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77. PATRONO PÓSTUMO DA ESCOLA BRASILEIRA DE GARANTISMO PROCESSUAL

JOSÉ JOAQUIM CALMON DE PASSOS

  1. UMLEGÍTIMODEVANEIO. Dia desses me deixei levar pela sinuosidade de um certo devaneio que ao final do percurso mostrou-se legítimo. Meu pensamento e eu seguíamos ao estilo dos ébrios, que “guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem” [MACHADO DE ASSIS][1]. E de fato “caí”! Caí em mim e tomei a consciência de que entre os processualistas brasileiros que se firmaram antes de nós houve um que valentemente predicava e perorava a partir daquilo que hoje conhecemos por Garantismo Processual, desafiando com sua verve o establishment instrumentalista que aloca a jurisdição (=poder) como fundamento a priori do direito processual. Este [o processual-garantismo] “nascido” para o Brasil há dez anos. Aquele [o processualista predicador] nascido na Bahia há cem anos. Ora, “por que, então, não fazer de CALMON DE PASSOS o nosso Patrono, o patrono da Escola Brasileira de Garantismo Processual?”. E assim sintetizei o produto desse meu – repito – legítimo devaneio. Seja como for, os “porquês” desta proposição merecem ser apresentados de maneira mais detalhada. É o que passo a fazer.
  2. DEZ ANOS DEGARANTISMO PROCESSUALNO BRASIL. Foi no último trimestre de 2009 que foi publicado o texto “Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate”, na Revista MPMG Jurídico, uma publicação do Ministério Público de Minas Gerais[2]. À época, o dileto GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA era o Diretor do Centro de Estudos do MP de Minas Gerais e me pediu para escrever sobre o tema a partir de minha experiência junto à Universidade Nacional de Rosario (UNR-Argentina). Ali eu havia cursado mestrado em direito processual a convite de ADOLFO ALVARADO VELLOSO, durante os anos acadêmicos de 2008 e 2009. Foi ali que eu fui apresentado aos saberes relacionados ao Garantismo Processual. GREGÓRIO ASSAGRA gostou do meu texto e deu-lhe destaque na Revista, veiculando-o como “matéria especial” e divulgando-o a partir da capa daquele periódico. Não me lembro bem o mês em que a Revista MPMG Jurídico foi publicada. Mas por se referir ao último trimestre de 2009, o texto passou a ser conhecido e referenciado pela doutrina a partir de 2010. O escrito teve a virtude de introduzir a temática por aqui, cujo debate, até então, praticamente não existia. Ali apontei os antecedentes históricos e demonstrei as linhas gerais do que deve ser entendido por Garantismo Processual no ambiente da processualística em geral e da processual-civilística em especial. De modo geral a doutrina identifica neste texto o “despertar”, assim pode ser dito, para as questões complexas que envolvem o processual-garantismo[3]. Anote-se o detalhe: este texto cita CALMON DE PASSOS e já conexionava o seu pensamento com os fundamentos que são próprios aos saberes do Garantismo Processual. Seja como for, o fato é de que de lá para cá já se vão dez anos.

III. O DESENVOLVIMENTO DO GARANTISMO PROCESSUAL ENTRE NÓS: OBSTÁCULOS E [MUITOS] AVANÇOS. O hoje adepto confesso dos postulados do processual-garantismo, IGOR RAATZ também é um metódico investigador de acontecimentos históricos que ajudam na compreensão dos “porquês” de algumas concepções em torno do direito processual[4]. Recentemente IGOR fez uma interessante resenha dos antecedentes do Garantismo Processual no Brasil[5], a qual o leitor interessado deverá se abeberar para entender parcela expressiva do desenvolvimento dessa corrente de pensamento por aqui. Penso que também possa ser útil ao interessado dar uma vista d´olhos no texto que escrevi em homenagem à Professora EUGENIA ARIANO DEHO[6], da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP). EUGENIA é a maior referência do Garantismo Processual em seu país! Dentre outras abordagens, ali também tratei de resenhar o desenvolvimento histórico do processual-garantismo entre nós.

