Muito já se escreveu acerca da teoria do processo. Porém, ela segue despertando polêmicas. No Brasil, é comum que os cursos de Direito reservem, em sua grade curricular, espaço para uma ou até duas disciplinas para tratar do tema. Contudo, a cadeira de “teoria geral do processo” acaba servindo, normalmente, como uma espécie de introdução ao procedimento civil. Não por acaso, a base normativa da disciplina costuma ser o Código de Processo Civil. Por isso, os “processualistas” penais servem-se uma teoria do processo diferente daquela que abastece os estudos dos “processualistas” civis[1]. No final das contas, torna-se muito difícil falar que realmente há uma teoria “geral” do processo.
Um excelente inventário a respeito do quadro da “teoria do processo”, no direito brasileiro, pode ser encontrado na obra de Mateus Costa Pereira, que, além de apresentar de forma bastante clara e em tom crítico as correntes unitária e dualista acerca do assunto, também realizada um profícuo diálogo com o pensamento de Fredie Didier Jr., autor cuja pretensão de refundar a “teoria geral do processo” alicerça-se na construção de conceitos a priori para, a partir deles, deduzirem-se as categorias fundamentais do direito processual. No entanto, conforme notado por Mateus Costa Pereira, em vez de refletir as críticas ao paradigma da ciência moderna, referida tese “faz uma profunda imersão neles, recaindo nos problemas da abstração e da a-historicidade de um suposto conhecimento neutral”[2]. Fora isso, como bem destacou Eduardo José da Fonseca Costa, a proposta de Fredie Didier Jr. importaria em “admitir a juridicidade pura determinando a juridicidade empírica, a ciência do direito determinando o direito positivo, a doutrina antes da lei, o jurista antes do legislador”, criando a figura do “doutrinador-rei”, o que redundaria em graves implicações políticas, sendo a pior delas “a subalternação da lei, e em consequência, a corrupção da democracia” [3].
Essas observações nos levam à primeira questão crucial para uma possível refundação da teoria do processo, que é a sua base normativa fundamental. Seria possível forjar uma teoria do processo a partir do direito infraconstitucional?
O contexto do nascedouro da teoria do processo, vale dizer, o processualismo científico alemão e italiano, é um fecundo exemplo da tentativa de criar uma teoria do processo com alicerces infraconstitucionais. Obviamente que não há nenhuma estranheza nisso, pois naquele período a compreensão teórica acerca da Constituição e dos direitos fundamentais era bastante distinta da que temos hoje. O direito processual caminhava do ambiente do direito privado para o direito público, se desgarrando gradualmente de categorias próprias do direito material[4]. Os “códigos de processo civil”, por sua vez, iam servindo de alicerce para as novas construções teóricas. Um bom exemplo disso é a profunda análise que Adolf Wach realizou acerca dos projetos da Ordenação Processual Alemã e, por fim, do § 231, para tratar da chamada pretensão de declaração[5].
Nesse mesmo período, o estudo do “direito processual”, no Brasil, incluía a matéria de “organização judiciária” e era identificado como praxe ou prática forense. Na verdade, havia uma certa confusão entre três temas, a saber: organização judiciária, direito substantivo (doutrina das ações de José Homem Correa Telles, adaptada ao Brasil por Teixeira de Freitas) e procedimento[6]. O estudo do direito processual como disciplina autônoma – separada do direito material – era algo pouco crível naquela época.
A influência da escola cientificista no direito brasileiro pode ser sentida, todavia, em dois momentos culminantes. Primeiro, com o Código de Processo Civil de 1939, o qual estava assentado na doutrina processual presente no código austríaco de 1895, no projeto Chiovenda de 1919 e no código português de 1926[7], inaugurando, entre nós, um modelo autoritário de processo centrado na jurisdição. Os endereços doutrinários adotados por aquele código (Franz Klein, Chiovenda e José Alberto dos Reis) serviam bem para espelhar um processo civil público e social, que respaldasse a autoridade do Estado, rompendo com as posturas liberais (inspirado em José Alberto dos Reis, buscou-se colocar no lugar do que ele chamou de juiz manequim ou juiz fantoche um juiz ativo, com intervenção direta e eficaz na instrução da causa e na marcha do processo[8]). Segundo, com o advento do Código de Processo Civil de 1973, francamente inspirado no pensamento de Liebman, autor que, segundo Dinamarco, teria trazido para o Brasil os “ventos da nova ciência do processo, nascida na obra de Bülow e desenvolvida nos trabalhos de Wach, Hellwig e Chiovenda”[9]. Apesar das diferenças, há entre os dois códigos uma visível linha de continuidade, bem notada por Araken de Assis: “a imposição do princípio inquisitório”[10].
