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VERDADE COMO OBJETO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL

“Você sabe explicar

Você sabe entender tudo bem.

Você está, você é

Você faz, você quer, você tem.

Você diz a verdade

 E a verdade é o seu dom de iludir.”

Caetano Veloso (“Dom de Iludir”).

 

 

  1. Introdução

A verdade é problema tormentoso na filosofia e também no direito. Durante muito tempo ela foi vista como correspondência com a realidade. No entanto, a mudança na percepção do real levou os teóricos a reverem seus conceitos, construindo novos modelos para expressar tal categoria, chegando-se mesmo a negar a utilidade de tal conceito.

O presente artigo pretende analisar o trabalho de Michele Taruffo sobre este tema, mas sem ficar limitado a ele. O tema do trabalho é a possibilidade de negócio jurídico que tenha por objeto a prova, já que esta tem por fim estabelecer ou constituir a verdade sobre um fato ou sobre sua alegação.

Não será a verdade que está a ser negociada, mas os meios para descobri-la ou construí-la, a depender da perspectiva adotada.

Para realizar tal intento, o presente artigo irá expor, de forma sucinta, os argumentos elaborados por Michele Taruffo para negar a existência de negócio jurídico processual acerca da prova. Após isso, será feita uma análise crítica do artigo veiculado pelo professor italiano. Esta análise é necessária para que se possa, no capítulo seguinte, estabelecer a relevância do fato para o direito para, depois, observar como as diversas concepções sobre a prova influenciam a percepção do fato na decisão judicial.

Por fim, será visto o papel significativo que o negócio jurídico sobre prova exerce na nova perspectiva do processo, já que este terá por função realizar uma maior participação das partes na produção judicial do direito.

  1. Michele Taruffo e a tese da impossibilidade da verdade negociada

No trabalho intitulado “Verdade Negociada?”[1], Michele Taruffo lança as bases que fundamentam, segundo seu entender, a impossibilidade de se constituir negócio jurídico apto a limitar a cognição do magistrado a respeito da verdade ou falsidade dos fatos articulados no processo judicial. Para tanto, estabelece algumas premissas que, segundo alega, uma vez aceita, implicaria concordância com as conclusões.[2] Convém lembrar que as premissas funcionam como premonições do que irá advir, embora nelas já estejam contidas as conclusões. As premissas são o futuro no pretérito.

Neste primeiro momento, serão expostas, de forma sucinta, as ideias do autor, para depois enunciar eventuais críticas.

A primeira premissa (P1) posta seria que o mundo existe em sua materialidade empírica, que se oporia às concepções céticas, subjetivistas ou construtivistas que de alguma forma negariam tal materialidade.[3]

Após, avança para a segunda asserção (P2), que tem relação direta com a ideia de verdade enquanto correspondência, pois, para ele, o enunciado será verdadeiro se o que diz corresponder ao que se verificou. Assume de forma expressa seu ontologismo, quanto sua ideia de verdade, numa relação: verdade e realidade são idênticas. Afirma, nesse contexto, que a verdade de um enunciado independe de sua demonstração aqui e agora.[4] No entanto, na premissa P2-bis, admite como convergente a ideia que enuncia como verdadeiro aquilo que possua razões suficientes a justificar o que o enunciado diz do evento. Para ele, a justificação embora não coincida com a veracidade do enunciado, é-lhe conexa, pois a pressupõe, porquanto a justificação implicaria a veracidade do enunciado justificado.[5]

Seguindo suas premissas, enuncia aquela que tem por objeto a que diz respeito ao método (P3). Para o autor, é possível descobrir a verdade sobre os eventos no mundo com métodos adequados e confiáveis. Neste ponto, refuta a verdade absoluta,[6] fazendo algumas concessões aos relativistas ao afirmar:

Ao contrário, não parece haver nada de particularmente problemático em reconhecer que enquanto verdade a linguagem não é o espelho fiel da realidade, assim como não o é o pensamento, todavia seja possível reconhecer, sobre base de conhecimentos empíricos e de justificações lógicas adequadas, quando um enunciado é verdadeiro ou é falso sobre a base da realidade que pretende descrever.[7]

Reputa que, no processo judicial, mediante emprego adequado dos instrumentos probatórios, seria possível verificar a verdade dos fatos relevantes para a decisão. Neste diapasão, embora refute a verdade absoluta, defende que um eficiente sistema probatório seria capaz de verificar a verdade real, entendida como aquela que pode ser “descoberta no mundo incerto e frágil das coisas humanas”.[8]

No quarto antecedente lógico (P4), Michel Taruffo se debruça sobre o que denomina processo justo, enunciando que o processo teria esta característica se for “sistematicamente orientado para a produção de decisões justas.”[9] Considera processo justo aquele voltado a resolver a controvérsia com base no respeito às garantias constitucionais do processo, sendo as decisões pautadas por interpretação e aplicação corretas da lei, sem erros na averiguação dos fatos e “por uma variedade de outras razões”.[10] Quanto à correção da interpretação, afirma: “a decisão não pode prescindir da correta interpretação e aplicação das normas.”[11]

A quinta premissa (P5) tem por objeto os fatos. Nela o autor assevera que a “decisão é justa se se funda sobre uma averiguação veraz dos fatos relevantes”.[12] Ele toma a verdade da averiguação como uma das condições necessárias para a decisão justa. A reconstrução errônea do fato jurídico implicaria decisão injusta.[13]

Arremata que as premissas P1, P2 (ou P2-bis) e P3 indicam a possibilidade de que se consiga um conhecimento verdadeiro de eventos que se colocam externamente ao sujeito cognoscente, sendo possível averiguar, mediante métodos adequados, a verdade real. Já os antecedentes P4 e P5 têm por função afirmar que a verificação da verdade dos fatos é condição necessária para a efetivação do processo justo.

Após colocar as premissas, lança a pergunta: é possível acordo entre as partes que tenham por objeto a verdade dos fatos na causa?[14] Argumenta que em favor da possibilidade levantam-se dois fatores.

O primeiro seria de ordem funcional e tem origem na economia processual. Para isso, reduzir-se-ia a atividade instrutória em alguns casos, como, por exemplo, o fato reputar-se incontroverso por ausência de contestação ou admitido como verdadeiro pela outra parte. Tal limitação implicaria um déficit na descoberta da verdade que redundaria em déficit na justiça e legalidade da decisão.

