- Introdução
Quando qualquer pessoa enfrenta um problema jurídico, pode fazê-lo sob variados impulsos, de forma que sua abordagem resultará em conclusões distintas, a depender do método e da área em jogo. Isso porque o fenômeno jurídico é complexo e os juristas são limitados em suas abordagens. Como referenciou André Coelho, é o típico caso dos cegos e o elefante (ver aqui, a partir dos 50min10s), no qual cada cego, ao avaliar um elefante, tem uma impressão bastante distinta do outro: aquele que apalpa a tromba vê um animal bastante distinto daquele que apalpa as pernas.
Pegue-se qualquer questão envolvendo, por exemplo, o direito de propriedade: um sociólogo apresentará ponto de vista distinto de um jurista ao observar a questão. Dentro do espectro daquilo que é considerado Ciência Jurídica, um teórico do direito usará abordagem distinta de um doutrinador e così avanti. É permitido concluir, assim, que o elefante apresenta várias características que dependem dos cegos que o observam, sem que isso acarrete em um relativismo epistemológico.
No Brasil essa discussão é bastante prejudicada, uma vez que não é incomum o trânsito sob distintas metodologias, abordagens e áreas do conhecimento, dentro do mesmo texto. Ou seja, um parágrafo observa a questão sob a perspectiva dogmática para, em algumas linhas depois, tratar de lançar um olhar sociológico e, em seguida, fazer considerações sobre a filosofia política, etc. O problema não está no uso dos recursos metodológicos distintos no mesmo texto (muitas vezes eles são até mesmo necessários), mas na forma desordenada com que isso ocorre. Essa desorganização acaba, na maioria das vezes, prejudicando a cientificidade daquilo que foi escrito.
Mas, então, o que faz com que um texto seja passível de receber o adjetivo de científico? O que é Ciência Jurídica? Ciência e dogmática são sinônimos?
Com base nessas perguntas, este breve ensaio tratará de introduzir o debate e expor os elementos iniciais desse complexo problema. Isso será desenvolvido através de três textos e, dada a densidade do tema, todos com pretensão meramente introdutória: este primeiro, tratando das diferenciações entre teoria, dogmática e práxis; um segundo, para tratar especificamente, e com maior vagar, sobre a dogmática e sua “cientificidade” (Wissenschaftlichkeit); e por fim, um terceiro, que com as bases introdutórias já lançadas buscará analisar como a questão está posta no direito processual brasileiro, vale dizer, buscar-se-á apontar como essa ausência de rigor metodológico aflige especificamente a Ciência processual no Brasil.
Em termos de perguntas, este primeiro texto procurará responder “o que é Ciência Jurídica?”; o segundo, “a dogmática/doutrina é ciência?” e, por fim; o terceiro, “sob qual perspectiva trabalha parcela dos autores no direito processual brasileiro?”.
- O que é Ciência Jurídica?
É bastante comum a utilização do “argumento científico” para afastar determinadas posições. Em debates públicos o argumento vencedor é quase sempre aquele que tem “evidência” ou “comprovação” científica, quando, muitas das vezes, aquilo que está em discussão não é um problema da ciência tomada em sentido estrito. No direito, em específico, se alguém eventualmente desqualificar um texto alheio por “não ser científico”, deverá, antes de qualquer coisa, demonstrar quais os critérios que um argumento deve preencher para ser qualificado como tal, sob pena de que a desqualificação seja considerada apenas um estratagema para fugir do debate.
Então, o que é Ciência Jurídica? Ou: o que confere o caráter científico a uma disciplina que tem como seu objeto o direito?
Com efeito, existem muitas propostas de divisão sobre as áreas de conhecimento envolvendo aquilo que se pode denominar de “Ciência Jurídica”. Geralmente tal divisão é feita de maneira tricotômica, ressalvada alguma divergência pontual entre os autores. Adota-se aqui a nomenclatura que foi cunhada por Matthias Jestaedt, que faz a divisão entre práxis, dogmática e teoria do direito[1].
