A Ciência Dogmática do Direito, ou dogmática jurídica, é proveniente do pensamento dogmático, caracterizado pela impossibilidade de questionamento e problematização de suas premissas e pressupostos. Isso porque, as premissas “foram estabelecidas (por um arbítrio, por um ato de vontade ou de poder) como inquestionáveis”.[1]
Nessa perspectiva, a dogmática possui como princípio a inegabilidade dos pontos de partida, que consiste na assunção de postulados inquestionáveis a serem trabalhados a partir de si próprios, que irão orientar e dar condições para uma ação.[2]
É o que leciona Michel Troper:
Se a atividade é chamada de ‘dogmática’, é porque pressupõe a adesão a certo número de ideias, que não são postas em questão: que o legislador é racional; que os enunciados têm sentido; que esse sentido pode ser descoberto; que o sistema é completo, ou que o direito positivo não comporta lacunas nem contradições, ou então que estas últimas podem ser eliminadas por meio de certos métodos; enfim, que se pode, por intermédio do raciocínio lógico, conhecer a norma aplicável a não importa qual seja o caso particular.[3]
Nesse sentido, pela irrefutabilidade do dogma[4], a dogmática jurídica “cumpre funções típicas de uma tecnologia”, pois pode “instrumentalizar-se a serviço da ação sobre a sociedade”[5], o que cria um envoltório nos fundamentos produtores da normatividade e impossibilita que sejam problematizadas a inconsistência e a aplicação do Direito.[6]
A Ciência Dogmática do Direito, conforme a denúncia de Rosemiro Pereira Leal, consiste em ser “um instrumento lógico-jurídico de livre manobra dos experts e autoridades para realizar, de modo nomológico e tópico-retórico (doutrinário), com apoio na dogmática analítica, a mítica dos ideais de falaciosa justiça, paz, bem comum e fins sociais de um direito que pode ou não ser legislado”.[7]
Ocorre que essa perspectiva dogmática no ensino jurídico acaba por reduzir o Direito ao entendimento daquilo que pensam e decidem juízes e tribunais, o que torna as decisões judiciais inquestionáveis e reveladoras de um saber jurisprudencial que se entrelaça “com a subjetividade, a simbologia, o discurso de autoridade e os significados produzidos pela auctoritas, que constituíram a assinatura jurídica ad nauseam, até nos livros considerados os melhores”.[8]
Isso porque, deposita-se na autoridade de juízes e tribunais o fato de que a resolução de todos os problemas, conflitos e anseios sociais ocorrerão por meio de decisões baseadas em critérios extralegais e metajurídicos.
Nessa perspectiva, o ensino dogmático acaba por reforçar o autoritarismo judicial, já que nos livros e nas salas de aula somente são reproduzidas decisões judiciais, precedentes, padrões decisórios, súmulas e jurisprudência que, em diversas vezes, são fundadoras e conservadoras de práticas autocráticas que relativizam direitos fundamentais e mantém os seus pontos de partida inquestionáveis.
Desta feita, o ensino jurídico acaba contaminado por essa letargia dogmática repetidora de teorias (ideologias!) que reforçam os poderes estatais sem quaisquer tipos de refutações críticas ou questionamentos por teorias mais avançadas, construídas e conjecturadas cientificamente. O ensino jurídico e, consequentemente, as decisões estatais, tornam-se discursos tópico-retóricos que apenas refletem a opinião dos mais insignes especialistas alocados em um senso comum obscuro e autoritário.
Essa simplificação de um ensino jurídico inquestionável, alinhado ainda com a multiplicação desenfreada de faculdades de direito[9], ao neoliberalismo[10], à produção incessante sem qualidade em uma sociedade cansada[11], à tecnologia que tem deixado as pessoas com pensamento cada vez mais raso e superficial[12], mantém a sacralização dos julgadores que “continua a eivar toda a legislação, todos os profissionais do Direito e o ensino jurídico das universidades do país, que não se preocupam em esvaziar o mito da autoridade e acabam por manter a tirânica imagem do Estado-Juiz solipsista como o salvador e justiceiro de todos os problemas sociais”.[13]
Acertada é a crítica de Lênio Luiz Streck:
Com efeito, o ensino jurídico continua preso às velhas práticas. Por mais que a pesquisa jurídica tenha evoluído a partir do crescimento do número de programas de pós-graduação, estes influxos reflexivos ainda estão distantes das salas de aula dos cursos de graduação, não se podendo olvidar, nesse contexto, que o crescimento da pós-graduação é infinitamente inferior à explosão do número de faculdades instaladas nos últimos anos.
A cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa cientificidade, ainda predomina na maioria das faculdades de direito. Forma-se, assim, um imaginário que “simplifica” o ensino jurídico, a partir da construção de standards e lugares comuns, repetidos nas salas de aula e, posteriormente, nos cursos de preparação para concursos (hoje já existem cursinhos de preparação para ingresso nos cursinhos), bem como nos fóruns e tribunais.
Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos.[14]
Frise-se, a redução do ensino jurídico à reprodução dogmática de teorias não democráticas e inquestionáveis, faz com que o Direito seja apenas e tão somente aquilo que pensam juízes e tribunais, o que impossibilita questionamentos e o exercício de crítica, já que o sentido normativo passa a “ser preenchido por um decisor (intérprete) que diz absolutamente o que quer”. [15]
Defendemos que o ensino jurídico deve se realizar por constrangimentos epistemológicos[16], ou seja, deve se dar por meio de refutações críticas e testificações teorizadas, não só de decisões estatais, mas, também, da própria legislação, a fim de que os alunos, juristas e profissionais do direito possam ter um pensamento crítico acerca da realidade que lhes é imposta. Deve-se impedir que o Direito se reduza a dogmas e verdades absolutas impostas por uma assembleia de especialistas que visa apenas o alinhamento técnico-eficientista de decisões.
Logo, o ensino jurídico não pode se balizar pelo dogmatismo, irrefutável e insuscetível à crítica, caracterizado por ser um “saber fechado e estático”[17] de cunho solipsista, que reduz as chances de identificação de erros e inconsistências nas teorias, impedindo a sua evolução.
É por tal motivo que André Del Negri expõe que o(a) professor(a) deve ousar e ter coragem para lecionar o Direito a partir de desconstruções e argumentos críticos, a fim de seja possível evitar uma tirania jurisprudencial:
Afinal, ser professor ou professora exige coragem para assumir posições contrárias a esse quadro mirrado.
As reflexões críticas no plano acadêmico não podem ser feitas de voz baixinha, quase entre dentes, meio de lado, sem dizer “A” querendo dizer “B”, nos sussurros, nas entrelinhas no inconfesso do discurso.
[…]
À evidência, a opção para nos livrar da tirania jurisprudencial, bem como de políticos, empresários e banqueiros geradores de monstruosidades, não virá com aulas de ‘linguagem emocional’, nem com livros de meras estamparias.
De mais a mais, em tempos de violação generalizada a direitos fundamentais, o professor não deve se intimidar ante a truculência de autoridades, embustes e decisões pela tangente. Essa perplexidade diante de uma geração de jovens estudantes deve ser exposta e enfrentada. [18]
Logo, o ensino jurídico e o Direito não podem se reduzir ao que pensam juízes e tribunais, já que desse modo se impedirá que o obscurantismo secular permeie nas salas de aula. O que se deve buscar é um ensino jurídico pautado na construção do Estado de Direito Democrático, que seja “capaz de desvelar os mecanismos que naturalizam as mais diversas opressões e afastar os obstáculos que bloqueiam a consciência das opressões e dos riscos inerentes ao afastamento (o que alguns hipócritas chama de ‘relativização’) dos direitos fundamentais”.[19]
Assim, para ser possível a construção de uma sociedade efetivamente democrática, o ensino jurídico não pode se dar pelo referencial de uma anacrônica metodologia dogmática, mas, sim, de um constrangimento epistemológico que permita ao professor, alunos e profissionais, a desconstrução, o exercício de crítica e a perquirição dos fundamentos das instituições jurídicas, sem que a tirania jurisprudencial prevaleça sobre direitos e garantias fundamentais.[20]
REFERÊNCIAS
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BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
CARR, Nicholas. Superficiales: ¿Qué está haciendo Internet con nuestras mentes?. Trad. Pedro Cifuentes. Barcelona: Debolsillo, 2018.
CASARA, Rubens. Ensino jurídico após Auschwitz. In: DEL NEGRI, André (Org.). Direito e ensino jurídico em desordem. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 403-414.
DEL NEGRI, André. Direito e ensino jurídico à beira do precipício – tudo que desassossega. In: DEL NEGRI, André (Org.). Direito e ensino jurídico em desordem. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 11-49.
DEL NEGRI, André. Discricionariedade e autoritarismo: o que fica oculto na decisão que impede o direito de informação?. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.