O outro fator teria conteúdo ideológico e toma por base o fato de que, sendo o objeto do processo questão de ordem privada, as partes poderiam dispor livremente do seu conteúdo.[15] Para Michele Taruffo, tal possibilidade seria paradoxal, pois o magistrado não poderia levar em consideração provas que refutem o fato pacífico, mesmo que tal falsidade tenha por base prova que denominou vinculante, tal como ato público. Outra hipótese paradoxal é a questão que diz respeito à possibilidade de liberdade negocial, quanto à verdade dos fatos, nos casos de direitos disponíveis, mas vedada quando se trata de direitos indisponíveis. Para ele, tal bifurcação seria dificilmente justificável, já que a verdade dos fatos ficaria condicionada ao tipo de direito em jogo no processo.[16]

No intuito de refutar a possibilidade do negócio jurídico, nessas hipóteses, Michele Taruffo lança algumas definições aptas a demonstrar o que denominou equívoco quanto à função de alegação dos fatos e da sua contestação ou não.

A primeira definição (D1) consiste na afirmação de que a alegação de um fato consiste na elaboração de um enunciado descritivo daquele fato, ultimado por uma das partes. Tal enunciado tem uma pretensão de verdade – expressão tipicamente habermasiana –, embora possa ser reputado verdadeiro ou falso, segundo o que restou fixado na premissa dois (P2). A incerteza assim gerada só será solucionada após decisão final, mediada por dilação probatória.[17] Ainda neste ponto, distingue dois fenômenos. O primeiro seria mera alegação, que tem por escopo formular enunciado acerca da existência dos fatos. O outro sentido seria a qualificação jurídica do fato, que constitui a causa de pedir da demanda. A questão da verdade estaria posta no primeiro fenômeno, e o princípio dispositivo estaria na formulação da demanda, ou seja, os efeitos jurídicos que derivam das alegações.[18] A parte não disporia assim da verdade dos fatos, mas sim da demanda.

Com relação à segunda definição (D2), afirma que a contestação implica negação explícita da veracidade da alegação. O enunciado permanece o mesmo. Muda apenas sua valoração, pois, para quem rechaça, é falso.[19]

Avança para a próxima definição (D3), que consiste na assertiva de que a não contestação consiste na ausência de negação explícita da veracidade de um enunciado. Para Michele Taruffo, o comportamento omissivo não consistiria em um ato linguístico em sentido próprio. Para ele, quem não contesta não diz nada. Quando o réu reconhece de forma expressa o fato, ter-se-ia admissão e não omissão.

Partindo das premissas e definições estipuladas, o autor constrói as seguintes consequências: C1: “se o enunciado alegado é falso, a não contestação não o torna verdadeiro”;[20] C2: “se o enunciado alegado é verdadeiro, a não contestação não o torna verdadeiro, porque ele já o é”;[21] C3: “se o enunciado alegado é verdadeiro, a contestação não o torna falso;”[22] C4: “se o enunciado alegado é falso, a contestação não o torna falso, porque ele já o é.”[23]

Arremata, com base em suas conclusões, que quanto à veracidade ou à falsidade dos enunciados, a contestação e a não contestação seriam irrelevantes.[24] Lastreia sua construção com base na impossibilidade de a verdade fundar-se em consenso. Por essa razão a verdade não estaria à mercê de acordos.

Vaticina que as partes não poderiam dispor da verdade, mediante negócio jurídico apto a vincular o juiz a ter por verdadeiro determinado fato.

Conclui o seu texto argumentando que não é possível negócio jurídico que tenha por objeto a verdade dos fatos.

  1. Crítica à posição de Michele Taruffo

Neste tópico, pretende-se fazer uma análise das idéias de Michele Taruffo, sintetizada no item um deste artigo. Seu texto se desenvolve com a pretensão de ser um encadeamento lógico cuja aceitação das premissas implicaria a aceitação das conclusões.

Percebe-se, no entanto, que a partir de suas premissas, as conclusões postas não são necessárias, como se verá. Em primeiro lugar, a existência de um mundo externo, independente do que se diz dele, não é impedimento para a construção de assertivas que possam ser falseadas.

Quando o autor avança em sua segunda premissa, segue uma perspectiva ontologista da verdade, que é negada pela sua premissa P2-bis, embora repute não antagônica. Na premissa, estipula-se a ideia de verdade como correspondência – adequatio intelectus et rei –.[25] Já no P2-bis, que reputa não divergente à P2, parte da verdade como consenso, no sentido habermasiano, que reputa a verdade como aceitação racional a partir de uma pretensão de validade criticável sob as condições comunicacionais de um auditório.[26] A ideia de pretensão de verdade tem seu lançamento expresso na definição um (D1), já citado.

O que Michele Taruffo denominou bis, na realidade, é outra concepção distinta da verdade, que não implica correspondência. Assim, apesar de afirmar que a verdade independe de demonstração, pois a verdade é – (P2) –, no item P2-bis admite concepções verificacionistas. Noutros temos, a premissa P2-bis não é compatível como a P2, já que esta toma a fundo a verdade como correspondência, a outra, a verdade como consenso, embora o autor não a repute distinta. Torna assim idêntico o diferente!

Neste passo, a verdade que independe da demonstração, prevista na premissa 2, é incompatível com a premissa 3, que reputa possível descobrir a verdade com métodos adequados e confiáveis. Aqui, Michele Taruffo se lança em um terreno pantanoso, já que se socorre de expressões vagas e nebulosas como “adequados” e “confiáveis”. O que é adequado? O que é confiável? Se a verdade é objetiva, por que necessita de categorias tão subjetivas para estabelecê-la ou “descobri-la”?

Ainda na premissa P3, insurge-se contra a denominada verdade formal, nega a verdade absoluta, mas enfatiza a busca pela verdade real. Afirma que a verdade absoluta é patrimônio dos metafísicos e dos fundamentalistas religiosos e defende que a verdade real seria aquela que, pautada por um sistema probatório eficiente, fosse capaz de verificá-la, porquanto material, história e empírica,[27] ou seja, verdade como consenso. Esta assertiva, no entanto, entra em rota de colisão com a ideia que difundiu no texto: de que a verdade é correspondência.

Percebe-se assim que ele afirma que a verdade é correspondência, mas se vale da concepção consensual pautada pela justificação. Nela, a verdade de um argumento é (veri)ficada, a(veri)guada. Sendo assim, seria estabelecida, não necessariamente descoberta. Ademais, se a verdade é histórica, não pode ser descoberta, mas construída, o que contradiz a ideia difundida no texto.

