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97. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS

SOLUÇÃO OU PUNIÇÃO PARA O DEVEDOR “CAFAJESTE”?

  1. Introduzindo o assunto

Em nossa última contribuição para essa Coluna, tratamos da retórica doutrinária acerca do requisito do esgotamento  dos meios típicos para o uso das medidas executivas atípicas nas execuções de pagar quantia (ver aqui).

Defendemos que, ao contrário do que propugnam os atipicistas, o esgotamento prévio dos meios executivos típicos incidentes nas execuções pecuniárias não é suporte fático para o manejo das medidas executivas atípicas, já que o ordenamento jurídico não apenas estabelece que a frustração da execução – ou esgotamento – se caracteriza com a tríplice omissão do devedor (falta de pagamento, de depósito e de indicação de bens penhoráveis),  como também define que ela serve como suporte fático ao surgimento, em favor do credor, da pretensão insolvencional contra o devedor.

Sendo essas as respostas legais oferecidas pelo próprio ordenamento jurídico, o uso das medidas executivas atípicas em sua substituição nada mais é do que uma pseudo-solução, um atalho com notório cunho moralizante e sancionatório.

Fizemos naquela coluna a promessa ao leitor de que trataríamos, em futura oportunidade, do emblemático “devedor ostentação”, já que, de maneira quase unânime dentre os processualistas publicistas (tanto dentre os que defendem a subsidiariedade, como dentre aqueles que pregam a concorrência entre meios típicos e atípicos), para tal tipo de executado, o art. 139, IV, do CPC, é um “bálsamo”.

Pois é chegada a hora de enfrentarmos a questão: as medidas executivas atípicas são “A” solução legal para o devedor “cafajeste” ou “ostentação”?

  1. O que dizem os adeptos da aplicação do art. 139, IV, ao devedor ostentação

Quando se fala em medidas executivas atípicas e a sua aplicação nas execuções de obrigação de pagar quantia, frequentemente a doutrina apresenta a figura do “devedor ostentação[1] ou “executado cafajeste”.[2] Normalmente é representado pelo caso do devedor que, malgrado não adimpla a prestação da obrigação exequenda e não tenha bens penhoráveis disponíveis – frustrando a execução – tem um padrão de vida incompatível com o de uma pessoa desprovida de patrimônio, dirigindo carros luxuosos, viajando para o exterior, frequentando restaurantes caros, ou seja, exteriorizando riquezas que não são encontradas pelo exequente.[3]

As medidas atípicas, então, são apresentadas como um arsenal adequado para combater esse tipo de executado. O “devedor cafajeste” se diferencia daquele devedor que, efetivamente, não possui bens livres e desembaraçados, que leva uma vida compatível com sua capacidade econômica e seu poder financeiro. Esse último, por conseguinte, não poderia ser destinatário de medidas executivas atípicas, porque elas se revelariam, além de inócuas, punitivas.[4]

A doutrina é entusiasta da aplicação das medidas executivas atípicas ao “devedor ostentação”, pois se trata de executado que se vale de artifícios elusivos para se furtar à realização da prestação devida.[5] Asseveram, ademais, que o sistema não oferece soluções aptas a tal situação de crise, porquanto nenhuma eficácia teria a desconsideração da personalidade jurídica ou reconhecimento de fraude à execução na vida do devedor que se comporta nesses moldes.[6] Ante a insuficiência, dizem, de remédios legais bastantes para resolver o problema de satisfação do credor, defendem a aplicação das medidas executivas atípicas, uma vez esgotados os meios típicos ou quando eles se revelem insuficientes, e desde que provado, pelo exequente, que o que ocorre não é ausência total de bens, mas sim ausência relativa, impondo-se coações indiretas para estimular o devedor a revelar a “existência e localização” de patrimônio.[7]

Entretanto, assim como o esgotamento dos meios executivos típicos como pressuposto para a incidência do art. 139, IV, CPC, o discurso em torno do devedor “cafajeste” carece de sustância dogmática, revelando-se, ao fim e ao cabo, também como subterfúgio para o manuseio do processo – tratado como instrumento da jurisdição – com fins moralizantes e sancionatórios.

