Nos últimos anos, o Chile, espremido entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico e entre o Deserto do Atacama e os gelos antárticos, tem se mostrado ao mundo como um laboratório social. Com efeito, na segunda metade do século passado empreendeu, pela via eleitoral, uma experiência socialista. Salvador Allende, liderando uma frente de partidos de esquerda e de centro (Unidad Popular), venceu as eleições de 4 de setembro de 1970, com 1.075.616 votos, que representavam 36,3% dos sufrágios válidos.
Dois meses depois, iniciou-se um histórico governo democrático que se propunha: o fim da estagnação econômica; a continuidade da reforma agrária iniciada no governo de Eduardo Frei Montalva; a nacionalização do cobre, do ferro e do aço; a promoção da justiça social; e a transição do capitalismo ao socialismo democrático, dentro da institucionalidade e em respeito às leis e à Constituição de 1925.
O governo de Salvador Allende, que durou apenas 1041 dias, foi um acontecimento político da maior transcendência no século passado no país andino. A nacionalização de empresas estadunidenses e o projeto de construir um regime socialista no Chile confrontou os interesses dos Estados Unidos nesta parte do hemisfério sul. Eram tempos de guerra fria, os EUA não queriam outra Cuba no continente. Nesse contexto, o governo Nixon asfixiou a economia chilena e financiou grupos direitistas para que criassem o caos social, legitimador da ruptura da tradição constitucional das forças armadas chilenas. Assim, em 11 de setembro de 1973, o general Pinochet, que poucos dias antes tinha jurado defender a Constituição e as leis, perpetrou um cruento golpe de Estado.
Como registra a história, Salvador Allende suicidou-se no Palácio de La Moneda, após o bombardeio da Força Aérea e do assalto à sede do governo chileno por tropas do Exército e suas últimas palavras foram: “…[M]uito mais cedo que tarde, abrir-se-ão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor”.
O grau de brutalidade do golpe de Pinochet e a violação sistemática dos direitos humanos durante a ditadura militar (1973-1990) foi um dos capítulos mais abjetos da História do Chile, cujas consequências são palpáveis até hoje. Nos vários volumes do Relatório Rettig são registrados os abusos de poder, as execuções, as mortes no toque de recolher, as torturas, o fechamento do Congresso e do Tribunal Constitucional, a incineração dos registros eleitorais, a intervenção nas universidades, os detidos desaparecidos, os exilados etc.
De Pinochet e seus acólitos podemos dizer com Saint Just: “Foram tão malvados quanto a sua estupidez lhes permitiu”. Assim, violentamente, foi ultimada a experiência reformadora, que mobilizou as esperanças de todo um povo, em prol do exercício dos direitos sociais e individuais, do efetivo respeito à dignidade da pessoa humana, do fim da concentração da riqueza, do analfabetismo, da extrema pobreza e da construção de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária.
Com a Constituição de 1980, no plano político institucional Pinochet buscou perpetuar-se no poder impondo um regime autoritário tutelado pelos militares. No âmbito econômico impôs, “manu militari”, um modelo neoliberal, dialeticamente oposto ao da experiência do socialismo “com vinho tinto” de Salvador Allende. Durante os dezessete anos da ditadura e de todos os governos do período democrático continuaram vigentes os fundamentos e a estrutura do modelo econômico neoliberal estabelecido pelos Chicago boys, que desenvolveram um ambicioso programa destinado a refutar o Estado de bem-estar social no Chile e a redefinir as bases da economia.
Ainda no aspecto econômico todos os governos, desde a ditadura até o governo Piñera, toleraram um capitalismo explorador dos trabalhadores e espoliador do meio ambiente. De fato, os níveis de contaminação e de degradação do meio ambiente são alarmantes em todo o Chile. A título exemplificativo lembremos: a contaminação com metais pesados de rios e lençóis freáticos pela mineração; a poluição pelas termoelétricas; a poluição de espaços marinhos causados pela criação do salmão na região austral; o desaparecimento dos glaciares da Cordilheira dos Andes pela exploração mineira; a invasão de reservas naturais para exploração de minérios; a elevada contaminação atmosférica nas zonas urbanas e industriais; e a degradação e contaminação de solos e perda da biodiversidade.
O Estado se retirou não somente da saúde, da educação e da previdência social, mas também das atividades produtivas. Houve um amplo processo de privatizações sem transparência, que beneficiou pessoas próximas do governo pinochetista. A privatização da previdência social com a criação das Administradoras de Fundos de Pensões (AFPs) foi apresentada ao mundo como um grande sucesso, por substituir completamente o tradicional sistema público de partilha com base na solidariedade intergeracional por um sistema de capitalização individual administrado por empresas privadas com fins lucrativos. Na verdade, esse sistema não consegue dar ao trabalhador, após uma vida de sacrifícios, uma aposentadoria digna. E muitos trabalhadores, após longos anos de depósitos não realizados pelas suas respectivas empresas ou não reconhecidos pelas AFPs, se veem na terceira idade, sem serviços de saúde (não existe um SUS no Chile) e sem previdência social.
Em apertada síntese, este é o legado da ditadura militar, institucionalmente consagrada na Constituição de 1980, que os chilenos rasgaram nas multitudinárias manifestações de 2019 e 2020.
Assim, finalmente, depois de quase cinquenta anos da alocução daquelas que foram as últimas palavras proferidas pelo presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, o governo de Sebastião Piñera reconheceu que era chegada a hora de escolher uma Assembleia Nacional Constituinte para pôr fim ao legado de Pinochet.
Por isso, pode-se afirmar que o Chile vive, agora, a aurora da abertura das grandes alamedas, por meio da instalação e do regular funcionamento da Convenção Constitucional, que recebeu do povo o Poder Constituinte. O compromisso iniciou-se com a eleição de 155 membros para, no prazo de nove meses a um ano, elaborar uma nova Constituição. A primeira sessão aconteceu no dia 4 de julho de 2021, na antiga sede do Congresso Nacional em Santiago.
É digno de nota que esta assembleia nacional constituinte, pela primeira vez no mundo, tem composição paritária, 50% de mulheres e 50% de homens. Também é inovadora na representação dos povos originários, que todos os poderes constituintes anteriores os ignoraram. Por último, chama-se a atenção para o fato de que a grande maioria dos eleitos são independentes, não tem vínculos com qualquer partido político, muito menos com o governo atual. Trata-se de um verdadeiro laboratório social do outro lado da Cordilheira, que o mundo todo assiste expectante.
Ao longo dos próximos meses nos propomos a acompanhar os trabalhos da Convenção Constitucional chilena, trazendo para a nossa realidade as experiências do país vizinho, que certamente contribuirão para a valorização e fortalecimento da jovem democracia brasileira.