A premissa P3 pode se compatibilizar com a premissa P2-bis, o que implicará consequência diversa da pretendida pelo autor do texto, qual seja: que a partir do uso dos meios de prova pode-se chegar à verdade, e esta pode não corresponder à realidade, já que a verdade não é correspondência, mas produto histórico, material e empírico, constituído racionalmente e por ele denominado de adequado, eficiente e confiável. É sempre bom lembrar: confiar deriva de “fé”, que é, segundo Paulo, “a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11, 1). Ou seja, Taruffo nega a metafísica e a religião, mas volta-se a ela para fundar suas concepções na fé. Faz uso também do termo adequado, do latim aequo, raiz de inúmeras palavras, inclusive equidade, que indica julgar conforme sentimento de justiça. Mais uma escapulida para a subjetividade[28] que não é ruim em si, pelo contrário, humaniza as decisões, mas que contrasta com a ideia de verdade objetiva (real) perseguida pelo autor em comento.

Não dá para falar em verdade não metafísica e valer-se de verdade como correspondência que independe de comprovação. Ou seja, a denominada verdade material nada mais é que uma verdade absoluta.

As premissas 4 e 5 são aplicações do que denomina processo justo. Parte da ideia de que haveria uma interpretação correta e da existência de um fato verdadeiro e único. O problema é que as premissas que lançou não confirmam suas conclusões, mas, pelo contrário, as infirmam.

Seguindo o caminho traçado por Michele Taruffo, pode-se afirmar que a verdade é aquela produzida segundo um procedimento previamente estabelecido. Ela é histórica, logo o que é hoje pode não ser amanhã. É empírica, pois pode ser objeto de verificação, já que não deixa de ser um procedimento apto a atestar algo como digno do valor verdade. Aqui se introduz de forma proposital a expressão valor. No caso, o sentido empregado é bem específico. Tem por escopo determinar que verdade e a falsidade são valores que se atribuem a enunciados. As coisas são; não valem. Valor não é, vale.[29] Valor acaba sendo algo que se atribui às coisas por meio de enunciados. Há elemento subjetivo no valor, algo que escapa à pretensa exterioridade do mundo, se é que há um mundo externo, fora do universo cultural humano.

Os enunciados podem ser verdadeiros ou falsos, mas não as coisas, que existem ou não existem, seguindo a premissa P1. No entanto, nada impede que se afirme que o real seja constituído por linguagem, mas não se vai tratar aqui deste ponto, para não fugir das premissas eleitas por Taruffo.

Analisando as definições que Taruffo lançou, percebe-se que tratam de: alegações que têm pretensão de verdade, mas refutáveis; a contestação do réu que nega a verdade sobre a alegação do autor; e que não contestar implica ausência de contestação. Neste tópico, nega o caráter linguístico ao silêncio, que é afirmação complicadíssima do ponto de vista da filosofia da linguagem,[30] já que o silêncio fala e possibilita o discurso, além de ser utilizado pelo direito para dirimir conflitos. Mais uma vez este tópico não será aprofundado, já que não é objeto deste estudo.

As conclusões a que chega o texto em comento são um mergulho metafísico, porquanto põem a verdade como categoria transcendente, independente do enunciado. Ou seja, a verdade está na coisa, e o enunciado, se for falso, não serve; se for verdadeiro, é mera tautologia, logo, não serve também, pois a verdade não depende dele nem da sua confirmação (premissa 2 − P2). Noutros termos, se o enunciado é verdadeiro, sua contestação ou sua não contestação não o torna falso; se o enunciado é falso, a contestação ou a não contestação não o torna falso, já que o é. O problema é que o falso é! Logo, pode ser verdadeiro, pelo menos o enunciado que diz: “é falso”!

Neste contexto, a dilação probatória teria por função descobrir a verdade que já preexiste, nada acrescentando. Interessante que o oráculo apto a “descobri-la” é o magistrado, que por conta da imparcialidade, em regra, não participou e nem presenciou o acontecimento, embora seja ele que irá afirmar sua existência com pretensão de verdade, no ato decisório.

Destaque-se: o texto de Michele Taruffo torna inócuo o justo processo, que só acontecerá se a verdade do fato realmente se materializar juntamente com a correta aplicação da lei.[31] Tomando a questão do fato, como abordado pelo autor, se a verdade dele independe de sua demonstração, para que a cláusula do justo processo? Para retirar a venda da justiça, já que as partes sabem o que aconteceu? Mais. Após o processo, descobre-se que o fato não é verdadeiro; tem-se que não houve justo processo. A abertura para revisar restará de forma indefinida?

Quanto à impossibilidade de negócio jurídico processual sobre a prova, sua tese não encontra respaldo em suas premissas. Se a descoberta da verdade independe da verificação, segundo a premissa 2, é possível negociar as provas, seus meios ou a distribuição do respectivo ônus, desde que se declare a verdade preestabelecida. Seguindo assim a premissa mais radical de Michele Taruffo, a verdade como correspondência, totalmente ontologista, é plenamente possível negócio jurídico processual sobre a prova, pois o que importa é a verdade, que independe de prova. Se a prova existe e demonstra a verdade, não há nenhum problema de ela ser objeto de negócio jurídico, desde que cumpra seu papel, descobrir a verdade. No caso, o papel da prova seria satisfazer os descrentes da verdade preexistente. Teria uma função meramente comunicacional.

Assim, antes de negar a possibilidade de negócio jurídico com relação à prova, a premissa radical P2 a confirma.

A partir do modelo exposto em P2-bis, o negócio jurídico rechaçado é plenamente possível, já que a verdade a partir de um modelo de justificação racional vige com base na verdade como consenso, que pressupõe acordo de vontade.

Por essas razões, adotando-se as premissas, chega-se a conclusão diversa da que fora proposta por Michele Taruffo. Isto é, seja qual for o modelo de verdade adotado, é plenamente possível a existência de negócio jurídico apto a dispor sobre a prova, desde que não haja vedação na ordem jurídica positiva. Não há nenhuma incompatibilidade entre o modelo escolhido e a livre disposição das partes sobre que fato será utilizado para compor o antecedente de uma norma de decisão.

Após isso, analisa-se outro ponto, a saber, a relação entre o fato e o direito.

