Fevereiro de 2021. Por ordem do Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o Deputado Federal Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso em flagrante após publicar vídeo em que fazia diversas críticas aos Ministros do STF e também defendia a ditadura militar, especificamente os termos do Ato Institucional n. 05 (AI-5). A ordem se deu nos autos do Inquérito Criminal n. 4871/19-DF, instaurado em 14 de março de 2019 pelo então presidente à época Ministro Dias Toffoli, para apuração da prática de disseminação de fake news, especialmente aquelas realizadas em face do Supremo Tribunal Federal. Afastando-se de questões políticas e ideologias partidárias, a instauração de mencionado inquérito desafiou, no plano jurídico, regras conhecidas do sistema acusatório brasileiro, sendo que, posteriormente, as decisões tomadas ameaçam o livre exercício da liberdade de expressão.
Iniciando-se pelo sistema acusatório, não restam dúvidas, ao menos da leitura do art. 129, I, da CF 88, que a ação penal publica compete, privativamente, ao Ministério Público, regra que decorre do sistema acusatório e da necessária separação entre a acusação, a defesa e o julgador. Não obstante, por meio da Portaria GP n. 69/2019, o Supremo Tribunal Federal, através do seu Ministro Presidente, instaurou o controverso inquérito para apurar abstratamente “fatos e infrações correspondentes, em toda a sua dimensão”. É o suficiente para perceber que o inquérito: (i) fora instaurado pelo Supremo Tribunal Federal; (ii) será conduzido pelo Supremo Tribunal Federal; e (iii) será julgado pelo Supremo Tribunal Federal – especificamente quanto à promoção de arquivamento ou não, inviabilizando, nitidamente, a incidência correta do sistema acusatório.
Quanto à Portaria GP n. 69/2019, percebe-se que o Ministro Presidente fundamentou a instauração do inquérito no art. 43, caput, do Regimento Interno do STF, realizando, no mínimo, uma interpretação peculiarmente equivocada no dispositivo e ignorando a interpretação sistemática dos parágrafos subsequentes do próprio. Dispõe o caput do dispositivo citado que pode ser fundamento da instauração do inquérito a seguinte situação: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro” (art. 43, caput, do RISTF).
O teor do artigo é claro e não deixa espaços para interpretações, em que pese a arquitetura jurídica realizada pelo Ministro Presidente. A incidência do caput é categórica: o inquérito será instaurado quando ocorrer infração à lei penal na sede ou dependência do STF. A interpretação levada a efeito pelo Ministro Presidente nos leva a conclusão absurda que a sede ou a dependência do STF é em todo território nacional, inclusive na internet. Tudo isso sem mencionar que, pelo que diz o art. 43 do Regimento, as vítimas seriam os próprios Ministros do STF, sendo que estes mesmos Ministros se transformam em julgadores do processo por eles mesmos criados.
Outras ilegalidades e inconstitucionalidades cometidas na instauração do presente inquérito chamam atenção, tais como: violação ao juiz natural (art. 5º, LIII, CF 88), ao não realizar a distribuição aleatória do relator, mas direcionando a relatoria a Ministro específico; objeto incerto e indeterminado do inquérito; violação às garantias do advogado, ante a impossibilidade de acesso aos autos. Atentando-nos ao espaço na presente coluna, devemos nos concentrar na, talvez, mais grave violação, principalmente diante do recente histórico do regime militar brasileiro e dos atuais ataques à democracia: o atentado à liberdade de expressão.
Isto porque, a decisão monocrática do relator, que culminou na prisão do então Deputado Federal Daniel Silveira, fundamentou-se, basilarmente, em declarações e manifestações realizadas pelo mencionado em redes sociais, que de fato são deselegantes e utilizam palavras de baixo calão e impróprias. Não obstante as manifestações terem sido postadas na internet em dias pretéritos da decisão, elas foram consideradas como flagrante de delito, resultando na possibilidade da prisão do Deputado Federal. Mas essa mesma lógica abre a possibilidade de cidadãos serem presos por manifestações deselegantes lançadas em redes sociais a tempos, como no caso do twitter que mantém na plataforma postagens com mais de 10 (dez) anos.
Especificamente sobre a liberdade de expressão, o Relator afirma que a decisão não afrontaria a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias. Mas são das próprias razões que nortearam a decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes que se extrai a violação da liberdade de expressão. Afinal, as condutas que visam a controlar ou a aniquilar a força do pensamento crítico são tidas como inconstitucionais, ainda mais quando direcionadas para autoridades, cuja posição de maior destaque, visibilidade e responsabilidade, são fatores que possibilitam e que devem permitir a crítica de sua atuação.
Ressalte-se, ainda, a abrangência e os requisitos genéricos da prisão. No caso, a prisão em flagrante instaura um verdadeiro estado de polícia, que constrange todos os cidadãos, impondo-lhes a necessidade de cautela em externar suas expressões, o que configura uma censura indireta ante a possibilidade do enquadramento de sua conduta nos fundamentos tidos como justificadores para prisão.
Seis meses depois, nos mesmos autos, através de decisão monocrática do mesmo Ministro foi determinada a prisão preventiva do ex-deputado e atual Presidente do PTB Roberto Jefferson. A fundamentação foi similar: Manifestações políticas foram interpretadas como contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático de Direito. Há inclusive uma repetição literal de um parágrafo da decisão anterior. Citou-se, ainda, como razão de decidir, o precedente do Deputado Daniel Silveira, ou seja, decide-se de maneira inconstitucional pela prisão em flagrante e utiliza-se desse precedente como fundamento jurisprudencial para justificar novas inconstitucionalidades. Por fim, como se já não bastasse a citação de precedente inconstitucional, sobrevém uma fundamentação do art. 312 do CPP, que simplesmente cita a necessidade de tutela da ordem pública e conveniência da instrução criminal. Algo que o próprio Supremo tribunal federal repudia, ao exigir a fundamentação concreta e específica da prisão cautelar.
Mais grave é perceber que a fundamentação jurídica genérica da prisão pulveriza na sociedade a insegurança quanto às consequências de suas manifestações individuais do pensamento. Prender com base em considerações genéricas federa, maneira cristalina, a liberdade de expressão, não somente dos que tiveram a prisão decretada, como de toda a sociedade, pois todos estarão em constante perigo se a ideia, por mais radical que seja, for punida pelo simples fato de ser transmitida.