2.1. A práxis jurídica
A primeira delas é o objeto de estudo: trata-se da práxis – o direito mesmo. Tal área envolve o material bruto que é produto do trabalho dos operadores do direito. Trata-se do material linguístico “das autoridades reguladoras (os pais constituintes, o legislador, as autoridades reguladoras), isto é, um conjunto de textos ou documentos normativos (leis, constituição, regulamentos)“[2]. Esse é o único âmbito, segundo a distinção de Jestaedt, em que a criação jurídica ocorre.
Embora Jestaedt considere que a práxis seja apenas o objeto da dogmática e da teoria, existem autores que utilizam o termo para designar, também, aquela espécie de estudo voltada exclusivamente a descrever o que ocorre na práxis[3]. No Brasil, por exemplo, seria possível dizer que o autor que escreve livros para concursos, buscando explicar como o direito é na sua prática cotidiana, estaria fazendo um trabalho de práxis. Dito de outra forma: há, nesse ponto, algumas divergências pontuais entre os autores: alguns compreendem-na como exclusivamente objeto, outros, além de objeto, como uma parte do estudo mesmo com uma função específica.
O conhecimento da práxis é conditio sine qua non para a dogmática. É o seu próprio fenômeno/objeto do estudo, assim como uma doença cardiovascular é objeto de estudo de um setor específico da medicina, que procura encontrar a cura para aquele problema.
2.2. A dogmática jurídica
A dogmática (tratada aqui como equivalente à doutrina) é um trabalho interpretativo e construtivo, que visa a observar esse material de direito positivo, chamado de práxis, de forma complementar e com fins de orientação. Fá-lo, ainda, com observância a eventuais contribuições da teoria, filosofia, etc. Ou seja, a dogmática procura ler os problemas cotidianos e oferecer respostas de sententia ferenda[4] – respostas de como interpretar o material normativo (Constituição, leis, regulamentos, etc.) que já existe. A dogmática observará problemas concretos, tais como, por exemplo, “como se interpreta o art. 1.015 do CPC? trata-se de rol taxativo ou exemplificativo?”, e buscará oferecer respostas – geralmente únicas – para tais questões.
Com efeito, considerando que o direito positivo geralmente deixa lacunas – deixando espaço para a discricionariedade – e questões interpretativas em aberto (porque indeterminadas)[5] – a dogmática aparece como uma tentativa de “dar uma resposta racionalmente fundamentada”[6] para tais problemas. Ou seja, a dogmática é propositiva, dizendo como as controvérsias devem ser resolvidas. É o aquilo que quer dizer Lenio Streck, quando afirma que “a doutrina deve doutrinar”[7], afastando a hipótese de uma dogmática exclusivamente passiva.
Nessa linha, vale destacar que as questões centrais do garantismo processual são majoritariamente preocupações de caráter jurídico-dogmático; não excluindo que ele se beneficie e se ampare em questões teóricas e práticas. Isso porque busca oferecer respostas para problemas concretos que muitas vezes não estão claros o suficiente no ordenamento legal.
2.3. A teoria do direito
Muito se discute sobre o papel da teoria do direito. No Brasil, autores defendem-na com um papel prescritivo[8]. Para a terminologia aqui adotada, de Jestaedt, esse papel prescritivo estaria reservado à filosofia do direito e não para a teoria do direito, já que faz essa distinção. Assim, entende o autor que a teoria do direito é um empreendimento eminentemente conceitual e descritivo, que olha essencialmente para a práxis e para a dogmática – que, agora, passa também a ser objeto de estudo – buscando descrevê-las.
Em outros termos, o teórico do direito busca manter uma postura neutra e apenas detalhar como o direito opera em seus conceitos. Trata-se da área da Ciência Jurídica que detém uma preocupação analítica, buscando a “dissecação sistemático-conceitual do direito vigente”[9], sem se comprometer com prescrições e valorações sobre o seu objeto[10]. Avaliando o mesmo problema relatado anteriormente, do art. 1.015, CPC, enquanto a dogmática tentará indicar a melhor resposta ao problema, o teórico limitar-se-á a investigar conceitualmente aquilo que está em jogo. Pretensão de neutralidade e limitação de descrição de objeto são, portanto, fatores que marcam o teórico do direito.