  1. Os fatos e sua repercussão no direito

Os fatos são veiculados através de enunciados. São categorias linguísticas. Ingressam no direito pela porta do antecedente da norma jurídica, seja ela norma primária dispositiva, que estabelece a conduta devida, seja ela norma primária sancionatória, a impor uma pena pelo descumprimento da norma dispositiva[32], e a norma secundária, que corresponde à norma que estipula a sanção coativa imposta pelo Estado, numa visão de Lourival Vilanova, aqui adotada.[33]

Os enunciados sobre fato ingressam como elemento constitutivo da norma de decisão que irá regular a conduta. Fica evidenciada assim a importância desta categoria.

Deve-se destacar que o conhecimento sobre o fato é o daqueles que tiveram contato com o acontecimento. Normalmente, o magistrado, que é terceiro, terá contato do fato a partir das versões trazidas pelas partes. Calha bem aqui a imagem da justiça com a venda nos olhos. Ela não vê, mas constrói a imagem mental dos fatos a partir do que ouve – bilateralidade de audiência –, marca do contraditório. A imagem que constrói é a verdadeira? Corresponde à realidade? Ou é produto do que lhe foi trazido pelos partícipes, em um procedimento de reconstrução dos acontecimentos, através da polifonia dos diversos discursos dos utentes do processo (autor, réu testemunha, peritos etc.), inclusive do magistrado, que lança suas impressões, a partir de sua experiência e modo de ver o mundo? Reconstrói-se a partir da reminiscência. O que é interessado, que lembro do passado no presente. O passado só é passado no presente.

Não há, portanto, muito espaço para concepções de verdade como correspondência, que no medievo já fora, de certa forma relativizada, como se lê em Santo Tomás de Aquino: “a verdade de nosso entendimento é mutável. Não porque ela está submetida à mutação, senão porque nosso entendimento passa da verdade à falsidade. Assim, pode-se dizer que as formas são mutáveis.”[34]

Saliente-se que o sistema jurídico não tem a pretensão de colocar a verdade como seu fundamento; utiliza-a como critério para legitimar a decisão, quando se depara diante de situações em que não há consenso expresso ou tácito sobre situações conflituosas. No entanto, contenta-se com aquilo que fora procedimentalmente constituído. Veja-se, por exemplo, a vedação de provas obtidas por meio ilícito ou técnicas como distribuição do ônus da prova ou in dubio pro reo.

O descompromisso com a imutabilidade fica claro no processo quando se afirma que a verdade dos fatos não faz coisa julgada (art. 469, II, do CPC e art. 504, II, do Novo CPC – Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015). Leia-se: verdade alegada sobre os fatos.

A prova ingressa neste contexto como questão fundamental para o estabelecimento do antecedente da norma de decisão, sendo a verdade um dos critérios, mas não o único, de legitimação do ato decisório. Esta verdade não é absoluta ou material, mas aquela suficiente a atestar de forma válida e legítima a existência do fato ou, melhor, de um argumento sobre o fato que irá funcionar como antecedente da norma de decisão a ser tomada pelo Estado-juiz.

No próximo item, far-se-á uma pequena digressão sobre as formas que a doutrina utiliza para tratar a prova no processo.

  1. Concepção declaratória da prova

A prova pode ser veiculada como imersa em uma concepção declaratória. Na mencionada concepção, a prova terá a função de tornar clara uma determinada situação e pode ser tomada de duas formas:

a − como uma situação no mundo fenomênico, ontologizada;

b − como um argumento.

São perspectivas distintas, mas que utilizam a prova como critério apto a declarar a existência ou não de um evento. Expõem-se as duas formas.

4.1. Prova como situação no mundo fenomênico

A prova pode ser tomada como uma situação existencial no mundo fenomênico, como no modelo defendido por Michele Taruffo. Neste ponto, a prova tem papel essencial na objetivação da assertiva produzida pelo julgador, já que esta é, segundo Malatesta, “o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade”.[35]

4.2. Prova como argumento

Ainda sob o prisma declarativo, encontra-se uma perspectiva que vem ganhando força no Brasil. Ela enfoca a prova como meio destinado a demonstrar os argumentos sobre os fatos, e não os fatos propriamente ditos alegados no processo, já que estes não podem ser apreendidos, pois se exaurem no tempo e no espaço e são efêmeros.

Neste contexto, os fatos existem ou não existem. Sua existência ou inexistência não tem que ver com a verdade. O que pode ser verdadeiro ou falso são os argumentos sobre os fatos. Tal assertiva já encontra ressonância na obra de Sentis Molendo, que afirma ser a prova destinada a verificar as afirmações sobre fatos.[36] Juan Montero Aroca admite o fato ora como acontecimento, ora como argumento. Isso se dá da seguinte forma: se o que se quer provar é o antecedente da norma jurídica, a prova se dirige ao fato; caso o que se deseja demonstrar é o tema da prova, tem-se que o objeto é o argumento e não o fato.[37]

A linha da prova como argumento resta presente em autores como Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart,[38] Cândido Rangel Dinamarco,[39] dentre outros. Até mesmo Pontes de Miranda deixa antever tal situação, quando afirma: “o que alega tem de provar a alegação”.[40] Esta forma de pensar – provam-se argumentos – encontra-se positivada no caput do art. 273 do Código de Processo Civil de 1973.[41]

  1. Concepção constitutiva da prova

Outra perspectiva sobre a prova pode ser percebida a partir da obra de Carnelutti, que elabora uma visão constitutiva da prova. Embora não despreze a função de constatação, para ele a prova terá por finalidade fixar, estipular o fato. Para o processualista italiano acima destacado, o objeto da prova seriam, em regra, os fatos controvertidos.[42]

No pensamento carneluttiano, a denominada verdade formal ou convencional, aquela produzida segundo os preceitos jurídicos positivos,[43] é tida como uma metáfora, já que esta ou corresponde à verdade material, logo verdade, ou dela discrepa, logo falsidade. Assim, irá identificar a verdade formal como verdade material.[44] Após, acrescenta:

(…) o processo de busca submetido às normas jurídicas que obrigam e deformam sua pureza lógica não pode ser considerado como um meio para o conhecimento da verdade dos fatos, senão para uma fixação ou determinação dos próprios fatos, que pode coincidir ou não com a verdade destes e que permanece por completo independente deles.[45]

Assevera que “as provas (probare) são fatos presentes, sobre os quais se constrói a probabilidade da existência ou da inexistência de um fato passado”.[46] Por ser a prova um fato presente, (re)presenta, tornando presente o passado.[47] Por ter função representativa, a prova aparece como um signo. A representação não deixa de ser, no aludido autor, uma repetição de algo que ocorreu no passado, numa relação de identidade. Noutra passagem, após definir prova como “demonstração da verdade legal de um fato”,[48] assevera:

Dizer, portanto, que prova em sentido jurídico é a demonstração da verdade formal ou judicial, ou dizer, entretanto, que é a determinação dos fatos discutidos, é no fundo a mesma coisa: aquela é somente uma expressão figurada, e esta uma expressão direta de um conceito essencialmente idêntico.[49]

O autor já deixa antever que a prova se dirige ao alegado sobre o fato.[50] Em obra posterior essa questão fica evidente, quando vaticina que “a prova serve para comprovar um juízo por meio da lei”.[51]

A função constitutiva da prova sofre críticas de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Arenhart; segundo esses autores, a reconstrução do fato não seria possível, pois este se perderia no tempo e no espaço,[52] isso porque eles identificam o fato não como evento linguístico, mas como acontecimento do mundo fenomênico.