  1. O grito do direito posto em contraponto aos ouvidos moucos dos atipicistas

Tal e qual afirmamos em escrito anterior sobre a escassez ou inexatidão de explicação da doutrina majoritária acerca do conceito legal da frustração da execução (ou esgotamento dos meios típicos), é possível dizer que fenômeno parecido ocorre quanto às soluções de lege lata para a hipótese do “devedor ostentação”.

Costuma-se afirmar que, nessas situações, o executado se utiliza de “laranjas” ou “testas de ferro” para se blindar patrimonialmente e, assim, escapar dos meios executivos sub-rogatórios típicos, o que leva alguns processualistas a empunhar a bandeira da utilização das medidas executivo-indutivas atípicas para coagir o executado a pagar. Seria imprescindível empoderar o juiz, portanto, para se coibirem esses comportamentos indesejáveis, porque o sistema legal não daria respostas satisfatórias ao problema. Contudo, em realidade, essa conclusão não é consentânea com algumas soluções de lege lata, sequer examinadas por essa mesma corrente, e que são obtidas do ordenamento jurídico sem maiores dificuldades.

Partimos do pressuposto inegável de que o executado que oculta bens necessariamente pratica atos de “dissimulação executiva”. Diferentemente do que de ordinário se propugna, o ordenamento jurídico confere alternativas para que o credor, tomando conhecimento de que o devedor assim age, se valha de incidentes, legalmente previstos, aptos a desvelarem o patrimônio. Dentre as alternativas de lege lata, podem ser citadas a fraude à execução, a desconsideração da personalidade jurídica, a desconsideração inversa, a propositura de ação pauliana para demonstrar fraude contra credores etc. Não há dúvidas de que esses institutos se caracterizam, via de regra, como caminhos intrincados, trabalhosos para o exequente, porém, por opção legislativa, são os meios aptos para se encontrarem bens até então ocultos e/ou dissimulados na esfera patrimonial do devedor renitente.

Vamos além, pois há outra resposta extraível do ordenamento jurídico, para o executado que esconde seus bens se utilizando de laranjas. Quando se pensa no executado “ostentação” – aquele que, sem embargo de não ser formalmente proprietário de bens em sua esfera jurídica, faticamente se apresenta como se fosse, v.g., dirigindo carros que estão registrados no DETRAN em nome de terceiro, exercendo atos próprios de domínio sobre bens imóveis, que também têm registro em nome de terceiros, dentre outras situações específicas próprias da complexidade da vida –, é inevitável analisar seus atos a partir do fato jurídico[8] da aparência.

A teoria da aparência, circunstância pela qual uma pessoa é considerada por todos como titular de um direito, embora não o seja, surgiu para proteger o terceiro de boa-fé que adquire bens de pessoa que, embora não sendo proprietária, se apresenta como tal em todas as suas circunstâncias, acarretando a necessidade de proteção da confiança legítima do adquirente.[9] Todavia, em nosso ordenamento, a aparência não é suporte fático apenas e tão-somente para essa situação, mas também foi acolhida em vários outros dispositivos legais, como o art. 167, §1º, I (simulação); art. 1.817 (herdeiro aparente); art. 309 (credor putativo), todos do CC/2002.

O devedor que aparenta possuir bens em seu patrimônio, mas não os tem formalmente, se utiliza, via de regra, de interpostas pessoas em nomes das quais os bens se encontram registrados (“laranja” ou “testa de ferro”). Essa relação entre o executado e o terceiro pode dar ensejo a negócios jurídicos simulados, o que conduziria à nulidade por simulação, consoante art. 167, §1º, I, do CC, ao abuso de direito (art. 178, CC),[10] à caracterização de fraude contra credores (art. 171, II, CC) ou à fraude à execução (art. 792, CPC), todas elas hipóteses de fraudes, em sentido aberto, que podem levar à invalidação ou à ineficácia do negócio jurídico respectivo.

