Alfredo Rocco foi um dos grandes juristas do regime de Mussolini. Tratava-se, nas palavras de Arrigo Solmi, de um “giurista insigne, maestro celebrato, pensatore e politico di alto ingegno, legislatore della Rivoluzione fascista”[1]. Com efeito, conquistou, em 1899, o título de livre docente em direito comercial na Universidade de Parma. Passou a lecionar a matéria em Urbino, Macerata e retornou a Parma, em 1906, como professor ordinário de “procedura civile”[2]. Em 1909-1910 lecionou em Palermo e, em 1910, transferiu-se para Padova, na qual ficou até 1925 e passou a ministrar novamente a matéria de direito comercial, além de direito administrativo, ciência da administração e filosofia do direito[3]. Figurou, assim, por mais de duas décadas como um dos “mais eminentes estudioso e professor da ciência do direito”, possuindo escritos, além de direito comercial e de “procedura civile”, nas mais variadas áreas do direito[4].
Eleito deputado em 1921 – com uma pauta voltada para uma fusão de movimentos nacionalistas e fascistas, depois concretizados com a Marcia su Roma –, Rocco logo chamou a atenção dos setores de poder e ocupou cargos dentro do executivo. Primeiro como Sottosegretario di Stato al Tesoro e, depois, como Sottosegretario di Stato alle Pensioni di Guerra. Em 1925 assumiu o cargo de Ministro Guardasigilli, que ocupou até 1932[5].
Com efeito, Rocco buscou acelerar o processo de tomada do direito pelo fascismo. Assim, ao assumir o cargo de Ministro Guardasigilli, verificou que os grandes entraves para a assimilação das ideias políticas fascistas estavam na “cultura jurídica” da época, que era forjada em um horizonte liberal. Ou seja, as construções dogmáticas/técnicas – que orientavam a práxis na sua visão mesma daquilo que pode e não pode ser direito, tal como conformavam o modo como a racionalidade jurídica operava – demonstravam-se agressivas e assépticas aos ideais fascistas[6]. Essa foi uma constatação feita por Rocco que, aliás, parece ser bastante correta e atual, a saber, que as alterações legislativas tendem a ser consideravelmente ineficazes enquanto a tradição, cultura e os costumes permanecem inalterados[7]. Em termos mais claros: o Poder Legislativo não consegue revogar uma tradição.
Dessa forma, Rocco tomou algumas medidas determinantes com o fito de atacar o problema, das quais destaca-se (i) o exercício de um controle ostensivo da vida pessoal dos magistrados (recrutamento, nomeação, poderes disciplinares, etc.) e (ii) o uso das circulares administrativas para disciplinar e influenciar no recrutamento e progressão de suas carreiras[8]. Apoiado em uma estrutura que facilitava o arbítrio, o então Ministro Guardasigilli construiu o aparato para destilar suas ideias de forma mais imediata, cooptando aliados e afastando aqueles que eram antipáticos ao fascismo. Isso acabou por despertar, inclusive, a revolta de setores da magistratura[9].
Rocco ficou bastante conhecido por suas construções legislativas, especialmente no âmbito penal[10]. Isso não impediu, contudo, que tivesse uma visão de procedimento civil compatível com os anseios do regime fascista[11].
Com efeito, a conhecida fórmula mussoliniana – tutto per lo Stato, nulla fuori dello Stato, nulla contro lo Stato –, embora preponderantemente política, desenvolve consequências para uma visão de processo. Rocco defendeu que essa forma política não levaria diretamente a ideia de um Estado “che tutto assorbe e tutto opprime“. Pelo contrário, o jurista enxergou nessa ideia fascista a consolidação de um Estado soberano e unitário, criando espécies de fins superiores aos pueris interesses individuais[12] – a própria imagem do feixe litório deixava isso bastante evidente[13]. Nessa linha, sendo o Estado fascista a negação mesma da democracia liberal, é imperativo lógico que a natureza do processo também precisaria sofrer uma modificação de 180º: de proteção e interesse dos indivíduos passou para instrumento de concretização de interesses estatais, superiores por imputação[14].