A perspectiva constitutiva aparece no engenho kelseniano, quando afirma: “o reconhecimento de que também a averiguação do fato delitual é uma função do tribunal plenamente constitutiva”.[53] Noutro momento, irá aduzir que “o fato que condiciona a sanção é produzido no processo judicial”.[54] Tratar-se-ia de um ato decisório. A aludida constituição pressupõe procedimento previamente estabelecido e autoridade competente, mediado pela verificação.[55] Ao comentar a postura kelseniana, Jordi Ferrer Beltrán observa que os efeitos jurídicos da decisão independem da verdade dos enunciados, aqui vista como correspondência,[56] isso porque a decisão tomada pode pautar-se por fato constituído com base em situação que efetivamente não aconteceu; mesmo assim a decisão terá caráter vinculativo, até que outra decisão venha retirá-la do sistema. Malgrado a construção de Jordi Ferrer Beltrán, Hans Kelsen encontra certo paralelismo entre o processo de produção de conhecimento e o processo de produção judicial.[57] A questão da verdade fica, mesmo como papel secundário, latente no processo de constituição do fato.

Outra vertente, mas com lastro na filosofia da linguagem, irá conferir nova roupagem à discussão. No Brasil, uma das referências neste modo de pensar é Paulo de Barros Carvalho. Nele, a prova ingressa como um enunciado linguístico apto a constituir o fato. Tal qual Hans Kelsen, a prova se insere no processo de positivação do direito.[58]

Esta elaboração já se encontra, de forma embrionária, em Carnelutti,[59] mas não com a radicalidade proposta por Paulo de Barros Carvalho, pois este toma o fato como relato linguístico do evento e, por isso, deve ser vertido em linguagem competente, sendo esta aquela estipulada pela ordem jurídica.[60]

Sua função é constituir o fato, que deixa de ser um elemento do mundo fenomênico e passa a ser uma categoria da linguagem. Estipula-se uma dicotomia entre evento e fato. O primeiro é irrepetível e efêmero, pois se dá no mundo fenomênico. Consome-se na cadeia temporal dos acontecimentos. Já o segundo é um relato daquilo que foi percebido pelo sujeito cognoscente. Assim, o fato não é o evento, mas o que dele se diz.[61] Cabe ao magistrado, na cognição, estabelecer a relação entre prova relato e fato relato. Cessa a dicotomia fato (evento do mundo fenomênico) e alegação sobre o fato, instaurando-se outra, como já salientado.

distinção entre fato e evento deita raízes na lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que afirma: “fato não é algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”.[62] Mais. Sobre a premissa habermasiana, que Paulo de Barros Carvalho utiliza como fundamento, o fato é visto como enunciado com pretensão de verdade,[63] e a existência do fato depende da prova, enquanto linguagem admitida pelo sistema como linguagem competente.[64]

A linguagem é capaz de constituir fatos para o futuro (situações fantásticas), mas no processo judicial volta-se ao passado. Tal assertiva pode ser constatada em nossos dicionários, como já assinalado, que põem como sinônimo de fato a expressão feito, realizado.[65]

Nas sendas de Paulo de Barros Carvalho, Fabiana del Padre Tomé irá afirmar que “provado o fato, tem-se o reconhecimento de sua veracidade”.[66] Verdade, em última análise, aparece nesta perspectiva como categoria inerente ao fato. Noutros termos: fato provado = fato verdadeiro = fato. Conclui-se que o fato não provado é um não fato, uma contradição. Mais. A expressão fato provado é uma redundância. Esta concepção acaba, de certa forma, voltando-se para a verdade como correspondência, mas sobre outras bases.

  1. Análise crítica das duas correntes

O relato de diversos modos de ver a prova e modo de sua aferição não só tem o condão de demonstrar a importância da temática e seu papel no contexto da cognição, como também de evidenciar que ela, embora com coloração distinta, possui um fio condutor que a orienta: a vinculação da prova à verdade ou a algo que se lhe assemelha, como a verossimilhança ou a probabilidade. Mesmo em Hans Kelsen, a função verificadora, enquanto procedimento, existe, malgrado possua função constitutiva.

A coincidência com relação a este ponto acaba por conferir um caráter necessário à relação. Neste contexto, a prova depende do sucesso na realização do fim. Se o fim não é alcançado, o meio é inidôneo. Noutros termos, a prova insuficiente a demonstrar o ocorrido é uma não prova. Ademais, a função probatória tem se dirigido apenas aos fatos controvertidos, como se no incontroverso ela não existisse. Ora, a existência ou não do incontroverso é fato, logo necessita de comprovação, ou seja, de prova, ainda que isso seja posto de lado. Ademais, se é incontroverso é porque de alguma forma está provado como tal. No caso, a aceitação é uma forma de prova, já que constata.

6.1 (In)subsistência da concepção declaratória

Como demonstrado, diversos estudos sobre o tema probatório partem da ideia de que existe uma verdade nos objetos, distinta das variações subjetivas que obscurecem o sentido intrínseco das coisas, pois se encontra pautada por outra realidade, objetivada pela prova, vista como um dado que se reporta a um fenômeno passado, conferindo, na atualidade, uma imagem idêntica ao ocorrido.

Esta maneira de vislumbrar o fenômeno probatório tem sofrido resistência, pois coloca a prova como elemento condicionante, mas distinto do fato que ela busca comprovar, além de desprezar a participação do sujeito na determinação do que é verdadeiro, já que a verdade é objetiva, está no objeto, coloca-se como uma categoria ontológica.