No início da jornada sujeitei-me, em carreira solo, a tratar de temas garantistas por aqui. Em escritos, palestras, aulas de graduação e pós-graduação eu me esmerava em falar sobre como deveríamos pensar e raciocinar sobre as coisas do “processo” civil a partir do que propõe o Garantismo Processual. Percebia que era como se eu estivesse falando num idioma desconhecido, além de áspero em sonoridade aos ouvidos. Falar que o “juiz da urgência não poderia ser o mesmo juiz da sentença”, ou que os “poderes instrutórios do juiz”, tal como legislado no CPC, por exemplo, “feria de morte a estrutura do PROCESSO conforme está disposto na Constituição”, era praticamente uma heresia. Falar que o nosso procedimento, civil ou penal, pouco importa, amesquinhava a garantia do devido processo legal, soava “ofensivo” às mentes formadas sob os aspectos teóricos-dogmático da instrumentalidade do processo, onde prepondera a jurisdição “redentora” e “ativista”, apta a fazer com que o Estado leviatânico atinja “escopos” sociais, jurídicos, políticos. Enfim, um Judiciário que por intermédio de seus juízes estabeleça um padrão de conduta moral a esta sociedade “falha” e “desigual” em que vivemos.  Tudo muito “lindo”, claro, mas de baixa densidade jurídica, até mesmo porque a nossa Constituição não confere um “cheque em branco” para que o juiz faça da jurisdição a varinha mágica que transforma o “errado”, sob o seu ponto de vista, no “certo”, sob a sua macrocósmica visão de mundo.

Lembro-me, certa feita, de uma aula que eu ministrava num curso de pós-graduação em “processo civil” em São Paulo, capital, numa manhã qualquer de 2010. Eu falava sobre tutelas de urgência. Lembro-me que os alunos não se conformavam com a minha explicação de que a “liminar” deferida inaudita altera parte desafia a garantia constitucional do devido processo (art. 5º, inc. LIV), já que permite um ato de poder sem a concretização prévia do contraditório (art. 5º, inc. LV) que, ao lado da ampla defesa, estruturam a “plataforma de trabalho” a que chamamos de processo, que implica garantia. Esbocei o raciocínio de que as “liminares” concedidas inaudita altera parte aproximam o ato do juiz à estrutura jurídica que é própria do ato administrativo (=presunção de legalidade e auto-executoriedade). Apesar de “ato judicial”, já que proferido por juiz, não seria um ato processual jurisdicional, que somente pode ser exarado onde haja processo, que somente existirá quando houver contraditório e ampla defesa prévios ao respectivo ato processual jurisdicional. Não fui compreendido e fui “acusado” de não me preocupar com a “justiça” do caso concreto. Lembro-me que uma aluna, já senhora, que sentava na primeira fileira, certamente uns 15, 20 anos mais madura do que eu à época, uma senhora expansiva e comunicativa que afirmava ser mestre em direito constitucional, não teve dúvida em me interpelar dizendo: “parece que você recortou o devido processo legal da Constituição e se esqueceu que nela há outros ‘princípios’ igualmente previstos”… Ainda me lembro de suas mãos no ar fazendo as vezes de uma tesoura, em alusão ao “recorte” no texto constitucional do qual me acusava. Não passou uma semana e o então coordenador do respectivo curso, um famoso e talentoso professor de cursos preparatórios para as carreiras jurídicas, que anos antes esteve ao meu lado como coautor de certo livro sobre a nossa disciplina, telefonou-me para dizer que eu não precisaria mais voltar para as aulas que já estavam programadas para mim. Disse-me ele, com o cuidado protocolar que se deve ter nessas situações, que por algum motivo aqueles alunos não me queriam mais ensinando-lhes processo civil no curso de pós-graduação. Confesso até que não achei ruim, já que isso me pouparia de ter que sair de Jundiaí para enfrentar o [quase] sempre caótico tráfego da cidade de São Paulo.

Diz um ditado popular que “quem tem amigo não morre pagão”. Ou como diria minha preciosa nonna VITÓRIA FERRACINI GUMERATO, com dizeres ainda mais impactantes, “eu não sou defunto sem choro!”. Pois bem. Os amigos realmente não nos deixam naufragar. Dentre os vários que fiz nessas idas e vindas por conta do processo civil está LÚCIO DELFINO. Aliás, Lúcio e FERNANDO ROSSI, figuras de especial relevo em minha trajetória acadêmica, na minha e de muitos.

