- Uma campeã.
Rayssa Leal, medalhista olímpica pelo Brasil com apenas 13 anos(!), nos representou com graça e muito sucesso nas olimpíadas de Tóquio. Mas ela não era anônima antes disso, muito pelo contrário. Rayssa ficou famosa pelo vídeo que até hoje “viraliza” na web, fazendo uma manobra lendária no seu skate, um heel flip[1], quando tinha apenas 7 anos de idade.
Tão impressionante que foi à época para sua idade, o skatista mundialmente renomado Tony Hawk postou em 2015 no seu perfil do Instagram o vídeo que naturalmente “viralizou”. Por estar vestida como uma fada azul, assim, o apelido “fadinha do skate” se consolidou rapidamente. Entretanto, com a fama, também vieram alguns percalços.
- Parasitismo?
Em consulta à base de marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, verifica-se que, em setembro de 2019, uma empresa de odontologia depositou a marca “fadinha do skate” em três classes de Nice diferentes: NCL 25 para distinguir vestuário, calçados e chapelaria, NCL 44 para distinguir serviços médicos e veterinários e NCL 41 para distinguir serviços educacionais e de entretenimento.
Posteriormente, após o deferimento das marcas pela referida empresa, Rayssa, através de seu pai, protocolou um pedido administrativo de nulidade das referidas marcas, alegando que o apelido “Fadinha do Skate” era notoriamente conhecido, juntando provas deste fato. O pedido ainda está pendente de apreciação pela Autarquia Federal.
Tal conduta, por parte da empresa de odontologia se assemelha bastante à prática de aproveitamento parasitário, conforme consigna Neumayr (2010[2]), citando Mazzola (2004, p. 43):
“Em suma, a diferença principal entre os institutos da concorrência parasitária e do aproveitamento parasitário é que na primeira existe o desvio de clientela, já que os envolvidos são concorrentes, enquanto na segunda o que a evidencia é a tentativa do infrator de se beneficiar graciosamente do trabalho, do investimento e da criação de terceiro, que não atua no mesmo ramo do parasita.”
Recentemente, após a medalha nas olimpíadas de Tóquio, uma advogada procedeu ao depósito da marca “fadinha do skate” (pendente de publicação na Revista de Propriedade Industrial – RPI), por não encontrar nenhum pedido de registro de marca em prol de Rayssa. A causídica prometeu transferir o pedido de registro à Família da campeã olímpica[3], visando preventivamente protegê-la.
- A proteção ao pseudônimo, nome e apelido.
Tanto o nosso Código Civil (Lei nº 10.406/2002, art. 19[4]) como a lei de Propriedade Industrial (LPI – Lei nº 9.279/96, art. 124, XVI[5]) protegem o pseudônimo. Outras legislações também o fazem, como a Lei de Direitos Autorais, mas aqui vamos nos adstringir ao uso do nome, apelido ou pseudônimo como marca.
O Código Civil eleva a proteção do pseudônimo ao mesmo nível do nome próprio. E não poderia deixar de ser, o pseudônimo, o apelido, assim como o nome próprio, são direitos da personalidade, especialmente vinculados ao direito à identidade.
Carlos Alberto Bittar (2015[6]) definia o direito à identidade como direito fundamental, que permite a individualização da pessoa e evitar confusão com outra, tanto no núcleo familiar, como “sucessório, negocial, comercial e outros” (§103).
- Do uso do nome próprio, apelido ou pseudônimo como marca
A LPI, como já visto, proíbe expressamente o registro do nome próprio/pseudônimo/apelido como marca senão com consentimento expresso do titular. Entretanto, o nome desse portal não seria “Contraditor” se apenas trouxéssemos uma visão unilateral.
A marca é, conforme dicção expressa legal (art. 122 LPI), o signo distintivo visualmente perceptível não compreendido nas proibições legais. A marca serve para diferenciar um produto ou serviço de outro de mesma natureza, mas de origem distinta.
No Brasil, o legítimo titular da marca é o que primeiro a deposita, segundo o princípio da anterioridade. É possível alegar a precedência do uso no mercado, mas tal alegação deve ser feita administrativamente em sede de oposição dentro do prazo de 60 (sessenta) dias da publicação da RPI. De outra sorte, o INPI entende que esse direito não poderia ser invocado, por exemplo, em sede de Pedido Administrativo de Nulidade, que tem natureza jurídica recursal.