Entretanto, se se tomar a construção ontológica, percebe-se a formação de uma tautologia que torna sem sentido uma teoria que separa a prova do fato. Explica-se. A teoria propõe o seguinte: tendo em vista o fato “x”, então o fato “z”.[67] O “fato x” é a prova, e o “fato z” o acontecimento demonstrado, e, por isso, verdadeiro. O fato “z” será verdadeiro se o fato “x” existir. Para que o fato “x” exista, ele deve ser também verdadeiro, pois a concepção utilizada pelos autores clássicos parte da verdade como correspondência entre o real e o ideal. Neste caso, reduz-se o “fato z” ao “fato x”. Um é igual ao outro, numa relação de identidade, sendo desnecessária a separação prova e fato provado, já que idênticos.

A constatação acima lançada quer mostrar apenas que a concepção clássica acaba por gerar, no plano lógico, uma tautologia que nada acrescenta ao objeto identificado, sendo um igual ao outro.

Melhor sorte não possui a concepção que toma a prova com função declarativa, mas como argumento. No caso, é um argumento que fundamenta outro argumento, numa relação que pode ser assim descrita: se o argumento “x”, então o argumento “z”. A questão passou da comparação no plano das categorias reais para categorias argumentativas. A consequência é a mesma: tautologia, já que implica identidade.

Tal situação, em ambas as hipóteses, gera ambiguidade, porquanto a classificação identifica como diferente o que é idêntico e fere o princípio lógico da não contradição.[68]

Outra questão que deve ser levada em consideração é que, se a prova é tratada como argumento tendente a persuadir, fica de fora aquele que tem por função dissuadir ou produzir dúvidas. Tais funções são relevantes ao processo, tanto que utilizadas.

6.2 (In)subsistência da concepção constitutiva

Diante da concepção constitutiva, percebe-se que a prova constrói ou determina o fato. Mantém-se a dicotomia prova e fato, como nas concepções anteriores. Muda-se, entretanto, a instância, já que ambas, prova e fato, não são categorias do mundo fenomênico, mas categorias linguísticas produzidas segundo critérios previamente estipulados pela ordem jurídica. O fato assim não é efêmero, aquilo que se dilui como evento, no tempo e no espaço, mas constituído no processo de positivação do direito, na decisão jurídica.

A manutenção da dicotomia não se justifica, uma vez que fato seria aquele constituído segundo a linguagem competente das provas. As provas enquanto enunciados são utilizadas para criar o enunciado fato. Se a linguagem competente da prova constitui o fato, prova e fatos acabam por ser categorias idênticas.[69] Como salienta Fabiana del Padre Tomé, “prova é fato que atesta outro fato”.[70] Alega que o fato provado seria um metafato em relação à prova (fato).[71] Mas como é meta (prefixo que designa além, fora etc.) se é intra, já que a prova constitui o fato? Eis um problema.

Outra questão que se põe é que a relação entre fato prova e fato provado se dá por implicação.[72] Essa operação impõe uma relação condicional “se… então”. Tomando-se a ideia de prova como enunciado linguístico constitutivo do fato, a prova ingressa como elemento do fato e, possivelmente, único. Neste passo, a relação não seria de implicação, mas de identidade. Então, para que a diferença, se são iguais?

6.3 Prova como enunciado

As concepções rechaçadas utilizam a dicotomia entre fato e prova no intuito de justificar uma teoria da verdade, em certa medida ligada à concepção da verdade como correspondência. Tal relação, entretanto, mostra-se logicamente tautológica, pelo menos nos modelos explicativos até agora lançados, já que o fato provado é o fato verdadeiro, que é o fato. Indo em sentido oposto, em obra publicada originariamente em 1879, há a interessante perspectiva lançada por Adolf Wach, que se transcreve: “la comprobación de la verdad – ya lo hemos dito anteriormente – no es la finalidad de proceso civil y no puede serlo. Esa comprobación es un resultado contigente”.[73] Por essa razão, os critérios de uma verdade teorética não são o fim do processo, mesmo quando o magistrado é chamado para declarar se um documento é falso ou verdadeiro. Tal declaração não tem função apofântica, mas deôntica, já que estabelece normativamente uma situação, que deve ser.

Entretanto, a questão da verdade tem sido posta dentro do discurso jurídico, tanto que ela interfere no denominado processo cognitivo, a ser desenvolvido pelo magistrado, porquanto este emitirá um juízo de valor sobre os fatos trazidos pelas partes, mediante a linguagem da prova. Geralmente o tema verdade ingressa como correspondência, apesar de ela não ser determinante para a estipulação da decisão judicial, como bem lembrado por Adolf Wach. A insistência em modelos inspirados nas ciências naturais para a resolução dos casos no direito acaba por criar teorias inconsistentes inaptas para explicar o modo de funcionamento do aparato jurídico-decisório.

Aponta-se outro caminho cognitivo, já que a prova ingressa como enunciado, que deverá ter o condão de participar da formação de outros enunciados, no bojo do processo cognitivo. As aludidas pretensões de verdade delineadas pela doutrina de diversas colorações perdem de certa forma a referência de que, no processo, as proposições que dão base à decisão jurídica possuem pretensão de validade deôntica, como propugnado por Lourival Vilanova. Por essa razão a pertinente lição de Adolf Wach, que percebeu ser a prova um argumento sem pretensão de verdade, mas apto a construir uma decisão jurídica. Assim, neste trabalho, a prova será tratada como enunciado que participa da formação do enunciado decisório, máxime a parcela do enunciado que estabelece os antecedentes da norma jurídica primária e da norma jurídica secundária. Se o enunciado pode vir a ser correspondente ou não ao dado do real, se é que isso existe, é um problema do “real”.

Desta feita, a relação entre prova e fato são relações estabelecidas entre enunciados (enunciados provas e enunciados fatos) que irão compor a decisão jurídica. Isso se revela interessante, pois nada impede que um sentido do enunciado que não fora utilizado pelo magistrado para construir a norma solução para o caso, seja depois usado, pelo tribunal, para construir nova decisão.

  1. Negócio jurídico sobre a prova

Como restou assentado, o problema da verdade no processo nada mais é que um dos critérios de legitimação da decisão jurídica com relação ao antecedente da norma de decisão. Não é o fim do processo, embora o sistema possa utilizá-la para estabelecer a decisão. Faz isso quando se vale da distribuição do ônus da prova – estática ou dinâmica (art. 373 do Novo CPC) –, quando estipula o in dubio pro reo, quando torna inadmissível o uso de prova obtida por meio ilícito etc.