Seguindo essa forma de pensar o processo, legada pelo instrumentalismo que marcou o processualismo científico, a teoria geral do processo, no Brasil, desenvolveu-se fortemente influenciada pela escola da instrumentalidade do processo – uma espécie de coroação do exacerbado publicismo processual presente na gênese do processualismo científico – que vê o processo como um instrumento do Estado, prestando-se, desse modo, para que este realize certos objetivos[11]. Desse modo, mesmo influenciada pelo discurso cientificista, responsável por separar o “direito processual” do “direito material”, a doutrina brasileira se via incapaz de tematizar o processo em seu devido lugar; apesar de teoricamente desvinculado do direito material, a sonhada autonomia da ciência processual cedia espaço para uma exacerbação da ciência jurisdicional. Não por acaso, os discursos em prol da Constitucionalização do “processo” direcionavam-se quase sempre à “constitucionalização” do direito à tutela jurisdicional e à própria jurisdição[12].
Essa tendência não se verificou somente no Brasil. Na verdade, a história do direito processual no século XX é a própria história do exacerbado publicismo processual. A gênese garantista do processo – que remete à construção do devido processo com a Magna Carta inglesa e seu ulterior desenvolvimento no bojo das revoluções liberais – acabou sendo velada a partir da segunda metade do século XIX. Esse descarrilamento fez com que o direito processual ao invés de estar posto a serviço da liberdade dos indivíduos se transformasse em instrumento de uma desmedida e exorbitante ingerência do poder do Estado no âmbito dos conflitos levados aos Tribunais[13].
Com efeito, a formulação de uma “teoria geral do processo” simplesmente ignorou que o processo é, antes de tudo, um direito fundamental de primeira dimensão e que o seu ambiente normativo é a Constituição, e não os códigos de procedimento. Assim, pensou o processo como um instrumento técnico servil à jurisdição. A velha “teoria geral do processo” se fez como uma teoria generalizante da legislação infraconstitucional, encontrando, nos conceitos sacados dos códigos de procedimento, generalizações tendentes a servir para teorizar o “processo civil” e o “processo penal”. A unidade da teoria do processo, portanto, estava na construção de conceitos gerais advindos da legislação infraconstitucional, vale dizer, dos códigos de procedimento gestados sob uma perspectiva extremamente publicista e centrada na figura do Estado-juiz. Dentre os equívocos dessa forma de “teorizar” o processo, o que mais chama atenção, do ponto de vista científico, é a escolha do seu objeto normativo, qual seja, o direito infraconstitucional. Como bem observou Eduardo José da Fonseca Costa, trata-se de uma teoria que parte “das microinstitucionalidades procedimentais infraconstitucionais civil e penal para atingir uma microinstitucionalidade procedimental infraconstitucional geral”[14].
As possibilidades de uma teoria unitária do processo partem da Constituição, e não da legislação infraconstitucional. Por isso, uma “teoria unitária-constitucional” do processo. A velha “teoria geral do processo” sempre esteve preocupada em generalizar categorias procedimentais-infraconstitucionais para delas derivar uma unidade entre os diversos ramos procedimentais. A teoria unitária do processo parte de outro caminho, qual seja, derivar do processo, da macrogarantia processual constitucional, “a anatomia esquelética dos diferentes procedimentos e das suas partes constituintes”, campo das assim chamadas microgarantias procedimentais infraconstitucionais[15]. A unidade da ciência processual se encontra na Constituição, mais precisamente, no rol das garantias fundamentais do indivíduo contra o Estado, cujo eixo fundamental está no respeito à dignidade humana e, mais especificamente, no que toca à função do processualista, em “garantir ao indivíduo um freio contra a arbitrariedade e os excessos do poder Estatal”[16]. Cremos que isso não é diferente no processo (rectius, procedimento) civil, penal, trabalhista, eleitoral, arbitral. Daí uma teoria unitária do processo (que é uno do ponto de vista constitucional) e diferentes teorias procedimentais (que são vários do ponto de vista procedimental). E como as categorias fundamentais da velha “teoria geral do processo” (ação, processo e jurisdição) também são unas do ponto de vista constitucional, acreditamos ser possível trabalhá-las de modo unitário, respeitando-se as particularidades instituídas pelo direito infraconstitucional para cada um dos respectivos procedimentos.
Segundo Omar Benabentos “não é possível alcançar a unidade do direito processual sem um suporte de garantias que o sustente”[17]. A proposição do garantismo processual oferece uma guinada no eixo temático da ciência processual que se desloca para o problema da relação entre garantias (do indivíduo) e poderes (do Estado). Essa tensão, por sua vez, tem seu terreno normativo na Constituição, e não nos Códigos de Processo – ou, como prefere boa parte dos adeptos do garantismo processual, Códigos de Procedimento.