Porém, a realidade é mais pródiga em exemplos. Essas interpostas pessoas também podem ser utilizadas pelo executado para praticar genuína blindagem patrimonial, como acontece em uma das hipóteses que, a propósito, enseja a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica – a da confusão patrimonial –, na qual os bens particulares dos sócios ou administradores são atacados para responder a obrigações da pessoa jurídica (art. 50, CC). Como desmembramento da disregard doctrine, surgiu a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica da pessoa natural, dado que o sócio – pessoa natural – se utiliza de um terceiro ente ficticiamente personificado – a pessoa jurídica – para ocultar seu patrimônio[11] (art. 50, §2º, CC, incluído em recente inovação legislativa, em 2019). Todas essas situações estão positivadas em nosso ordenamento jurídico e são, da mesma maneira, meios hábeis a localizar bens escondidos na esfera jurídica do devedor renitente.

Essa mesma relação de confusão patrimonial, apurada entre pessoa jurídica-sócio ou sócio-pessoa jurídica, pode se dar entre o executado “ostentação” e o “testa de ferro”, ambos pessoas naturais, os quais instituem autêntica sociedade de fato, cujo objeto social precípuo é beneficiar o devedor com a blindagem patrimonial e, consequentemente, prejudicar os seus credores. Deixando ainda mais clara a ideia, traz-se como exemplo o devedor que, para se livrar de sua responsabilidade patrimonial perante suas obrigações e não ter seus bens excutidos em procedimentos executivos, coloca-os em nome de terceiro, que anui a esse comportamento fraudulento.

A sociedade de fato é um fato jurídico – um acontecimento da vida regido pelo CC, arts. 986 e ss – e a sua existência pode ser provada por terceiros de qualquer modo, inclusive pelo credor que se vê por ela prejudicado (art. 990, CC).

O exequente, portanto, ao perceber, pela aparência, que a sociedade entre executado e terceiro existe e que serve ao propósito de blindagem patrimonial do devedor, tem pretensão, mediante incidente de desconsideração da personalidade jurídica, de buscar o reconhecimento da existência da sociedade de fato entre o executado e o “testa de ferro” e, na sequência, obter a desconsideração da personalidade jurídica de um sócio (o executado) para ataque ao patrimônio do outro sócio (o “laranja”).

O que se propõe, note-se, não é a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade de fato, até mesmo porque ela é uma sociedade não personificada, mas sim a desconsideração da personalidade jurídica de uma pessoa natural para outra pessoa natural, na esteira, de mais a mais, do previsto no art. 990 do CC, que diz que a responsabilidade dos sócios de uma sociedade de fato é solidária e ilimitada. Trata-se de uma possibilidade de lege lata, a partir de interpretação que se encaixa nos limites semânticos do enunciado normativo, revelando-se como uma forma apta a retirar o véu de uma sociedade de fato que existe para obstar a satisfação do exequente.

Há quem defenda, ainda, a aplicação das medidas indutivas atípicas no caso do devedor com patrimônio escondido em paraísos fiscais ou em trust, porque os institutos da fraude à execução e da desconsideração da personalidade jurídica seriam ineficazes.[12] Essa assertiva, todavia, não goza de completude, uma vez que há entidades hoje no Brasil se especializando cada vez mais no rastreamento de ativos ocultos em paraísos fiscais e trusts, com técnicas como forward tracing e reverse tracing, as quais têm instrumentos para desvelar, além de corrupção, também fraudes.[13]

Todas as soluções aqui apresentadas, reconhecemos, não se tratam, na maioria das vezes, de caminhos fáceis, baratos ou simples a serem trilhados pelo exequente, porém são as respostas conferidas pelo ordenamento jurídico e, portanto, legais, para que possa encontrar bens na esfera jurídica do devedor e, assim, perseguir a tutela do seu direito, mantendo-se nos limites da responsabilidade patrimonial inerente a essa espécie de execução de obrigação de pagar quantia, assim como observando o direito fundamental ao devido processo legal que alberga não apenas o exequente, mas também o executado.