Neste contexto, não há nenhuma impropriedade em estabelecer critérios para se chegar a uma assertiva sobre o fato. Não é um negócio que fixa a verdade, mas um negócio que estabelece como o fato poderá ser provado.

Aqui, o magistrado deve construir a norma de decisão a partir dos critérios estipulados pela lei e pelas partes. Isto não é novidade. Veja-se, por exemplo, a regra da adstrição do juiz ao pedido que atrela o magistrado aos limites do litígio proposto pela parte. No caso, a adstrição pode não se limitar apenas ao pedido, mas pode transcender à de(monstra)ção dos fatos. Aqui a demarcação do radical latino do termo é importante, já que monstrare significa indicar, apontar, mostrar, eleger etc. Ou seja, a parte pode estipular os modos de indicar o fato, de demonstrá-lo.

Melhor que as partes, que têm conhecimento do fato, possam indicar os meios de prová-lo. Deixar isso para o magistrado implica entregar tal tarefa para quem ignora o fato e, simbolicamente, faz da venda sua forma vestimenta.

Não se está a defender que o magistrado seja manipulado pelas partes, mas que, quando as partes assim o desejarem, elas possam usar sua liberdade para estabelecer como o fato pode ser fixado no processo judicial. Mas isso, sempre levando em consideração a ordem jurídica. O sistema mesmo põe limites, como, por exemplo, questão que verse sobre direitos indisponíveis. Trata-se portanto de categoria jurídico- positiva, logo se submetendo às peculiaridades de cada ordenamento jurídico, diferente da categoria lógica-jurídica, que é perene.[74]

Por esta razão, pode-se afirmar que a estipulação do fato pode ser sim objeto de acordo de vontade, mesmo para quem é adepto, como Michele Taruffo, da verdade enquanto correspondência, como já demonstrado.

Desse modo, a autonomia da vontade pode estipular quais os critérios aptos a estabelecer a fixação dos fatos no processo. Já é assim. O autor e o réu provam como querem e o que querem, mas isso de modo unilateral. Por que não de forma plurilateral?

O sistema jurídico pode impor limites, mas isso é um problema de política legislativa. Caso haja limite, a estipulação no negócio jurídico contrária será nula. Esta possibilidade já existe no vigente CPC, por exemplo, no art. 333, parágrafo único, em sua redação original.[75]

Algo deve ficar registrado. Não se está a dispor sobre a verdade, mas dos meios para estabelecer o fato, enquanto antecedente da norma de decisão. Se o critério de aferição for a verdade, que esta seja medida pelo meio adequado fixado em lei ou pelas partes. Estipular, por exemplo, que a quitação de um débito deve ser demonstrada por documento escrito em nada fere a cláusula do devido processo legal. Pelo contrário, tal critério de prova irá compor o antecedente da norma jurídica. No caso, o fato é o pagamento demonstrado através de documento. O modo de demonstrar constitui o fato. Este é que irá ter por consequência a quitação. Se o indivíduo alega que pagou, mas traz outro tipo de prova para demonstrar o alegado, tem-se que o fato não se deu conforme o previamente estipulado, logo, é outro fato, no caso, inapto a funcionar como antecedente da norma de decisão.

Com a cláusula negocial sobre a prova, o negócio jurídico levado a juízo tem nele um elemento diferencial que o distingue de outro que não tenha tal cláusula. Em regra os negócios jurídicos podem ser provados de qualquer forma, tão só pelo meio estabelecido no negócio processual. Numa linguagem essencialista, o fato é, nos contornos da prova preestabelecida. Fora do contorno, há um fato, mas não o apto a fixar a consequência jurídica específica.

Pode-se assim afirmar que o negócio jurídico vincula as partes que participaram do acordo. Se o magistrado não participou do acordo, estará vinculado? Não. Mas deverá analisar o aludido fato jurídico nos contornos do que fora estipulado pelas partes. Já é assim quando analisa qualquer negócio jurídico. Não será diferente. Em juízo as partes levam o caso para que ele apresente a solução. O caso pode ou não ter negócio jurídico sobre a prova. Se tiver, deverá seguir seus contornos, sob pena de negar eficácia a negócio jurídico válido.

Não se negocia a verdade, mas a verdade é, segundo a prova. Esta pode ser, segundo os meios previstos em lei, ou negocialmente estabelecido pelos interessados. O negócio jurídico processual sobre a prova acaba por estipular o modo como irá ser produzida a norma de decisão. Veicula assim uma norma de estrutura, já que irá estabelecer como outras normas serão elaboradas, modificadas ou extintas.[76] Seu destino é o modo como o fato será introduzido no antecedente da norma de decisão.

O vigente sistema processual já contempla tal possibilidade, como assinalado, no art. 333. No novo CPC, a questão ganha relevo no art. 190, art. 362, art. 373 etc. Percebe-se que há uma nítida opção política de se colocar as partes com maior protagonismo na produção da solução judicial. Tal participação confere maior legitimidade ao processo, colocando as partes não como meros espectadores, senão como agentes aptos a produzir, de forma colaborativa, a decisão judicial. Reforça o que Hans Kelsen já assinalava como sendo função política do advogado (e também as partes) no processo, já que ele propõe norma.[77]

Percebe-se assim que a referida cláusula fortalece a ideia de processo justo, pois é um dos modos de realizar o contraditório efetivo, porquanto confere, de forma legítima, mecanismos para que as partes possam interferir na solução do litígio.

  1. Notas conclusivas

A análise aqui proposta teve por escopo estabelecer um debate com a perspectiva de Michele Taruffo sobre a possibilidade de negócio jurídico processual acerca da verdade no processo. Após a exposição da tese do autor italiano, percebe-se que embora ele repute não ser possível acordo negocial que tenha o modo como se dá a verificação do fato, isso é plenamente possível, mesmo tomando suas premissas como base.

Sendo possível, cabe ao sistema jurídico estabelecer os modos como tal negócio pode ser produzido. A possibilidade de negócio com tal objeto é um problema da dogmática jurídica. No caso pátrio, a possibilidade jurídica positiva já existe e será reforçada com a vigência do novo CPC, já em vacatio legis.

A discussão sobre verdade absoluta, real ou formal, não é relevante, já que o processo não tem por fim encontrar esta ou aquela verdade. Não cabe ao sistema jurídico imiscuir-se em terreno da epistemologia tão tormentoso. Cabe sim, estipular critérios para estabelecer determinados pressupostos para tomada de decisão, evitando-se, na medida do possível, a arbitrariedade. Espera-se que tais critérios sejam racionais e aceitáveis.