Nada disso significa obscurecer antigos e novos problemas que sempre ocuparam a doutrina processual. Revelar que o problema central da teoria do processo reside no binômio garantia-poder (na limitação do poder jurisdicional pela garantia processo) não é o mesmo que desconsiderar outras questões, embora, muitas delas mereçam, sob a ótica do garantismo processual, ser realocadas em outros campos de conhecimento nos quais sempre transitaram os processualistas. Um bom exemplo disso é o modo como o garantismo processual, notadamente no Brasil, oferece uma distinção entre ciência processual, ciência jurisdicional e ciência procedimental, este último um dos campos mais promissores para abordar aquilo que, classicamente, se convencionou chamar de relações entre direito material e “processo”.
Por óbvio, por ser uma epistemologia in statu nascendi, o garantismo processual não tem respostas para tudo e talvez sequer tenha a pretensão de oferecer repostas para tudo aquilo que seus críticos parecem dele cobrar. Disso tudo, porém, duas coisas são certas: (i) o garantismo processual oferece uma alternativa, no mínimo, auspiciosa para o intrincado problema da “teoria geral do processo” no Brasil; e (ii) a falta de respostas que se cobra do garantismo para uma série de assuntos evidencia que, mesmo para os seus críticos, o garantismo processual é reconhecido como uma epistemologia dogmática-constitucional do processo bastante promissora.
[1] Um bom exemplo disso, é a crítica realizada por Aury Lopes Jr. à teoria geral do processo, a qual, segundo ele, seria danosa ao processo penal. Nesse sentido, LOPES JR., Aury. Teoria geral do processo é danosa para a boa saúde do processo penal. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jun-27/teoria-geral-processo-danosa-boa-saude-processo-penal. Acesso em 18.07.2019.
[2] PEREIRA, Mateus Costa. Teoria geral do processo e seu tripé fundamental: racionalismo, pensamento sistemático e conceitualismo. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 284.
[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. “Teoria geral do processo”, essa velha conhecida. Prefácio. In: PEREIRA, Mateus Costa. Teoria geral do processo e seu tripé fundamental: racionalismo, pensamento sistemático e conceitualismo. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 17.
[4] Sobre a dupla transposição (do direito material para o direito processual; do direito privado para o direito público) realizada pelo processualismo científico, ver RAATZ, Igor. ANCHIETA, Natascha. Uma “teoria do processo” sem processo? A breve história de uma ciência processual servil à jurisdição. RBDPro – Revista brasileira de direito processual. Ano 26. n. 103, jul./set. 2018. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
[5] WACH, Adolf. La pretensión de declaración. Buenos Aires: Ejea, 1962.
[6] LOPES. José Reinaldo de Lima. História da justiça e do processo no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2017, p. 107.
[7] LIEBMAN, Enrico Tullio. Il nuovo “código de processo civil” brasiliano. In: Problemi del processo civile. Milano: Morano, 1962, p. 484.
[8] REIS, José Alberto dos. Breve estudo sobre a reforma do processo civil e comercial. 2ª edição actualizada. Coimbra: Coimbra editora, 1929, p. 208.
[9] DINAMARCO, Cândido Rangel. Homenagem a Enrico Tullio Liebman. V. 27. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 32.
[10] ASSIS, Araken. Processo civil brasileiro, volume 1: parte geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 264
[11] DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 62-63. Para uma crítica à instrumentalidade do processo, ver CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Empório do direito. Disponível em http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-2-precisamos-falar-sobre-o-instrumentalismo-processual-por-antonio-carvalho-filho. Acesso em 18.07.2019.
[12] Nesse sentido, RAATZ, Igor. Processo, liberdade e direitos fundamentais. Revista de processo. Ano 44. Vol. 288. Fevereiro de 2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
[13] BENABENTOS, Omar Abel. Teoría general unitaria del derecho procesal. Rosario: Juris, 2001, p. 406.
[14] COSTA, Eduardo José da Fonseca. “Teoria geral do processo”, essa velha conhecida. Prefácio. In: PEREIRA, Mateus Costa. Teoria geral do processo e seu tripé fundamental: racionalismo, pensamento sistemático e conceitualismo. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 12.
[15] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-8-ciencia-processual-ciencia-procedimental-e-ciencia-jurisdicional-por-eduardo-jose-da-fonseca-costa>. Acesso em 23/11/2017.
[16] BENABENTOS, Omar Abel. Teoría general unitaria del derecho procesal. Rosario: Juris, 2001, p. 429.
[17] BENABENTOS, Omar Abel. Teoría general unitaria del derecho procesal. Rosario: Juris, 2001, p. 403.