Ao Renê Hellman
I
Alguns críticos têm acusado os garantistas de associarem o processo à jurisdição e, assim, de desconhecerem a transjurisdicionalidade do processo. Ou seja, por vezes, os garantistas do processo são acusados de só enxergarem o processo jurisdicional, fingindo que não existem os processos administrativo e legislativo. A acusação improcede, porém. Não passa ela de uma leitura desagradada e apressada dos textos garantístico-processuais (obs.: prefere-se falar aqui em garantista do processo em lugar de simplesmente «garantista», pois o garantista é o constitucionalista em seu sentido mais nuclear, que estuda as garantias em geral, enquanto o garantista do processo é o constitucionalista que, dentre todas as garantias contrajurisdicionais, escolheu especializar-se na garantia contrajurisdicional do processo). É bem verdade que quase sempre os garantistas do processo se comportam unicamente como teóricos do processo em juízo, perante a jurisdição, diante do Estado-juiz. Deveras, o foco de preocupação da garantística processual tem sido o refreamento processual do arbítrio jurisdicional. Afinal de contas, vivem-se no Brasil tempos difíceis de um ativismo judicial tresloucado. Além disso, é habitual a preferência temática pelo processo jurisdicional, visto ser ele a porta tradicional de entrada para os estudos processualísticos e a modalidade processual mais próxima ao homem comum. No entanto, afirmar frequentemente que o processo é uma garantia contrajurisdicional não significa afirmar que o processo é «somente» uma garantia contrajurisdicional e que, dessa maneira, o processo está associado «apenas» à jurisdição.
O processo não acontece apenas diante e em razão da jurisdição. Nem mesmo se pode afirmar que esse seja o seu acontecer mais corriqueiro. Vale a pena lembrar que a garantística processual brasileira é uma ciência dogmática in fieri, que ainda não teve ensejo de desenvolver satisfatoriamente o processo também como um contrapoder extrajurisdicional. De toda forma, é de obviedade ululante que o processo é muito mais do que uma garantia contrajurisdicional: trata-se de uma garantia contraestatal de liberdade. Quando o inciso LIV do artigo 5º da CF/1988 prescreve que «ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal», ele faz do processo uma garantia do cidadão contra o Estado in genere, não exclusivamente contra o Estado-juiz in specie. O Estado está proibido – em qualquer das suas manifestações funcionais – de alcançar a liberdade e o patrimônio dos cidadãos sem a intermediação de um processo legalmente regulado em todas as suas etapas. Ou seja, o devido processo legal há de se impor como contenção tanto ao Estado-jurisdição, quanto ao Estado-administração, como ao Estado-legislação. Daí falar-se em: i) «devido processo legal jurisdicional» [judicial due process] (hipótese em que o processo opera como uma garantia constitucional contrajurisdicional); ii) «devido processo legal administrativo» [administrative due process] (hipótese em que o processo opera como uma garantia constitucional contra-administrativa); iii) «devido processo legal legislativo» [legislative due process] (hipótese em que o processo opera como uma garantia constitucional contralegislativa).
II
Em tese, tudo isso deveria fazer do processualista um poliperito, um polímata versado tanto nos ramos do direito que regulam o poder funcional (direito jurisdicional, direito administrativo e direito legislativo), quanto nos ramos direito que regulam a respectiva garantia (direito processual jurisdicional, direito processual administrativo e direito processual legislativo). É necessário sublinhar, todavia, que, quando se fala nos processos jurisdicional, administrativo e legislativo, não se fala nos processos «da jurisdição», «da administração» e «da legislação». Na realidade, fala-se dos processos que se dão no âmbito jurisdicional, no âmbito administrativo e no âmbito legislativo, ou perante o poder jurisdicional, perante o poder administrativo e perante o poder legislativo. Portanto, os adjetivos jurisdicional, administrativo e legislativo – quando são acrescidos ao substantivo processo – têm valor locativo, não genitivo. Exprimem localização, lugaridade, espacialidade, não possessividade, pertencimento, propriedade. Nesse sentido, o processo jurisdicional não é um instrumento da jurisdição; o processo administrativo não é um instrumento da administração; o processo legislativo não é um instrumento da legislação. Aliás, a dignitas specifica do processo está justamente na impossibilidade de se instrumentalizar. Para que a esfera jurídica do cidadão jurisdicionado, administrado ou legislado sofra a interferência do Estado, não é dado ao titular da função jurisdicional, administrativa ou legislativa exercê-la de um só jato, de uma única vez, de modo unissubsistente, breviter, simpliciter et de plano. A bem da verdade, esse exercício deve realizar-se compassadamente, cadenciadamente, processualiter. Porque a processualidade se presta exatamente a isto: desestimular as usurpações, os excessos, os desvios, as deficiências, as omissões, as insuficiências e as ineficiências (sobre as modalidades de arbítrio, v. nosso Uma breve teoria jurídica do arbítrio. <https://cutt.ly/icCaaTp>).