O registro de marcas no Brasil é regido segundo o sistema atributivo, para o qual só detém a marca quem a deposita perante o INPI, contrariamente ao que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos da América, onde o sistema declarativo é vigente. Nesse último sistema, o registro “serve apenas como uma simples homologação de propriedade”[7].
Ademais, a marca só possui proteção em determinado ramo de atuação, separadas segundo as classes previstas no acordo de Nice, classificação internacional de produtos e serviços em 45 classes.
Poder-se-ia dizer que o depositante das marcas “FADINHA DO SKATE”, diga-se, registrada perante o INPI em três classes diferentes não sabia da fama da skatista (hoje medalhista) ou sequer sabia de sua existência. Também é possível imaginar que, à época, Rayssa não era tão famosa, afinal, entre seu vídeo viral em 2015 e o depósito da marca em 2019, transcorreram-se quatro anos.
Também é possível considerar que os próprios analistas de marcas do INPI não sabiam da existência de Rayssa, pois deferiram três marcas diferentes em três classes diferentes à empresa que não apresentou autorização da titular da alcunha para uso do termo.
Assim, se não existirem indícios de aproveitamento parasitário, é possível que a empresa que depositou as marcas tenha legítimo interesse em deter dos termos.
Entretanto, considero que o direito da personalidade se sobrepõe ao direito da propriedade intelectual nesse caso, não só estando previsto nas proibições legais de registro de marca, como seu uso pode ser considerado aproveitamento parasitário, o que se constituiria em “outras práticas de concorrência desleal” previstas no art. 209 da LPI, se provada a má-fé.
- Conclusão
Toda essa exposição é necessária para demonstrar que os examinadores do INPI que analisam pedidos de registro de marcas não são oniscientes, sendo fundamental procurar o registro da marca no ramo de atuação pretendido antes que terceiros o façam, visando evitar a situação à qual Rayssa está sendo submetida, no sentir de seu genitor, que lhe ofende o Direito à Individualidade.
É louvável a preocupação do pai de Rayssa em procurar a nulidade do registros das marcas que potencialmente se utilizam do nome e imagem de sua filha para ganhar evidência. Entretanto, tão importante quanto procurar sair em defesa dos interesses jurídicos de sua filha, seria procurar ganhar evidência nos próprios termos dela e ditar o discurso que ela bem entender, com um uso estratégico da Propriedade Intelectual potencial decorrente do uso da imagem e da marca.
Um exemplo de uso da propriedade intelectual de forma bastante inteligente foi do próprio Tony Hawk. Ele é famoso não só por ser o primeiro skatista do mundo a ser bem-sucedido na manobra “900” (constituindo-se de um giro de 2 vezes e meia com o skate numa rampa, formando uma revolução de 900º), como pela franquia de jogos de videogame “Tony Hawk’s Pro Skater”[8] que foi um grande sucesso.
Além de sua habilidade como skatista, o uso de sua imagem e nome associados ao jogo o fizeram ter fama e renome mundiais, além de dinheiro. A franquia de jogos fez com que Tony Hawk se tornasse um milionário e, em matéria do “The Verge”, relata-se que a franquia fez 1,4 bilhões de dólares[9].
Participar da concepção e criação jogo foi a ideia de Tony Hawk, mas vários caminhos estão à frente de Rayssa. Ela pode criar um jogo, uma marca de roupas, uma banda de punk, enfim, o que lhe “der na telha”. E o que dá na telha e, consequentemente, traz retorno, é economia laranja!
[1] https://www.youtube.com/watch?v=J_i6Tt0HLdQ
[2] NEUMAYR, Rafael. APROVEITAMENTO PARASITÁRIO DOS ELEMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO DA EMPRESA: deslealdade entre não concorrentes (Dissertação). Faculdade de Direito Milton Campos. 2010.
[3] https://www.migalhas.com.br/quentes/349128/fadinha–advogada-registra-marca-e-repassa-direitos-a-rayssa-leal
[4]Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.
[5]Art. 124. Não são registráveis como marca:
(…)
XVI – pseudônimo ou apelido notoriamente conhecidos, nome artístico singular ou coletivo, salvo com consentimento do titular, herdeiros ou sucessores;
[6] BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8 ed., rev. Aum. E mod. por Eduardo C. B. Bittar. – São Paulo: Saraiva, 2015.
[7] http://manualdemarcas.inpi.gov.br/projects/manual/wiki/02_O_que_%C3%A9_marca
[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Tony_Hawk%27s_Pro_Skater
[9] https://www.theverge.com/2019/9/10/20857772/tony-hawk-pro-skater-activision-skateboarding-game-20-anniversary