[1] Expressão cunhada por Thiago Rodovalho. RODOVALHO, Thiago. O necessário diálogo entre a doutrina e a jurisprudência na concretização do NCPC, art. 139, inc. IV (atipicidade dos meios executivos). In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pp. 717-732.

[2] A expressão é utilizada por RODRIGUES, Marcelo Abelha. O que fazer quando o executado é um cafajeste? Apreensão de passaporte? Da carteira de motorista?. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pp. 75-92.

[3] CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O art. 139, IV, do CPC e os instrumentos de defesa do executado. In: TALAMINI, Eduardo, MINAMI, Marcos Youji (coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador : JusPodivm, 2018, p. 866. pp. 855-872; GRECO, Leonardo. Coações indiretas na execução pecuniária. In: TALAMINI, Eduardo, MINAMI, Marcos Youji (coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador : JusPodivm, 2018, p. 413. pp. 395-420.

[4] Neste sentido, FERREIRA, Gabriela Macedo. Poder geral de efetivação: em defesa da constitucionalidade da técnica de execução dos direitos do art. 139, IV do Código de Processo Civil. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pp. 371-394.

[5] RODOVALHO, Thiago. O necessário diálogo entre a doutrina e a jurisprudência na concretização do NCPC, art. 139, inc. IV (atipicidade dos meios executivos). In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pp. 717-732.

[6] CARREIRA, Guilherme Sarri, ABREU, Vinicius Caldas da Gama e. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pp. 241-273.

[7] CARREIRA, Guilherme Sarri, ABREU, Vinicius Caldas da Gama e. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. pp. 241-273. Também, GRECO, Leonardo. Coações indiretas na execução pecuniária. pp. 395-420. Todos in: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.

[8] De acordo com as lições de Pontes de Miranda sobre o conceito de fato jurídico, como o fato ou complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o fato de que dimana, agora ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral : bens, fatos jurídicos, atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 253 e ss. E também as lições de Marcos Bernardes de Mello: “O ser fato jurídico e o poder irradiar consequências jurídicas, portanto, constituem, respectivamente, uma qualificação e uma imputação que a norma jurídica faz a fatos da vida por sua relevância para o homem no meio social”. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da eficácia, 1ª parte. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 19.

[9] RIZZARDO, Arnaldo. Teoria da aparência. Ajuris 24/222-223, Porto Alegre-RS, mar. 1982; SOUZA, Gelson Amaro de. Teoria da aparência e a fraude à execução. Revista de Processo | vol. 112/2003 | p. 268 – 277 | Out – Dez / 2003; OLIVEIRA, Alexandro Adriano Lisandro de. Citação. Pessoa jurídica. Teoria da aparência. Revista de Processo | vol. 128/2005 | p. 185 – 206 | Out / 2005; MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado : critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 122.

[10] MAZZEI, Rodrigo e MERÇON-VARGAS, Sarah. Art. 833. In: CABRAL, Antonio do Passo e CRAMER, Ronaldo (orgs). Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1188.

[11] ANDRADE JUNIOR, Mozart Vilela. A desconsideração da personalidade jurídica para fins de responsabilidade: uma visão dualista da disregard doctrine. Revista de Processo | vol. 252/2016 | p. 59 – 77 | Fev / 2016.

[12] CARREIRA, Guilherme Sarri; ABREU, Vinicius Caldas da Gama e. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: In: TALAMINI, Eduardo, MINAMI, Marcos Youji (coords.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 251. pp. 241-273.

[13] Como o Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos – IBRA: < https://bit.ly/3asDxoY>.; Entrevista de um de seus diretores disponível em: <https://bit.ly/3anFi79>.

Autor

  • Doutoranda em Direito pela PUC/SP, Mestre em Direito pela Uninter, Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPro e do Instituto Pan-Americano de Direito Processual - IPDP, Juíza de Direito do TJPR

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