Ao fim e ao cabo, a processualidade é tutela constitucional inibitória de arbítrio estatal. Pudera: sob o ponto de vista cognitivo, o processo é uma sequência procedimental inflexível, que consubstancia um algoritmo e que, por esse motivo, tende a propiciar deliberações sistemáticas, sob alto controle consciente, com alto esforço, com baixa velocidade, com baixo grau de automaticidade, com pouca valência emocional e, por conseguinte, com alto grau de confiabilidade. Destarte, o processo é uma construção que contribui para a primazia da civilidade sobre a animalidade, da cultura sobre a natureza, da deliberação sobre a intuição, da reflexão sobre o impulso, do comedido sobre o abrupto, do direito sobre a força, do debate sobre a luta. Talvez o processo seja um dos maiores artifícios humanos, pois se utiliza da força corrosiva do tempo para eliminar das tomadas de decisão toda sorte de nódoas e impertinências. Trata-se de um prodigioso engenho de cultura, que se aproveita calculadamente de Χρόνος. Decerto há, vez por outra, erros de cálculo: o fluxo do tempo pode corroer de mais [= deliberação tardia], ou de menos [= deliberação açodada]. Por isso, o grão-desafio da arte processual é a avaliação prospectiva de uma duração ótima [= deliberação a tempo].
III
É importante ressaltar que o poder funcional se pode exercer de modo: 1) incontínuo; 2) descontínuo; 3) contínuo não processualizado; ou 4) contínuo processualizado. Na seara do direito privado, na generalidade das situações, o exercício de poder funcional – ainda que contínuo – não se processualiza. De ordinário, entre o titular de um poder funcional privado e o titular da correlata sujeição não se interpõe um processo. Não são processualizados, v. g., os exercícios contínuos do poder familiar, da tutela, da protutoria, da curatela, do apoio, da guarda, da gerência, da sindicância condominial, da liquidação extrajudicial, da função de testador, da função de agente fiduciário, da função de administrador judicial na falência, da função de administrador na recuperação judicial, da função do conselho fiscal. É bem verdade que no exercício desses poderes funcionais está sempre implicada uma atividade. Contudo, cuida-se de atividade não processualizada. Nela, há um conjunto de atos aleatórios sem contraditoriedade, que são praticados ao sabor das necessidades práticas da vida quotidiana e cuja sequência, por conseguinte, não se preestabelece rigidamente em normas jurídicas. Para se inibir o arbítrio do poder funcional privado, o sistema de direito positivo não lhe sói processualizar o exercício. Por certo se reprimem as diferentes modalidades de arbítrio funcional no âmbito privado. Sem embargo, nesse âmbito não é corriqueira a refreamento do arbítrio mediante processualização. Nada obstante, o processo privado pode ser imposto: b) por vontade das partes [ex.: cláusula de contraditório e ampla defesa antecedentes à resolução contratual por suposto inadimplemento; cláusula sobre processo de dispute adjudication board nos contratos de aliança]; b) por lei [ex.: processo arbitral – Lei 9.307/1996; processo de exclusão de associados – CC, art. 57, com a redação dada pela Lei 11.127/2005; processo de exclusão de sócio em sociedade com mais de dois sócios – CC, art. 1.085, parágrafo único, com a redação dada pela Lei 13.792/2019].