No primeiro semestre de 2007 eu já tinha conquistado algum reconhecimento por força do livro Reforma do CPC, publicado pela Editora Revista dos Tribunais em 2006, e escrito em coautoria com DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, RODRIGO DA CUNHA LIMA FREIRE e RODRIGO MAZZEI. Era uma época em que se falava muito do código em razão das recentes alterações. Em meados deste primeiro semestre de 2007 o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) organizou uma rodada de palestra sobre atualidades do CPC pós-Reforma, no Iate Clube de Brasília. Ali estive como ouvinte. Ao término do evento, acercaram-se de mim dois tipos jovens, que pelo sotaque logo me atentei tratar-se de gente de Minas Gerais. Ambos, por sinal, muito gentis no trato, “boas-praças” natos! Disseram-me que ao lado do Professor JOÃO D´AMICO estavam organizando a primeira edição de um congresso que seria realizado na cidade deles, Uberaba, no segundo semestre daquele ano, por volta de setembro. Perguntaram-me se eu teria interesse em ir para palestrar etc. Diziam que eu seria muito bem recebido e que a ideia deles era que os convidados “se sentissem em casa”. A dupla era LÚCIO DELFINO e FERNANDO ROSSI. Desse dia em diante nos tornamos amigos. E como de fato é verdade que “quem tem amigo não morre pagão”, LÚCIO, FERNANDO e o Professor JOÃO D´AMICO abriram as portas do já tradicional Congresso de Direito Processual de Uberaba para que eu pudesse falar sobre Garantismo Processual com base  naquilo que eu vinha estudando e observando a partir de minha estada na Universidade Nacional de Rosario (UNR). Fizeram mais! Permitiram e viabilizaram – com dinheiro, claro – que eu convidasse professores estrangeiros que estão na cimeira do pensamento processual-garantista no ambiente hispano-parlante. Basta dizer que no Congresso de Direito Processual de Uberaba já estiveram presentes, por exemplo, ADOLFO ALVARADO VELLOSO (Argentina, Rosario), JUAN MONTERO AROCA (Espanha, Valência), HUGO BOTTO OAKLEY (Chile, Vinã del Mar), GUSTAVO CALVINHO (Argentina, Buenos Aires), GUIDO AGUILA (Peru, Lima). LÚCIO e FERNANDO também viabilizaram que a Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) viesse a se tornar o veículo oficial de publicação do Instituto Pan-americano de Direito Processual (IPDP) aqui no Brasil. E o IPDP, vale destacar, difunde os postulados do Garantismo Processual pela América Latina. Em suma, nesse panorama propiciado pela atmosfera jurídico-intelectual de Uberaba, epicentro daquilo que passou para a história pós CPC-73 como a “Escola Processual do Triângulo Mineiro”, é que começou a crescer e a florescer o Garantismo Processual entre nós. Sem embargo, importante destacar que por aquelas bandas o “processo”, até então, era visto como um potencializador do poder (=jurisdição), e não como garantia contra ele.

Nessa mesma atmosfera de Uberaba e de seu Congresso de Direito Processual, um outro amigo tinha lugar, EDUARDO JOSÉ DA FONSECA COSTA. Ao lado do Professor HUMBERTO THEODORO JR, Eduardo e eu jactamo-nos por sermos, até o momento, as únicas três pessoas que palestraram em todas as doze edições do Congresso de Uberaba. Tal como acontecera com LÚCIO DELFINO, de início EDUARDO COSTA também não se convencera com o discurso processual-garantista com o qual eu lhes tentava persuadir. O desafio ainda era maior porque EDUARDO é magistrado, juiz federal de carreira, e ainda por cima egresso da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde reinam soberanos os postulados favoráveis à instrumentalidade do processo. Tal como a maioria daqueles que “nos julgam”, EDUARDO também era caudatário da compreensão pragmática que coloca a jurisdição no centro do fenômeno processual para, a partir dela, viabilizar uma espécie de jusmoralismo “corretor” das pessoas e da sociedade por meio do Poder Judiciário. Apesar disso, após algum tempo de percuciente reflexão, não tardou para que EDUARDO compreendesse que o Garantismo Processual viabiliza os fundamentos que melhor permitem entender e operar o processo jurisdicional a partir daquilo que ele é, uma instituição de garantia contrajurisdicional, conforme ele mesmo veio a escrever posteriormente. EDUARDO não parou por aí e segue produzindo textos primorosos para compreensão epistemológica do processual-garantismo.

Fiz este breve e – para mim – emotivo relato para dizer que sem o Congresso de Uberaba, sem a amizade de LÚCIO DELFINO, FERNANDO ROSSI e EDUARDO COSTA, e sem alguns outros notáveis estudiosos brasileiros com os quais passamos a conviver, o Garantismo Processual por aqui não teria avançado nestes últimos dez anos e, por isso, jamais seria possível enlaçar este fato aos cem anos de nascimento de CALMON DE PASSOS.

