A William Galle Dietrich
Aqui e ali se escuta um indisfarçável descontentamento dos garantistas não-ferrajolianos com a expressão «garantismo processual» (para uma distinção entre os garantismos ferrajoliano e não-ferrajoliano, v. nosso Garantia: dois sentidos, duas teorias. <https://cutt.ly/0d4gXeJ>). E com absoluta razão. Afinal, a indeterminação semântica é um problema comum aos sufixos. Com o sufixo «-ismo» essa problematicidade é ainda maior. Ele pode exprimir muitíssimas coisas. Exemplo: mito messiânico [v. g., sebastianismo]; ideologia política [v. g., conservadorismo, liberalismo]; sistema de governo [v. g., parlamentarismo, presidencialismo]; modalidade esportiva [v. g., atletismo, hipismo]; movimento estético [v. g., dadaísmo, cubismo]; corrente religiosa [v. g., catolicismo, islamismo]; vício de linguagem [v. g., solecismo, neologismo]; transtorno de desenvolvimento [v. g., autismo]; enfermidade [v. g., raquitismo, gigantismo]; modo de existir [v. g., egoísmo, altruísmo]; movimento das plantas [v. g., tropismo, nastismo]; preconceito ou discriminação [v. g., racismo, antissemitismo]. Portanto, quando se diz «garantismo processual», só se diz metade. Sugere-se o objeto ao redor do qual gravita um conjunto de ideias. Todavia, não se revelam a abordagem metodológica, nem o estatuto epistemológico do ramo do conhecimento científico ao qual se refere. Não se revela, enfim, que o garantismo processual é uma teoria jurídico dogmática. Mais especificamente: uma teoria dogmático-constitucional do processo ou do «devido processo legal», que é o objeto de um direito fundamental de primeira dimensão ou geração, que se liga ao valor liberdade e cuja base textual é o inciso LIV do artigo 5º da CF/1988) (sobre a dogmaticidade do garantismo processual, v., p. ex.: GALLE, William Galle. Ciência jurídica e garantismo processual – 3ª parte. <https://cutt.ly/Dd4khLf>). Ou seja, uma teoria dogmático-constitucional sobre direito ao processo ou ao «devido processo legal» como um «direito de defesa ou de resistência» [Abwehrrecht] contra o Estado (cf. DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Se o processo é uma garantia de liberdade, ele é um direito de defesa. <https://cutt.ly/yp8dGuL>).
Entretanto, como alternativa ao sufixo «-ismo», a tradição morfológica da língua portuguesa oferece o sufixo «-ística». Em geral, ele pode desempenhar a função de «sufixo de ciência ou arte»: linguística, anglística, germanística, italianística, lusitanística, romanística, siglística, estilística, criminalística, estatística, balística, atomística, mística, ritualística, logística, heurística etc. (por todos, v. AREÁN-GARCÍA, Nilsa. -Ístico e -ística: definição morfológica. <https://cutt.ly/9d4heLc>). Por sua vez, no âmbito específico do direito, é comum o sufixo «-ística» ser empregado como um sufixo designativo de ciência dogmática: civilística [= ciência dogmática do direito civil], agrarística [= ciência dogmática do direito agrário], consumerística [= ciência dogmática do direito do consumidor], tributarística [= ciência dogmática do direito tributário], penalística [= ciência dogmática do direito penal], processualística [= ciência dogmática do direito processual], jurisdicionalística [= ciência dogmática do direito jurisdicional], procedimentalística [= ciência dogmática do direito procedimental], probatorística [= ciência dogmática do direito probatório], constitucionalística [= ciência dogmática do direito constitucional], jusinternacionalística [= ciência dogmática do direito internacional], juslaborística [= ciência dogmática do direito do trabalho], juscomercialística [= ciência dogmática do direito comercial], jusprivatística [= ciência dogmática do direito privado], jusfinancística [= ciência dogmática do direito financeiro], jusambientalística [= ciência dogmática do direito ambiental], jusadministrativística [= ciência dogmática do direito administrativo], jusurbanística [= ciência dogmática do direito urbanístico], etc. Como se nota, na formação de substantivos, «-ística» traz muito mais precisão semântica que «-ismo». Melhor: essa precisão é ainda maior quando se designam os ramos dogmáticos do direito. Se assim é, recomenda-se que a dogmática jurídica desenvolvida pelos garantistas seja renomeada pelo produto lexical da junção «garantia» + «-ística». É recomendável, enfim, que a expressão «garantismo processual» ceda lugar à expressão «garantística processual».
