O objetivo principal do texto é apresentar, de forma breve a acessível o conceito de Direito para Calmon de Passos. O artigo serve, portanto, como uma introdução ao pensamento do autor e a premissa necessária para entender como o jurista operava em suas construções. Tivemos a honra de homenagear o autor na coletânea Direito, Processo e Garantia, lançada pela Editora Thoth (clique aqui para ver o livro). O presente texto segue as loas em favor do mestre baiano, um dos principais bastiões doutrinários pela utilização do direito como limite ao Poder Estatal.
Calmon de Passos era, antes de tudo, um grande professor. Ele buscava a todo custo apresentar aos seus alunos, seja através de suas aulas, palestras ou textos, as razões das coisas, nomeadamente as coisas que habitam o domínio da linguagem, cuja produção e desfazimento, eminentemente humanos, exigem um atuar rigoroso para que o produto não se faça à margem da matéria-prima e de sua substância (como bem demonstrou Diego Crevelin no último artigo desta coluna – clique aqui para lê-lo). Portanto, são centrais no pensamento calmoniano o conceito de direito, o seu objeto e sua finalidade.
A justificação para o direito decorre da sociabilidade do ser-humano, pois, para que haja convivência civilizada, impõe-se seja institucionalizada uma ordem social. “É possível ordem social entre sujeitos aparentemente livres de decidir individualmente como julgarem melhor sem que se reduza ao mínimo essa possibilidade de ‘desordem’? Evidente que não. Daí o imperativo, presente em toda ordem social, de relações de mando/obediência. Sem dúvida que posso obedecer sem necessidade de coerção externa, porque, convencido, a mim mesmo me obrigo. Mas este tipo de obediência é socialmente insatisfatório. A ordem social exige coerção e coerção institucionalizada, mais que isto, um tipo último e poderoso de coerção que funcione quando falharem os filtros representados pelas várias instituições criadas pelos homens, justamente com o objetivo de darem alguma ordem estável e previsível para sua convivência. O tipo último e poderoso de coerção necessária para que os conflitos entre os homens conviventes encontrem sempre, e em última instância, uma solução (imposta) quem a institucionaliza é o Direito. Ele existe para isto e somente para isto. Sem ele, o poder político (comando a ser obedecido) se reveste de puro arbítrio, força bruta, formas de dominação intoleráveis para os homens e sem funcionalidade.”[1]
Importante notar que, o direito para Calmon de Passos representa um elemento civilizatório e institucionalizador do exercício legítimo da força pelo Estado. Desse modo, o Direito não é algo dado ao homem pela Natureza, como matéria-prima de que se possa utilizar para produzir objetos que se reificarão depois de produzidos. Sua produção se dá pelos homens como linguagem, texto, decisão que exige sua eficácia a nível macro e a nível micro.[2] “O direito é o produto da convivência política dos homens, sob a pressão de suas necessidades e buscando ideologicamente legitimar-se a coerção institucionalizada pela aceitação social.”[3]
A partir dessa complexa estrutura sócio-econômico-política, o direito é produzido, com a finalidade do atingimento de justiça (material), como um fundamento legitimador na perspectiva macro. O direito, enquanto regulação social, é um engendrado sistema de imposição de satisfação de necessidades do titular do direito subjetivo, com a correspondente e ineliminável insatisfação do destinatário do dever jurídico. Assim, o ordenamento jurídico de determinado Estado é tão mais justo quanto menos insatisfação legítima gerar. Com efeito, é necessário entender que, no nível macro, inexiste ordem jurídica a que não corresponda a realização de alguma justiça, como também não existe ordem jurídica capaz de realizar uma justiça absoluta.[4] A luta, portanto, pelo justo é algo que é produzido pela tensão social das exigências particularizadas e passa pelo filtro político para ser institucionalizada no direito.
É por essa razão que, para Calmon de Passos, “o direito não emancipa; somente a mobilização política o faz. O direito tem outra função: estabilizar o pacto de convivência entre dominante e dominado, garantindo nitidez aos limites transigidos pelo dominador para viabilizar a convivência com o dominado. O papel do direito é semelhante ao de um soldado que luta nas trincheiras, cuja função é a de consolidar as fronteiras do que já foi conquistado. O compromisso do jurista deve ser o de assegurar o dominado que não será vítima de uma dominação ilegítima. O direito não assegura a liberdade que se quer, mas a liberdade que se conquistou politicamente.”[5]
Compreendido o que é o Direito para Calmon de Passos, exige um próximo passo, que veremos na semana que vem, qual seja: como direito é produzido? Até lá.
[1] PASSOS, J. J. Calmon de. Visão crítica dos 20 anos da Constituição Cidadã, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 316.
[2] PASSOS, J. J. Calmon de. Visão crítica dos 20 anos da Constituição Cidadã, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 317.
[3] PASSOS, J. J. Calmon de. Implicações entre o jurídico e o social. Reflexão que se faz urgente, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 360.
[4] PASSOS, J. J. Calmon de. A constitucionalização dos direitos sociais, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 458.
[5] MODESTO, Paulo. Calmon de Passos: múltiplo e inesquecível (16.05.1920-18.10.2008), Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, ano 6, n. 23, Belo Horizonte : Editora Fórum, out./dez. 2008, versão eletrônica.