  1. O QUE PODE SER ENTENDIDO PORESCOLA BRASILEIRA DE GARANTISMO PROCESSUAL.Na relação havida entre sujeito cognoscente e o objeto cognoscível há o pensamento que os conexiona, racional e empiricamente. O produto natural da interface destes três elementos será o conhecimentoconhecimento refletido, amadurecido, bem elaborado, enfim, culto, forma os saberes epistemológicos (=científicos) que atraem os espíritos nascidos com essa vocação. Quanto mais especifico o conhecimento sobre um determinado saber humano, maior será a possibilidade de que mentes com visão assemelhadas sobre aquele saber sejam atraídas, fazendo-se com que espíritos até então errantes se aproximem e passem a compartilhar daquele conhecimento específico. Havendo pluralidade de mentes compartilhando e (re)produzindo mais conhecimento sobre aquele específico saber epistemológico, abre-se espaço para o florescer daquilo que se pode chamar de escola de pensamento. Os sujeitos que se põem a refletir sobre os temas ali tratados, o fazem por que se identificam com a essência do respectivo conhecimento, ainda que possam existir certos acidentes discursivos (=peculiaridades) que de nenhum modo alteram a substância do pensamento reverberado pelos que estão conectados ao conhecimento da respectiva escola. Pode-se identificar uma escola de pensamento a partir de alguns dados objetivos que são observados nos discursos prescritivos e/ou descritivos sobre o conteúdo por ali propagado: [i] limitação do objeto do conhecimento, [ii] identidade ideológica relacionada à função-finalidade do objeto, [iii] termos linguísticos dotados de significado próprio, [iv] confrontação analítica com pensamentos opostos; [v] convergência dos pontos de vista dos pensantes; [vi] existência de um canal de veiculação do conhecimento produzido com base nos critérios “i” a “v”. 

Passa o mesmo com os vários saberes que habitam o mundo do Direito, cujo conhecimento daí gerado submete-se aos domínios epistêmicos próprios das ciências culturais. Em miúdos: o Direito não tem existência tangível. O Direito “não é animal, nem vegetal, nem mineral, não é encontrado em estado sólido, nem no líquido, nem no gasoso, é desprovido de estrutura atômica ou molecular” [CALMON DE PASSOS][7]. Logo, é algo que não “existe”, a não ser como produto cultural do homem a partir de sua característica existencial pró gregariedade. Nem mesmo quando as autoridades competentes impõem o Direito por sobre a esfera de liberdade de alguém ele chega a “existir”. O que se tem aí é coerção decorrente do poder. Em suma, é possível que se identifique uma escola de pensamento dentro do universo em que estão dispostos os vários saberes jurídicos sobre os quais nos propomos a refletir.

Não tenho dúvida de que atualmente existe entre nós uma escola de pensamento que recepciona os saberes próprios do Garantismo Processual. É uma escola onde se observa, sem qualquer dificuldade, os critérios apontados agora pouco em [i] a [vi]supra. Note-se:

(1) quanto à “limitação do objeto”, tenha-se presente que os pensantes dessa escola estudam o fenômeno processual dentro da perspectiva do Garantismo Processual. Logo, o critério apontado em [i] se observa;

(2) quanto à “identidade ideológica relacionada à função-finalidade do objeto”, tenha-se presente que os pensantes dessa escola entendem que a função-finalidade do Garantismo Processual é reposicionar o fenômeno processual a partir do conteúdo garantístico estabelecido na Constituição e nas Convenções Internacionais que vigoram no país. Logo, o critério apontado em [ii] se observa;    

(3) quanto a “termos linguísticos dotados de significado própriotenha-se presente que os pensantes dessa escola estão se valendo de termos e expressões que, supondo-se mais precisos, procuram explicar as estruturas de funcionamento do fenômeno processual. Logo, o critério apontado em [iii] se observa;

(4) quanto à “confrontação analítica com pensamentos opostostenha-se presente que os pensantes dessa escola estão produzindo textos que, elegantemente, desafiam os conteúdos de pensamentos opostos que potencializam o arbítrio em detrimento de garantias processuais explicitas. Logo, o critério apontado em [iv] se observa;

(5) quanto à “convergência dos pontos de vista dos pensantestenha-se presente que os integrantes dessa escola produzem escritos que, rigorosamente, apontam para um mesmo sentido. Analisando-os, constata-se uma coincidência teórica nas ideias e conclusões apresentadas. Logo, o critério apontado em [v] se observa;

(6) quanto à “existência de um canal de veiculação do conhecimento produzidotenha-se presente que os pensantes dessa escola fazem escoar o produto de suas reflexões por uma plataforma de trabalho localizada na web, um famoso site jurídico, além de outras plataformas físicas. Desnecessário dizer o alcance obtido pelas veiculações feitas por intermédio da rede mundial de computadores. Logo, o critério apontado em [vi] se observa.