Consubstanciada nessa ideia de Estado unitário, abrangente e forte, Alfredo Rocco deixou bastante clara a sua visão de procedimento civil. Disse o autor que “[…] no código de processo civil, a administração da justiça não será mais considerada uma função passiva de interesse exclusivamente privado, mas como uma das mais altas atividades do Estado, com o objetivo eminentemente político de garantir a paz social, atribuindo a cada um que lhe pertence”[15].
Veja-se, assim, que há aqui uma aposta na inversão dos polos. O processo vinha, na visão de Rocco, servindo interesses demasiadamente privados. Na visão fascista, seria necessário que o processo atendesse a determinados fins desejados pelo Estado – dentre eles, a paz social – que carregam a característica de buscar apoio em conceitos altamente abstratos e indeterminados. Expressamente identificado como autor de base na Relazione do Codice di procedura civile de 1940[16], Rocco foi um dos precursores da ideia de que os indivíduos não sabem aquilo que é melhor para si, mas o próprio Estado que o sabe, sendo o processo, enquanto garantia dos indivíduos, preterido por interesses coletivos, superiores e metajurídicos.
[1] SOLMI, Arrigo. Commemorazione di Alfredo Rocco. Foro Italiano, Vol. 60, parte quarta: monografie e varietà, 1935, p. 405.
[2] Sobre a terminologia “procedura civile” e o seu contexto na Itália, ver RAATZ, Igor; ANCHIETA, Natascha. Observações críticas a respeito do “processualismo científico” e das “fases metodológicas da história do processo”. Empório do direito, São Paulo, 13 abr. 2020.
[3] SIMONE, Giulia. Il guardasigilli del regime: L’itinerario politico e culturale di Alfredo Rocco. Francoangeli: Milano, 2012. p. 14-34.
[4] SOLMI, Arrigo. Commemorazione di Alfredo Rocco. Foro Italiano, Vol. 60, parte quarta: monografie e varietà, 1935, p. 406.
[5] SOLMI, Arrigo. Commemorazione di Alfredo Rocco. Foro Italiano, Vol. 60, parte quarta: monografie e varietà, 1935, p. 407-408.
[6] Nesse sentido: “La prima sentenza sui comunisti italiani e la giurisprudenza in tema di espatrio politico riflettevano l’orientamento di magistrati che, almeno in queste vicende giudiziarie – con l’eccezione del caso De Gasperi – si muovevano ancora nell’orizzonte liberale della ricerca di «fatti concreti» commessi dagli oppositori politici, i soli da punire nella loro materialità di minaccia per il governo. Il rifiuto della logica del crimen laesae maiestatis di riconoscere rilevanza penale all’«intenzione», al «sospetto» – cardini della legislazione «eccezionale» – poggiava sulla cultura del tecnicismo giuridico, che assumeva un’indubbia valenza garantista, almeno nella legalità pensabile entro l’Italia fascista”. COLAO, Floriana. I processi ai “maggiori esponenti di idee contrarie al governo nazionale” prima dell’istituzione del tribunale speciale per la difesa dello Stato. In: LACCHI, LUIGI (ed.), Il diritto del duce. Giustizia e repressione nell’Italia fascista, Rome: Donzelli, 2015. p. 85.
[7] Diz o autor que “Le riforme, infatti, operate dalle leggi sono caduche, se éssè non si realizzano sopratutto nel costume, nello spirito, nella tradizione. Solo quelle riforme sono durevoli che sono fatte prima negli animi e poi nelle leggi”. ROCCO, Alfredo. La trasformazione dello stato: dallo stato liberale allo stato fascista. Roma: La Voce Anonima Editrice, 1927. p. 11. Sobre o argumento de uma “cultura”, ver: DIETRICH, William Galle. Cultura constitucional em declínio e degradação do processo. Empório do direito, São Paulo, 16 set. 2019.
