14, a D. 50, 15), um “dicionário” de termos jurídicos (D. 50, 16) e uma compilação de regulae (D. 50, 17).

O imperador claramente estava influenciado por um simbolismo numérico muito comum na Antiguidade. Nada há de excepcional nisso. E três números se destacavam: o três (que indicava o sagrado, perene e espiritual), o quatro (que indicava o mundo temporal, não espiritual) e o sete (que representava a conjugação desses dois mundos).

Com relação ao Digesto, Justiniano buscou conscientemente o número sete para sinalizar que a sua compilação continha o direito laico, mas adequado à religiosidade (cristianismo) de então – aspectos importantes para o imperador (talvez ele, como cristão, tenha inclusive se influenciado pela simbologia dos sete dias da criação do mundo – Biblia Vulgata, Genesis I, 1, 1 a 2, 3).

Tratava-se de uma simbologia muito significativa derivada do pensamento grego. Eles acreditavam que havia uma virtude oculta no número sete e dividiam a vida de um ser humano em sete períodos “críticos” (climatéricos – em latim, “climacter”, em grego, “κλιμακτήρ”).

Um exemplo interessante de combinação desses números, em classificações jurídicas romanas, é a divisão dos impúberes em três grupos (infantes, infantiae proximi, pubertati proximi), sendo o divisor mais importante a idade de sete anos.

Sem dúvida Justiniano adotou essa divisão mais por superstição do que por alguma questão técnica. Igualmente deve tê-lo feito com relação às Institutas.

Quanto à divisão em quatro livros, o parâmetro inicial era o tamanho médio dos “livros”. Observe-se o exemplo dos cinquenta livros do Digesto. Não há uma lógica clara dessa divisão em livros, parecendo que predominou mais a preocupação quanto à extensão do texto do que uma harmonia quanto ao seu conteúdo. Para citar um exemplo, o título sobre as ações derivadas do contrato de compra e venda (D. 19, 1) estaria muito melhor inserido ao final do livro dezoito (que versa somente da compra e venda) do que no início do livro dezenove. Seja como for, não há uma preocupação excessiva (matemática) em harmonizar a extensão dos livros (havendo certa variação entre eles).

Uma ideia média de “livro” nos dá o próprio imperador Justiniano em Const. Tanta 1, pois deixa claro que o Digesto é um trabalho de leitura, seleção, correção, adaptação, sistematização e escrita de um manuscrito com quase 150 mil linhas a partir de três milhões de linhas de quase dois mil livros (supostamente lidos pela comissão que elaborou o Digesto). Admitidos esses números, um livro teria, em média, 1.500 linhas. Se cada página tiver por volta de 44 linhas (sem considerar a existência de colunas), tem-se um livro com 34 páginas. Coincidentemente, esse é, aproximadamente, o tamanho médio de cada livro do Digesto no seu principal manuscrito (de época justinianeia): a Littera Florentina.

Em suma, conforme o padrão “editorial” da época, não seria natural apresentar todo texto das Institutas em um “livro único”. Mas se fosse observada a proporcionalidade dos livros do Digesto, as Institutas deveriam ser divididas em três livros. E justamente são três os conceitos-chave dela, indicados em Inst. 1, 2, 12: persona, res e actio. O desequilíbrio, porém, entre a extensão de cada uma dessas partes (“persona” ocupa, aproximadamente, 16% da obra, “res” ocupa 67% e “actio” ocupa 17%) não possibilitava uma divisão desse modo.

Por isso, Justiniano optou por fracionar o tema “res” e apresentou a seguinte distribuição dos conceitos-chave: o primeiro (persona) ocupa o livro 1 (com uma parte inicial sobre o direito e suas fontes); o segundo (res) o livro 2, o livro 3 e a parte inicial do livro 4; o terceiro (actio) somente a parte final do livro 4.

E para entender o porquê de se ter optado por “quatro”, deve-se observar que o conjunto da primeira parte do Digesto (que trazia os “elementos do direito” – πρῶτα – Const. Tanta 2) também era dividido em quatro livros (D. 1 a 4). E, mais uma vez, não por acaso, após falar em quatro livros em um fragmento da norma de promulgação das Institutas (Const. Imperatoriam 4) ele afirma que elas são os “prima elementa”. Por fim, mais uma vez, não por acaso o imperador dá um título alternativo à sua obra: “Elementa”.

Πρῶτος” é uma palavra grega que indica algo que vem antes, no tempo e na lógica das coisas. Ou seja, algo que é origem, fundamento, base, o mais importante. Já a palavra latina “elementum” indica, mais genericamente, os componentes de algo e, mais especificamente, as quatro substâncias a partir das quais tudo seria composto: terra, ar, fogo e água (segundo a filosofia antiga, esses eram os “elementos” básicos que comporiam toda matéria).

Ora, em síntese, como já notava Azo no início do século XIII, a divisão do conjunto das Institutas em quatro livros devia-se a uma referência indireta aos quatro elementos fundamentais de constituição de toda matéria (segundo os antigos).

Por isso Justiniano vincula o termo “elementa” às Institutas, pois elas trariam os primeiros fundamentos de todo direito. E, com disso, acaba levando para sua obra (assim como o fez com relação ao Digesto) o simbolismo da conjugação de 3+4=7, como se quisesse dizer que apresentava, com ela, os primeiros fundamentos de seu direito laico adequados à religiosidade da época (não se pense que é acaso a referência a “Jesus Cristo” e “Deus” na abertura da constituição preliminar às Institutas – Const. Imperatoriam 1 – e a “Deus” na última frase das Institutas – Inst. 4, 18, 12).

Como se disse acima, o problema talvez não seja a ilogicidade (ou irracionalidade) de algumas classificações romanas, mas a incompreensão do jurista contemporâneo acerca de qual a lógica por detrás dessas classificações… e a racionalidade pode ser, por vezes, a dos números…

* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e em suas conexões com o Direito Contemporâneo.

[1] Norma de promulgação do Digesto, de 16 de dezembro de 533 d.C.

[2] H. Goudy, Trichotomy in Roman Law, Oxford, Clarendon, 1910 (disponível para download na minha “Biblioteca Fundamental de Direito Romano” – www.bernardomoraes.com/biblioteca-dr).

 

Autor

  • Bacharel, Doutor e Livre-Docente pela Faculdade de Direito da USP (FDUSP), Especialista (“Perfezionato") em Direito Romano pela Università di Roma I – La Sapienza, Professor Associado (graduação e pós-graduação) da FDUSP (Direito Civil e Direito Romano). Procurador Federal (AGU) – https://www.bernardomoraes.com

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