Todo o saber que vem sendo produzido no Brasil a partir do Garantismo Processual, quando dimensionado na perspectiva do que acima acaba de ser dito, é facilmente identificado como sendo um saber gerado a partir de uma escola de pensamento. Eis aí a Escola Brasileira de Garantismo Processual!

Como qualquer escola de pensamento, a Escola Brasileira de Garantismo Processual é formada por sujeitos pensantes e por ideias axiais. São os sujeitos e as ideias que movem e aprimoram o conhecimento!

A partir da Coluna Garantismo Processual, hospedada no importante site Empório do Direito, reúnem-se os sujeitos pensantes da Escola Brasileira de Garantismo Processual. Existindo desde 18 de fevereiro de 2019, e coordenada por EDUARDO COSTA e ANTÔNIO CARVALHO FILHO, a Coluna Garantismo Processual semanalmente apresenta ao público os escritos produzidos pelos respectivos pensantes a partir dos postulados que compõem essa área do saber jurídico. É claro que os colaboradores da respectiva Coluna não são os únicos garantistas da processualística nacional, evidentemente. Mas muito do conhecimento garantístico que no país se produz decorre dos fundamentos que são disponibilizados a cada sete dias nesta Coluna da página do Empório do Direito, que invariavelmente representa as colunas virtuais que sustentam a Escola Brasileira de Garantismo Processual. Até agosto corrente eram onze os colaboradores fixos da Coluna. Recentemente incorporou-se mais um. Outros processualistas adeptos do Garantismo Processual ali também colaboram esporadicamente. Todos professores de direito processual. Vejamos os seus nomes, indicando-lhes as respectivas atuações práticas:

– colaboradores fixos: ANTÔNIO CARVALHO FILHO (magistrado), DIEGO CREVELIN (advogado), EDUARDO COSTA (magistrado), GLAUCO GUMERATO RAMOS (advogado), IGOR RAATZ (advogado), JÚLIO CÉSAR ROSSI (advogado da união), LUCIANA BENASSI (magistrada), LÚCIO DELFINO (advogado), MARCO PAULO DENUCCI DI SPIRITO (defensor público)  MATEUS COSTA PEREIRA (advogado), NATASCHA SILVA ANCHIETA (advogada), WILLIAM GALLE DIETRICH (advogado).

– colaboraram eventualmente: ADRIANA PEGINI (advogada), ALEXANDRE DE PAULA FILHO (advogado), ÁLVARO CASTILLO (Peru, aluno graduação) ANDRÉ LUIZ MALUF DE ARAÚJO (advogado, ex-juiz TRE-MS), AUGUSTO PASSAMANI  BUFULIN (magistrado), EVIE NOGUERIA E MALAFAIA (advogada), FERMÍN CANTEROS (Paraguai, advogado), RENZO CAVANI (Peru, advogado), RAFAEL GIORIGIO DELLA BARBA (advogado).

O estudioso ou curioso que pretenda conhecer os fundamentos axiais do processual-garantismo, partindo do que vem sendo produzido nos últimos dez anos aqui no país, vai se deparar com um discurso jurídico epistemologicamente coerente. As pequenas variações notadas em certas peculiaridades acidentais, subproduto do estilo discursivo específico e personalíssimo de cada um dos respectivos sujeitos pensantes, em nada afeta a essência do conhecimento produzido sobre tão relevante temática do saber jurídico. Em análise retrospectiva, é possível constatar que esse encadeamento histórico demonstra que os últimos dois lustros consolidaram a primeira década de um ambiente de reflexão e aprimoramento em torno de uma temática. Desse ambiente de constante movimentosegue emergindo o produto resultante da atividade realizada por uma escola de pensamento. Tal escola propõe-se a estudar o macro fenômeno jurídico-constitucional que comumente chamamos de “PROCESSO”, por uma perspectiva cognoscível externa interna toda própria. Na perspectiva cognoscível externa, mira-se o PROCESSO constitucionalmente, concebendo-o como garantia contrajurisdicional [EDUARDO COSTA]. Na perspectiva cognoscível interna procede-se, naturalmente, da mesma forma, projetando-se, porém, sua vocação garantística por sobre a procedimentalidade infraconstitucionalmente estabelecida pelo legislador ordinário. E se temos uma escola de pensamento por aqui, que expressamente revela todas estas características, nada impede que a chamemos de Escola Brasileira de Garantismo Processual.