[8] Diz Antonella Meniconi que “A partire dal 1925 (con Rocco ministro), tre furono le strutture determinanti all’interno del dicastero: il gabinetto del ministro, fulcro di tutta l’attività ministeriale; l’Ufficio del personale, attraverso cui si esercitava il controllo su tutto ciò che atteneva la vita professionale del magistrato (reclutamento, nomine, incarichi, trasferimenti, potere disciplinare), ma in una mediazione costante con i vertici della Corte di cassazione; e l’Ufficio legislativo, la «macchina per fare le leggi», destinato a un ruolo importante per tutto il periodo fascista, fino a rimanere – a partire dal 1940 – l’unico in centrali tutte le amministrazioni […] dello strumento della circolare amministrativa – lo si è accennato –, sia per «disciplinare» il corpo giudiziario nei suoi comportamenti processuali, sia per influire sui criteri per il reclutamento e la magistrati21 progressione in carriera di tutti i magistrati”. MENICONI, Antonella. La magistratura e la politica della giustizia durante il fascismo attraverso le strutture del ministero della giustizia. In: LACCHI, LUIGI (ed.), Il diritto del duce. Giustizia e repressione nell’Italia fascista, Rome: Donzelli, 2015. p. 117.
[9] MENICONI, Antonella. La magistratura e la politica della giustizia durante il fascismo attraverso le strutture del ministero della giustizia. In: LACCHI, LUIGI (ed.), Il diritto del duce. Giustizia e repressione nell’Italia fascista, Rome: Donzelli, 2015. p. 118.
[10] Sobre as contribuições de Rocco para a legislação fascista, vale destacar aquilo que diz Alberto Asquini: “Può sembrare impari separare nell’opera di Alfredo Rocco l’opera giuridica dall’opera politica; separare il Maestro dallo Statista. Impari e sopratutto arduo. Perchè l’opera politica di Rocco è stata prevalentemente opera legislativa, e in essa il genio del giurista e il genio dello Statista hanno dato pari misura di sè, creando in sette anni, a fianco e sotto le supreme direttive del Duce, le tavole fondamentali del diritto pubblico fascista, sulla cui base la Rivoluzione è divenuta Regime. Portano l’impronta inconfondibile di Alfredo Rocco, Ministro Guardasigilli di Mussolini, le leggi sul Gran Consiglio, sul Capo del Governo, sulla facoltà del potere esecutivo di emanare norme giuridiche; sulla difesa dello Stato e contro le associazioni segrete; il Concordato col Vaticano e le sue leggi di applicazione; la legge fondamentale dell’ordinamento sindacale e corporativo; la legge riformatrice dell’ordinamento forense; le leggi unificatrici del diritto privato nelle province annesse; i codici della riforma penale; le leggi di riforma delle società commerciali e delle procedure concorsuali”. ASQUINI, Alberto. L’opera giuridica di Alfredo Rocco. Foro Italiano, Vol. 61, parte quarta: monografie e varietà, 1936, p. 121.
[11] O que é inevitável, inclusive por imperativo lógico. Isso porque, como bem observa Eduardo José da Fonseca Costa, “em todo modelo de processo está implicado um modelo de Estado”. COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo e política, Empório do direito, São Paulo, 24 jul. 2020.
[12] ROCCO, Alfredo. La trasformazione dello stato: dallo stato liberale allo stato fascista. Roma: La Voce Anonima Editrice, 1927. p. 31
[13] Diz Mussolini que “La sua insegna perciò è il fascio littorio, simbolo dell’unità, della forza e della giustizia”. MUSSOLINI, Benito. La dottrina del fascismo, Istituto della enciclopedia italiana, Roma, 1935, p. 05.
[14] Cf. Rocco, “ […] dire che lo Stato è sovrano è negare il liberalismo e la democrazia, per cui una su-periorità dei fini dello Stato su quelli degli individui non esiste, come non esiste la sovranità dello Stato.” ROCCO, Alfredo. La trasformazione dello stato: dallo stato liberale allo stato fascista. Roma: La Voce Anonima Editrice, 1927. p. 19.
[15] ROCCO, Alfredo. La trasformazione dello stato: dallo stato liberale allo stato fascista. Roma: La Voce Anonima Editrice, 1927. p. 21.
[16] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4004.