Pode-se concluir, então, que Ciência Jurídica é o produto de estudos oriundos da dogmática, da teoria do direito e da práxis. Tais áreas – embora seja bastante clara a diferença entre um doutrinador e um teórico do direito – mantêm um grande diálogo, uma vez que a dogmática precisa necessariamente recorrer a práxis para fazer suas decisões, por exemplo. A teoria do direito precisa observar o que a práxis e a dogmática produzem para descrever os conceitos que estão em jogo. E assim sucessivamente.
Conclusão
A explicação trazida neste texto, sobre as divisões, não é consensual em seus detalhes. Existem divergências sobre a abrangência de cada uma das subdivisões tal como existe divergência na própria terminologia. Contudo, esse é um texto introdutório e a divisão acima relatada acaba estabelecendo um ponto comum àquilo que é aceito pela maioria dos autores. Grosso modo, esses elementos que foram relatados – a práxis, dogmática e a teoria do direito – configuram a Ciência Jurídica. Vejamos, assim, a divisão estabelecida em formato de um organograma:
Verifica-se que o adjetivo científico não é passível de qualificar qualquer obra pelo fato mesmo de que o trabalho foi publicado em “meios oficiais”. Ou seja, o fato de que um artigo foi publicado em uma revista com qualis não faz com que, eo ipso, o trabalho seja passível de ser qualificado como “científico”. Existem textos científicos circulando em blogs, assim como existem textos que não são científicos circulando em revistas indexadas[11]. De acordo com a classificação aceita pela teoria do direito alemã contemporânea, o que define um argumento jurídico ter (ou não) o caráter científico é o seu conteúdo e a sua intencionalidade. Seguindo essa convenção, o local de publicação, o momento, o idioma, o autor, etc., não qualificam um argumento como científico.
Existe um papel reservado para cada uma das áreas da estrutura tricotômica explanada. Um texto de teoria do direito tem uma pretensão e um objeto; da mesma forma, os textos de dogmática. Isso não significa que só existem essas abordagens ou que apenas essas abordagens são válidas. Apenas são essas as abordagens que integram aquilo que é denominado de “Ciência Jurídica” com algum consenso[12].
A grande utilidade dessa divisão proposta é a possibilidade de orientação metodológica: quando se sabe exatamente o que se pretende investigar e o método que se deve seguir, a produção do conhecimento passa a ter mais chances de atingir objetividade.
Outra vantagem é que quando se observa a função e os limites de cada uma dessas áreas da Ciência Jurídica, acaba sendo possível de se verificar que alguns textos são produzidos com uma nomenclatura, mas não respeitam as regras necessárias que tal nomenclatura exige. Para ser bastante claro: existem textos de dogmática jurídica que não respeitam as exigências metodológicas próprias de um texto de dogmática – e isso ficará mais visível nos próximos escritos.
Dentro da Ciência Jurídica, o conceito e as regras envolvendo a dogmática jurídica são os mais disputados. Isso porque o ponto não é consensual e alguns autores entendem que a dogmática, porque prescritiva, não é ciência[13]. Como esse próprio texto já indicou, segue-se a linha da doutrina jurídica alemã[14], que observa na dogmática uma parte da Ciência Jurídica. Tal disputa, contudo, será objeto de estudo com maios fôlego em um próximo texto.
[1] JESTAEDT, Matthias. Wissenschaftliches Recht: Rechtsdogmatik als gemeinsames Kommunikationsformat von Rechtswissenschaft und Rechtspraxis. In: Kirschhof, Gregor; MAGEN, Stefan; SCHNEIDER, Karsten (Orgs.). Was weiβ Dogmatik? Tübingen, 2012. Robert Alexy, dentre outros autores, também trabalha com uma estrutura tricotômica que é substancialmente muito próxima a de Jesatedt. O autor fala em dimensão empírica (=práxis), dimensão normativa (=dogmática) e dimensão analítica (=teoria do direito). ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008. p. 31-39.