  1. V. CEM ANOS DE NASCIMENTO DE CALMON DE PASSOS.No último dia 16 de maio José Joaquim CALMON DE PASSOS teria completado cem anos de idade. Este 2020, portanto, é o ano do centenário de nascimento destejurista-processualista-humanista que nos provoca uma inefável lembrança. Não o conheci pessoalmente, mas tenho bem presente a sua ereta figura em minha tela mental, graças aos vários vídeos feitos de suas mágicas palestras, disponíveis na web. Nessa correlação entre os dez anos de Garantismo Processual no Brasil e o centenário de CALMON, ainda há outros elementos que penso oportuno sejam rememorados.

A ano era 2008. Entre 19 e 21 de agosto daquele ano estive na Universidad de Cali, na Colômbia, para participar das XXI Jornadas Panamericanas de Derecho Procesal, evento oficial do IPDP.  À época era diretor da respectiva Faculdade de Direito meu dileto amigo LEONÍDAS PINO CAÑARVERAL, que um mês depois tornou-se meu companheiro na Cohorte 11, do mestrado em direito processual na Universidade Nacional de Rosario (UNR). Estive ali para ser incorporado como membro do Instituto Pan-americano de Direito Processual (IPDP), após ter sido indicado pelos professores MARCOS AFONSO BORGES e FLÁVIO BUONADUCE BORGES, e pelo Min. CASTRO FILHO. Por algum motivo de força maior, nenhum dos três pôde estar presente. Eram eles que conheciam todos por lá, não eu. O fato é que ao me apresentar perante a assembleia que iria votar meu nome para ingresso no IPDP, tive a iniciativa de pedir para palestrar, de modo que o Brasil não ficasse sem fala no evento. Deliberaram positivamente pelo meu ingresso no Instituto e me autorizaram a ser palestrante. Foi nessa ocasião em que meu venerável mestre ADOLFO ALVARADO VELLOSO, que ali não me conhecia, convidou-me para cursar o mestrado por ele dirigido na UNR. Jamais me esqueço que, para me persuadir, ALVARADO VELLOSO foi enfático. Disse-me que ao aceitar o seu convite “eu estaria dando um passo que mudaria a minha vida”. Resolvi aceitar. Muita coisa realmente mudou em minha percepção sobre o processo jurisdicional de lá para cá. A conferência de encerramento das Jornadas de Cali ficou a cargo do ilustre processualista colombiano JAIRO PARRA QUIJANO, que à época era o presidente do Instituto Ibero-americano de Direito Processual (IIDP). O alinhamento de astros estava-me favorável e eu não hesitei em acercar-me de JAIRO PARRA para dizer-lhe que eu gostaria de ingressar no IIDP. Deixei-lhe meu currículo Lattes em mãos, trocamos cartões, e ele me disse que logo sua secretária faria contato comigo por e-mail para ajustar os detalhes. Sem embargo, disse-me que antes teria que consultar outros membros brasileiros ligados ao Instituto Ibero-americano.