Nesses casos, não se há de falar em uma fantasiosa «eficácia horizontal» [Drittwirkung] da garantia constitucional do «devido processo legal». A inserção ocasional de processualidade nas relações jurídicas de natureza privada não decorre diretamente de norma constitucional. Decorre eventualmente de contrato ou de lei. Os direitos fundamentais civis, de primeira geração ou de primeira dimensão, que se conectam ao valor liberdade, são «direitos subjetivos de defesa ou resistência» [Abwehrrechte] contra o Estado. Sustentar que se possam estender tout court às relações entre particulares constitui indesejável panconstitucionalismo, excesso de constitucionalismo ou totalitarismo constitucional, que fulmina a autonomia da vontade e a vida privada em todos os seus aspectos, reduzindo os indivíduos a meros executores de medidas predefinidas pelo constituinte. Daí por que o processo privado não é uma garantia em sentido constitucional [= tutela contra o exercício arbitrário de poder público], mas uma paragarantia [= tutela contra o exercício arbitrário de poder privado] (para um aprofundamento da distinção, v. nosso Esboço para uma teoria dos estatutos. <https://cutt.ly/FvwqqnR>). É algo que se aproxima de, que se assemelha a, que se equipara a, que tem paralelo com – mas não é – uma garantia constitucional.
IV
Sem sombra de dúvida, a limitação e o controle do poder funcional pelo processo é muito mais comum na seara do direito público. No direito constitucional, o exercício do poder pelo Estado sempre se processualiza. Entre o titular de um poder funcional público e o cidadão titular da correlata sujeição se interpõe invariavelmente um processo. O titular de um poder funcional não precisa do processo. Dele não precisam nem os juízes, nem os administradores públicos, nem os legisladores. Ao contrário: a processualização é-lhes um estorvo, pois só faz adiar a irradiação dos efeitos naturais decorrentes do exercício funcional. Logo, o processo serve apenas e tão somente ao cidadão titular da sujeição. A cadência passo dopo passo tende a impedir que o titular do poder funcional o exercite de forma irrefletida, levado pelo impulso afoito das primeiras impressões e das primeiras avaliações. Como se não bastasse, o processo permite ao assujeitado – mediante o desempenho da sua cidadania ativa [activæ civitatis] – municiar de elementos o titular do poder para que o exercício funcional não descaia em feições arbitrárias. Entretanto, a tão comezinha associação poder/processo induz os juristas a um erro de percepção. Isso porque os faz acreditar que o poder e o processo são dois fenômenos cooriginários, quando de fato não são. Não existe uma relação de conaturalidade entre um e outro. O processo não é o amontoado dos atos por meio dos quais o poder se manifesta. Em verdade, o processo se intromete no poder para lhe distender o exercício e, em consequência, contê-lo. É um procedimento intrusivo. É anexado, não inexado. É uma ex-igência, não uma in-igência. É imposto ab extra, não defluído ab intra. Imerge desde fora, não emerge desde dentro (donde se conclui que o processo jamais pode ser considerado um «método», uma «ferramenta», um «utensílio» ou um «instrumento» a serviço do titular do poder estatal).
Tudo isso mostra que o genuíno processualista não se prende a determinadas circunscrições do poder. Não é o jurista aprimorado exclusivamente no processo perante a jurisdição. Não é, enfim, o jurista do CPC e do CPP. É muito mais do que isso. Na realidade, é o jurista dedicado multidisciplinarmente aos processos perante os poderes jurisdicional, administrativo e legislativo. É o jurista dedicado ao processo in genere como uma garantia antiarbitrária contraestatal. É o constitucionalista que se especializou na cláusula do «devido processo legal». Via de regra, os autointitulados «processualistas» são juristas que se cingem ao processo jurisdicional, que lhe ignoram a garanticidade e que, por isso, veem equivocadamente os diferentes procedimentos em que o processo se desdobra (procedimentos civil, penal comum, penal militar, trabalhista, eleitoral etc.) como simples instrumentos a serviço do Estado-juiz. Normalmente, os «processualistas» não são processualistas, mas jurisdicionalistas. São expertos no poder jurisdicional do Estado, não na macrogarantia processual do cidadão. Buscam otimizar a jurisdição, não limitá-la. E, ironicamente, são eles que acusam os garantistas de associarem o processo à jurisdição e, assim, de desconhecerem a transjurisdicionalidade do processo. No se puede caer más bajo…