Neste contexto, a verdade ingressa como um dos critérios de legitimação da decisão sobre o fato, mas não o único. O sistema se vale de outros, tais como: decisão com base no in dubio pro reo, presunção de veracidade, ônus da prova, fato notório, fato incontroverso etc. Todos são meios utilizados pelo sistema para atestar o fato que irá ingressar como antecedente da norma de decisão.

Desta feita, a prova é um dos meios de se demonstrar a existência do fato – para quem reputa o fato como categoria distinta da linguagem; ou para atestar que determinados enunciados estão aptos a funcionar como antecedentes da norma de decisão – para quem considera fato como categoria linguística.

A prova tem por destinatário todos os partícipes do processo, como já ficou assentado no enunciado número 50 do II Fórum Permanente de Processo Civil (FPPC−Salvador), que assim assentou: “os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz”. Ela exerce função relevante para a constituição de fato, sendo plenamente possível e até louvável que seja objeto de negócio jurídico, desde que respeitada a ordem jurídica, pois acentua o caráter participativo dos diversos agentes na produção da decisão judicial. Tal cláusula realiza o denominado processo justo, sendo expressão do uso efetivo das garantias constitucionais do processo.

[1] TARUFFO, Michele. Verdade negociada? Trad. Pedro Gomes de Queiroz. In Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP –, ano 8, vol. XIII, jan./jun. de 2014, p. 634-657, Rio de Janeiro, http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/11928/9340, capturado na internet em 14.10.2014.

[2] Idem, ibidem, p. 635.

[3] Idem, ibidem, p. 635.

[4] Idem, ibidem, p. 636.

[5] Idem, ibidem, p. 636-637.

[6] Idem, ibidem, p. 638.

[7] Idem, ibidem, p. 639.

[8] Idem, ibidem, p. 639.

[9] Idem, ibidem, p. 640.

[10] Idem, ibidem, p. 640.

[11] Idem, ibidem, p. 641.

[12] Idem, ibidem, p. 641-642.

[13] Idem, ibidem, p. 642.

[14] Idem, ibidem, p. 643.

[15] Idem, ibidem, p. 646.

[16] Idem, ibidem, p. 646.

[17] Idem, ibidem, p. 647.

[18] Idem, ibidem, p. 648.

[19] Idem, ibidem, p. 649.

[20] Idem, ibidem, p. 650.

[21] Idem, ibidem, p. 650.

[22] Idem, ibidem, p. 650.

[23] Idem, ibidem, p. 651.

[24] Idem, ibidem, p. 651.

[25] “Adequação entre o que eu penso e a coisa.”

[26] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – Entre a facticidade e validade. Trad. Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, vol 1, p. 32-33.

[27] Idem, ibidem, p. 639.

[28] Sujeito vem de “sub+objecto” – aquele que fica abaixo contemplando o objeto.

[29] MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia – Lições Preliminares. Trad. Guilherme de la Cruz Coronado. 8. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1980, p. 299-301.

[30] A respeito, ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. 6ª ed. Campinas: Unicamp, 2009.

[31] Com relação a interpretação correta, tem-se seriíssimas restrições à tese, mas não será tratado neste artigo, para evitar fugir do tema.

[32] Trata-se de norma não necessária, mas que aparece nos casos de previsões de multas pelo descumprimento do contrato, por exemplo.

[33] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª ed. São Paulo: 2000, p. 188-214.

[34] AQUINO, Santo Tomás. Suma de Teologia. 2ª ed. Trad. José Martorell et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, T. I, parte I, p. 231.

[35] MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 203, p. 15.

[36] MELENDO, Santiago Sentis. La prueba: los grandes temas del derecho probatório. Buenos Aires, 1979, p. 16.

[37] AROCA, Juan Montero. La prueba en el proceso civil. 5ª ed. Madrid: Civitas, 2007, p. 71.

[38] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. São Paulo: RT, 2009, p. 52-53.

[39] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual. 6ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, vol. III, p. 46. No mesmo sentido, DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação de tutela. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 44.

[40] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Forense, 1997, vol. IV, p. 248.

[41] “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (…)”

[42] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Trad. Lisa Pary Scarpa. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. 44.

[43] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., p. 47.

[44] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., p. 72-73.

[45] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., p. 48.

[46] CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Lider, 2002, p. 50.

[47] CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Op. cit., p. 51.

[48] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., p. 72.

[49] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., p. 73.

[50] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., pp. 61, 67-68 e 71.

[51] CARNELUTTI, Francesco. Direito processual civil e penal. Trad. Júlia Jimenes Amador. São Paulo: Péritas Editora, 2001, p. 165.

[52] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. Op. cit., p. 57.

[53] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 265.

[54] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p. 269.

[55] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p. 266.

[56] BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 21.

[57] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p. 268.

[58] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 824.

[59] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Op. cit., p. 30. CARNELUTTI, Francesco. Direito e processual civil e penal. Op. cit., p. 165-167.

[60] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos da incidência. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 106.

[61] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Fundamentos da Incidência. Op. cit., p. 93-94.

[62] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, Decisão, Dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 278.

[63] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos da incidência. Op. cit., p. 105.

[64] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos da incidência. Op. cit., p. 106.

[65] HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed., rev. e ampl. 36ª reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 761.

[66] TOMÉ, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 35.

[67] BENTHAM, Jeremías. Tratado de las pruebas judiciales. Op. cit., p. 23.

[68] TUGENDHAT, Ernst; WOLF, Ursula. Propedêutica lógico-semântica. Trad. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 43.

[69] TOMÉ, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. Op. cit., p. 71 e 79.

[70] TOMÉ, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. Op. cit., p. 71. BENTHAM, Jeremías. Tratado de las pruebas judiciales. Op. cit., p. 23.

[71] TOMÉ, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. Op. cit., p. 72.

[72] TOMÉ, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. Op. cit., p. 71.-72.

[73] WACH, Adolf. Conferencias sobre la ordenanza procesal civil alemana. Trad. Ernesto Krotoschin. Buenos Aires: Europa-America, 1958, p. 224.

[74] TERÁN, Juan Manuel. Filosofia del Derecho. 14. ed. México: Porrúa, 1998, p. 81-83.

[75] Art. 333, parágrafo único, CPC: “É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando: I – recair sobre direito indisponível da parte; II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

[76] BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 1ª reimp. Brasília: Polis e Editora Universidade de Brasília, 1990, p. 33-34 e 45.

[77] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op. cit., p. 396.

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