Nesse agitado 2008 voltei de Cali no final de agosto e em menos de duas semanas, já em setembro, embarquei para Buenos Aires e de lá para Rosario, para cursar mestrado em direito processual na esplendorosa Faculdade de Direito da UNR. Por essa época recebi e-mail da assessoria de JAIRO PARRA informando-me que eu deveria estar na Universidad de Lima, no Peru, em outubro. Ali teria lugar, entre os dias 16 e 18, as XXI Jornadas Iberoamericanas de Derecho Procesal, o congresso oficial do IIDP. Seria lá, durante a assembleia geral, que meu nome seria votado para incorporação no Instituto. Lá estive. Na ocasião JAIRO PARRA foi substituído na presidência do Instituto Ibero-americano pelo processualista chileno RAÚL TAVOLARI OLIVEROS, destacado professor da Universidad de Chile e um dos autores da reforma do processo penal naquele país nos anos noventa. Durante a assembleia, à mesa diretiva do Instituto tinha assento a professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, que sempre foi muito influente naquela agremiação. Tudo passou bem e meu nome foi aprovado. Outros brasileiros também estavam naquele congresso. Lembro-me que fui para Lima acompanhado por dois queridos amigos, LUIZ EDUARDO RIBEIRO MOURÃO[8], à época assistente do professor DONALDO ARMELIN no mestrado/doutorado da PUC-SP, e PAULO LEONARDO VILELA CARDOSO, conhecido comercialista, aliás, também de Uberaba. Digno de nota é o fato de que PAULO LEONARDO, o “pai intelectual” da lei que criou a figura societária da EIRELI no Brasil[9], trouxe a ideia de lá, após conversar com um processualista português, que também estava no congresso, e que era advogado comercialista em Lisboa, mas isso já é outra história. Dentre os brasileiros que participavam desse congresso em Lima, além da professora ADA lembro-me dos professores HUMBERTO THEODORO JR.. ERNANE FIDELIS DOS SANTOS, PETRÕNIO CALMON, LUIZ GUILHERME MARINONI, FREDIE DIDIER, HERMES ZANETTI. No dia 18, último dia do congresso, notei a falta de FREDIE. Havia chegado a notícia do falecimento de CALMON DE PASSOS e seu conterrâneo aprontou as malas e retornou ao Brasil para tentar chegar a Salvador para o momento de despedida.

Chegamos então em 2020 e no centenário dessa inefável figura do mundo jurídico brasileiro que foi CALMON DE PASSOS. Alguns eventos foram feitos em sua homenagem. Um deles foi o Congresso Centenário Calmon de Passos, realizado nos dias 09, 10 e 11 de julho virtualmente, pois já convivíamos sob o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. Sob a organização da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP), processualistas de vários cantos do país ali palestraram e as respectivas falas foram gravadas em vídeo e são facilmente localizadas na internet. Devo dizer que assisti várias delas e me decepcionei ao observar o descompasso conteudístico dos discursos dos expositores com o pensamento libertário e processual-garantístico de CALMON. É claro que todos os expositores, sem exceção, iniciaram suas falas enaltecendo o brilho e a história do homenageado. Mas poucos, pouquíssimos, discursaram alinhados com o pensamento crítico de CALMON DE PASSOS às posturas legitimadas pela dinâmica da instrumentalidade do processo, que via de regra potencializa a jurisdição (=poder) e apequena as garantias processuais dos sujeitos que se veem enredados na cena processual. Mas, “justiça seja feita”, houve uma dentre as várias exposições a que tive acesso, que definitivamente honrou a memória contra-autoritária do processualista que estava sendo homenageado. Refiro-me à fala do estimado JALDEMIRO RODRIGUES DE ATAÍDE JR, ilustre professor e advogado no Estado da Paraíba. MIRO, como carinhosamente o chamamos, na noite de 09 de julho evocou o GARANTISMO PROCESSUAL que marcara a trajetória intelectual de CALMON DE PASSOS. Todos aqueles que leram CALMON, notadamente em sua obra ensaística, e fundamentalmente em seu livro-testamento Direito, Poder, Justiça e Processo – Julgando os que nos julgam, sem dificuldade verificam que o pensamento do processualista baiano é rigorosamente afinado com o que hoje conhecemos por processual-garantismo. É evidente que em sua época CALMON não chegou a ser considerado um “garantista”, e isso pelo simples fato de que por aqui o Garantismo Processual ainda não era difundido. E mais. Note-se que CALMON DE PASSOS, ano após ano, foi uma voz isolada reverberando uma forma de se conceber o processo jurisdicional que se opunha frontalmente ao discurso oficial instrumentalista, viabilizador do perverso ativismo judicial que lamentavelmente se observa em todas as instâncias do poder judiciário. Em suma, CALMON DE PASSOS precedeu-nos a todos na prédica processual-garantista. Logo, sua conexão com o saber difundido desde o Garantismo Processual é um dado objetivo que não temos o direito de ignorar.

  1. FECHAMENTO.Penso tenha cumprido a minha tarefa de explicar os “porquês” que José Joaquim CALMON DE PASSOS deve ser considerado oPatrono póstumo da Escola Brasileira de Garantismo Processual. O garantismo que hoje é coletivamente cultivado no Brasil, outrora foi individualmente reverberado pelo intelectualmente imorrível ex-professor titular da UFBA, ainda que com outras palavras. Se vivo fosse, CALMON seria declarado nosso Patrono. Como entre nós ele já não mais está, será postumamente guindado a este posto. Com isso, mais do que homenagear e reverenciar a memória de CALMON DE PASSOS, somos nós, os processuais-garantistas brasileiros, que estamos sendo brindados por sua etérea companhia entremeando o conhecimento que vem sendo gerado pela escola de pensamento que cultiva o saber proposto pelo Garantismo Processual.