[2] Tradução nossa. No original: “delle autorità normative (i padri costituenti, il legislatore, le autorità regolamentari), cioè un insieme di testi o documenti normativi (leggi, costituzione, regolamenti)”. GUASTINI, Riccardo. Filosofia del diritto positivo. Torino: G. giappichelli editore, 2017. p. 08.
[3] É o caso de Alexy, que fala em dimensão empírica da dogmática. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008. p. 34. Para o caso brasileiro, sobretudo pelo material produzido para concursos públicos, a explicação de Alexy parece se enquadrar melhor.
[4] GUASTINI, Riccardo. Il realismo giuridico ridefinito, Revus – european constitucionality review, n. 19, Klub Revus, 2013. p. 108.
[5] Sobre o ponto, ver ROSSI, Júlio César; CREVELIN, Diego; DIETRICH, William Galle. Afinal, o que se deve compreender a respeito da discricionariedade judicial e do garantismo processual? Empório do direito, São Paulo, 19 ago. 2019.
[6] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008. p. 36.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas 6. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 298
[8] Dentre todos, ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas 6. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. passim.
[9] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008. p. 33.
[10] Para uma maior explicação das origens do método descritivo e sua vinculação com a ciência, ver DIETRICH, William Galle. Ciência jurídica e garantismo processual. Revista brasileira de direito processual, v. 27, p. 365-381, 2019.
[11] Como exemplo de blogs que criam ciência jurídica de alto nível, veja-se a página de Brian Leiter <https://leiterreports.typepad.com/> e de Lawrence Solum <https://lsolum.typepad.com/legaltheory/>. No Brasil, vale conferir também o blog de André Coelho <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/>.
[12] Esse próprio texto não se enquadra como teoria, dogmática ou práxis, mas como um texto de teoria sobre a Ciência Jurídica – Rechtswissenschaftstheorie – Assim como são as passagens da obra de Alexy ou o texto de Jestaedt aqui utilizados.
[13] Guastini, por exemplo: “Ciò vuol dire che l’interpretazione e la costruzione giuridica sono non già la ‘scienza’ del diritto – come solitamente pretendono i giuristi – ma parte del diritto stesso, e quindi parte dell’oggetto di studio della scienza giuridica propriamente intesa. Insomma, la descrizione del diritto in vigore esige che si prenda in considerazione la dottrina in quanto parte integrante del diritto stesso. La dottrina è non già la conoscenza scientifica del diritto, ma una parte del suo oggetto. Alla fine, dal punto di vista pragmatico, il discorso – interpretativo e costruttivo – della dottrina può essere raffigurato come un insieme di direttive, rivolte agli organi dell’applicazione e segnatamente ai giudici: direttive de sententia ferenda”. GUASTINI, Riccardo. Il realismo giuridico ridefinito, Revus – european constitucionality review, n. 19, Klub Revus, 2013. p. 108.
[14] Diz Jestaedt que a práxis pode se beneficiar justamente da cientificidade da dogmática: “Die entscheidungsberufene Rechtspraxis profitiert von der Wissenschaftlichkeit der Rechtsdogmatik, kann sie doch daran Rationalität, Konsistenz und Konsequenz der eigenen Rechtsgewinnungstätigkeit überprüfen”. JESTAEDT, Matthias. Wissenschaftliches Recht: Rechtsdogmatik als gemeinsames Kommunikationsformat von Rechtswissenschaft und Rechtspraxis. In: Kirschhof, Gregor; MAGEN, Stefan; SCHNEIDER, Karsten (Orgs.). Was weiβ Dogmatik? Tübingen, 2012. p. 130. No mesmo sentido, diz Alexy que “é natural orientar-se, de início, por aquilo que de fato é praticado como Ciência do Direito e designado como ‘dogmática jurídica’ ou ‘ciência jurídica”, ou seja, pela Ciência do Direito em sentido estrito e próprio. Se isso é feito, é possível distinguir três dimensões da dogmática jurídica: uma analítica, uma empírica e uma normativa”. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008. p. 33.