Contudo, garantística não é um termo novo. Dele já me utilizei alhures para me referir à dogmática constitucional das garantias, dogmática das garantias constitucionais ou dogmática das «limitações constitucionais ao poder político do Estado». A garantística é, nesse sentido, um sub-ramo, um capítulo ou uma fatia da constitucionalística (v. nosso Notas para uma garantística. <https://cutt.ly/2d4vOq7>). Daí por que existem: a) a ciência dogmática das garantias constitucionais contrajurislativas [= ciência das «limitações constitucionais ao poder de jurislar» = garantística contrajurislativa]; b) a ciência dogmática das garantias constitucionais contra-administrativas [= ciência das «limitações constitucionais ao poder de administrar» = garantística contra-administrativa]; c) a ciência dogmática das garantias constitucionais contrajurisdicionais [= ciência das «limitações constitucionais ao poder de judicar» = garantística contrajurisdicional]; d) a ciência dogmática das garantias constitucionais contraministeriais [= ciência das «limitações constitucionais à função do Ministério Público» = garantística contraministerial]; e) a ciência dogmática das garantias constitucionais contrarreformistas [= ciência das «limitações constitucionais ao poder de reformar a própria Constituição» = ciência das «limitações constitucionais ao poder constituinte derivado» = garantística contrarreformista] (obs.: delas todas, a garantística contraministerial é decerto a mais subdesenvolvida). Mas a garantística não é somente uma fração da constitucionalística. É muito mais do que isso. Na verdade, é o seu núcleo duro fundamental. É a fração mais importante. Se a essência do fenômeno constitucional é a limitação jurídico-normativa do poder político do Estado, então a essência da constitucionalística é a dogmática das garantias contraestatais in genere [= ciência das «limitações constitucionais ao poder político do Estado» = garantística contraestatal = garantística pure et simple]. A garantística é, portanto, a constitucionalística primeira. Primeira nos sentidos ordinal e hierárquico, visto que é a tarefa inaugural e principal de todo e qualquer constitucionalista.
No entanto, é possível adelgaçar ainda mais o estudo garantístico. a) Dentro da garantística contrajurislativa, é possível desenvolver ciências dogmáticas sobre cada uma das garantias constitucionais contrajurislativas («limitações constitucionais ao poder de tributar», «limitações constitucionais ao poder de punir», irretroatividade das leis, controle de constitucionalidade, razoabilidade, proporcionalidade). Por isso, pode haver, e. g.: uma garantística tributária ou contraexacional; uma garantística penal ou contrapunitiva; uma garantística da jurisdição constitucional. b) Já dentro da garantística contra-administrativa, é possível desenvolver ciências dogmáticas sobre cada uma das garantias constitucionais contra-administrativas (licitação, concurso público, legalidade, moralidade, publicidade, eficiência, impessoalidade, justa e prévia indenização à desapropriação etc.). Daí por que pode haver, e. g.: uma garantística da licitação ou garantística licitatória; uma garantística do concurso público ou garantística concursal; uma garantística contraexpropriatória. c) Da mesma maneira, dentro da garantística contrajurisdicional, é possível desenvolver ciências dogmáticas sobre cada uma das garantias constitucionais contrajurisdicionais (advocacia, processo ou «devido processual legal», contraditório, ampla defesa, imparcialidade, impartialidade, independência, juiz natural, motivação, presunção de inocência, duplo grau de jurisdição etc.). Por isso é possível haver, e. g.: uma garantística da advocacia ou garantística advocatícia; uma garantística da motivação ou garantística motivacional; uma garantística do processo, garantística do «devido processo legal» ou garantística processual. Pois, no plano jurídico-dogmático, o «garantismo processual» é exatamente isto: uma GARANTÍSTICA PROCESSUAL. A garantística processual é capítulo da garantística contrajurisdicional; a garantística contrajurisdicional é capítulo da garantística contraestatal, garantística geral ou simplesmente garantística; a garantística é capítulo da constitucionalística; logo, a garantística processual é constitucionalística superespecializada. Garantistas são constitucionalistas especializados no «devido processo legal».
Nada disso implica o descarte da expressão «garantismo processual». Ao contrário. Para ela se reserva um amplo e relevante espaço de significações. O garantismo processual está para a garantística processual assim como o constitucionalismo está para a constitucionalística. Constitucionalismo é o movimento sociopolítico que propugna a adoção da constituição como limite ao poder político do Estado; garantismo processual, o movimento sociopolítico que propugna a adoção do processo como limite ao poder jurisdicional. Nesse sentido, o movimento do garantismo processual pode fortalecer-se em estudos zetéticos sobre a garanticidade contrajurisdicional do processo e, com isso, corroborar a necessidade de se controlar a jurisdição por intermédio da processualidade. Esses estudos de apoio podem consistir, por exemplo, em uma: i) politologia ou ciência política (mostrando que as visões não garantistas decorrem de ideologias autoritárias intrusivas, que destoam da politicidade positivada no texto constitucional vigente); ii) sociologia (mostrando a que setores da sociedade interessa – ao arrepio da ordem constitucional vigente – bloquear a visão garantista); iii) antropologia (mostrando como os modelos não garantistas tangenciam modalidades tribais de justiçamento primitivo baseado em animalidades pré-civilizatórias); iv) psicologia comportamental cognitiva (mostrando que os modelos não garantistas enviesam sistematicamente a cognição dos juízes e, por conseguinte, atentam contra a exigência de imparcialidade); v) análise do discurso (mostrando como os textos não garantistas abordam estrategicamente a jurisdição como se ela fosse o próprio processo, disfarçando discursivamente como «teoria processual asséptica» uma verdadeira apologia ideológica do poder); vi) ontologia (mostrando que o «processo não garantista» é, na realidade, um não-processo, um sub-processo, um pseudo-processo, um modo privativo de processualidade, uma mera manifestação da jurisdição semi– , sub-, pseudo– ou des-controlada). Lutando contra a força do uso, aos poucos a disciplina terminológica se impõe: os garantistas zetéticos fazendo garantismo; os garantistas dogmáticos, garantística.