Será nosso dever, nos próximos cem anos, fazermos com que o legado intelectual de CALMON DE PASSOS permaneça presente em nossos espíritos.

 

[1] Em Memórias póstumas de Brás Cubas, cap. 71, “O senão do livro”.

[2] Cf. “Ativismo e Garantismo no processo civil: apresentação do debate”, publicado originalmente na Revista MPMG Jurídico, nº 18, out/nov/dez de 2009, pp. 8-15, publicação oficial do Centro de Estudos do Ministério Público do Estado Minas Gerais. Posteriormente o texto foi publicado em outras revistas jurídicas especializadas e em algumas coletâneas. Também foi traduzido ao espanhol e publicado em outras localidades da América hispano-parlante.

[3] Para confirmar que afirmo, no sentido de que a doutrina brasileira identifica este meu texto como tendo introduzido a temática entre nós, cf., v.g., HENRIQUE ARAÚJO COSTA e ALEXANDRE ARAÚJO COSTA, “Os testamentos ignorados de Ovídio Baptista e Calmon de Passos”, em Revista de Processo (RePro) 192/419, fev-2011. JEFFERSON CARÚS GUEDES, “Direito processual de grupos sociais atual: entre o ativismo judicial e o garantismo processual”, Revista Brasileira de Políticas Públicas, UniCEUB, vol. 6, º 1, jan-jul/2016. AMANDA LOBÃO TORRES, Garantismo, Ativismo e Cooperação e(m) crise, 2016, p. 115, dissertação de mestrado perante a PUC-SP, em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/19413/2/Amanda%20Lob%C3%A3o%20Torres.pdf. IGOR RAATZ, “A resistência instrumentalista e o surgimento da doutrina brasileira do garantismo processual: uma breve análise em dois atos”, no site  Empório do Direito, em: https://emporiododireito.com.br/leitura/28-a-resistencia-instrumentalista-e-o-surgimento-da-doutrina-brasileira-do-garantismo-processual-uma-breve-analise-em-dois-atos. DIEGO CREVELIN DE SOUSA, em “Poderes do juiz, ônus da prova e Garantismo Processual”, palestra proferida no I Colóquio Internacional de Processo de Jundiaí, em agosto de 2017, cf. em: https://www.youtube.com/watch?v=6q9Ti7ZehcM. MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA, “Um debate com adeptos do Garantismo Processual”, tb. no site  Empório do Direito, em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-93-um-debate-com-adeptos-do-garantismo-processual.

[4] A título de destaque, vale conferir o texto “Um outro Liebman?”, onde IGOR e NATASCHA ANCHIETA procuram demonstrar que o processualista italiano, que tanta influência teve na dogmática processual brasileira, tinha preocupações que, hoje, podem ser identificadas com alguns postulados garantistas. Cf. em https://emporiododireito.com.br/leitura/69-um-outro-liebman.

[5] O texto já foi referenciado na nota 3, supra, mas faço questão de indicá-lo novamente, desta vez negritando-o: “A resistência instrumentalista e o surgimento da doutrina brasileira do garantismo processual: uma breve análise em dois atos”, no site jurídico Empório do Direito, em sua Coluna Garantismo Processual.

[6] Publicado em 25 de maio de 2020 na Coluna Garantismo Processual do site Empório do Direito, sob o título “¡Ho me leo y no me reconozco! ‘Batalhas de EUGENIA’ pelo Garantismo Processual”, em: https://emporiododireito.com.br/leitura/63-hoy-me-leo-y-no-me-reconozco-batalhas-de-eugenia-pelo-garantismo-processual

[7] Cf. em Direito, poder, justiça e processo – Julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, 2ª tiragem, p. 24,

[8] Autor da importe obra Coisa julgada, Bolo Horizonte: Ed. Fórum, 2006.

[9] Cf. o seu O empresário de responsabilidade limitada, São Paulo: Ed. Saraiva, 2012.

Autor

  • Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Ibero-americano (IIDP) e Pan-americano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito Padre Anchieta de Jundiaí (FADIPA). Diretor de Relações Internacionais da ABDPro. Presidente para o Brasil do IPDP. Advogado em JUNDIAÍ.

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