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LEAL, Rosemiro Pereira. A Teoria Neoinstitucionalista do Processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013.
MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial. In: FREITAS, Sérgio Henriques Zandona; LEAL, André Cordeiro; FRATTARI, Rafhael; ENGELMANN Wilson. (Org.). Jurisdição e Técnica Procedimental. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, v. 6, p. 45-80.
RABELO, Júlia Gomide Antunes; MUNDIM, Luís Gustavo Reis; PAOLIELLO, Pedro Henrique Lacerda. Os perigos da nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: ALVES, Lucélia et all. 4 anos de vigência do Código de Processo de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 341-368.
ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso, racionalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito, 2020.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e ensino jurídico em terrae brasilis. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 46, dez. 2007. ISSN 2236-7284. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/13495/9508>. Acesso em: 31 jul. 2021.
TROPER, Michel. A filosofia do direito. Trad. Ana Deiró. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[1] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 20.
[2] ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso, racionalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.
[3] TROPER, Michel. A filosofia do direito. Trad. Ana Deiró. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 75.
[4] “O dogma, em sentido material, é para o teólogo uma verdade que se contém nas fontes de revelação divina, para o jurista é uma verdade que se contém no conjunto sistemático dos imperativos que procedem das fontes concretas do direito”. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 703.
[5] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, cit.,p.20.
[6] GRESTA, Roberta Maia. Introdução aos Fundamentos da Processualidade Democrática. Coleção estudos da Escola Mineira de Processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, v. 1, p. 03.
[7] LEAL, Rosemiro Pereira. A Teoria Neoinstitucionalista do Processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 14.
[8] DEL NEGRI, André. Direito e ensino jurídico à beira do precipício – tudo que desassossega. In: DEL NEGRI, André (Org.). Direito e ensino jurídico em desordem. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 12.
[9] DEL NEGRI, André. Direito e ensino jurídico à beira do precipício – tudo que desassossega, cit. p.26-31.
[10]DEL NEGRI, André. Direito e ensino jurídico à beira do precipício – tudo que desassossega, cit. p.38-45
[11] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
[12] CARR, Nicholas. Superficiales: ¿Qué está haciendo Internet con nuestras mentes?. Trad. Pedro Cifuentes. Barcelona: Debolsillo, 2018.
[13] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial. In: FREITAS, Sérgio Henriques Zandona; LEAL, André Cordeiro; FRATTARI, Rafhael; ENGELMANN Wilson. (Org.). Jurisdição e Técnica Procedimental. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, v. 6, p. 60.
[14] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e ensino jurídico em terrae brasilis. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 46, dez. 2007. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/13495/9508>. Acesso em: 31 jul. 2021, p.34-35.
[15] DEL NEGRI, André. Discricionariedade e autoritarismo: o que fica oculto na decisão que impede o direito de informação?. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p. 110-111.
[16] O constrangimento epistemológico consiste em “colocar em xeque decisões que se mostram equivocadas”, posto que as decisões “podem – e devem – ser objeto de críticas, e não meramente acatadas a partir de um discurso de autoridade”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito, 2020, p. 62. Já tivemos a oportunidade de defender que o constrangimento epistemológico deve estar alinhado à epistemologia quadripartite, ou seja, deve levar em consideração as bases morfológicas da técnica, ciência, teoria e crítica, a fim de que não haja a transformação do conhecimento jurídico científico em dogmas insuperáveis e inquestionáveis. RABELO, Júlia Gomide Antunes; MUNDIM, Luís Gustavo Reis; PAOLIELLO, Pedro Henrique Lacerda. Os perigos da nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: ALVES, Lucélia et all. 4 anos de vigência do Código de Processo de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 341-368.
[17] BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 24.
[18] DEL NEGRI, André. Direito e ensino jurídico à beira do precipício – tudo que desassossega, cit., p. 19-20.
[19] CASARA, Rubens. Ensino jurídico após Auschwitz. In: DEL NEGRI, André (Org.). Direito e ensino jurídico em desordem. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 413.
[20] “A tríade eficacial, ensino-pesquisa-extensão, como já dito linhas atrás, só ganha sentido se as pontas se relacionarem. Vira outra coisa ou mesmo nada se houver cursos sustentados por um curriculum de disciplinas reféns de uma dogmática jurídica, que não confere formação científica ao estudante para habilitá-lo na compreensão das instituições públicas hipercomplexas, para lidar com o esclarecimento e apontar soluções para desafios sociais. É aí que o ensino revela má formação. Se todos esses elementos não entrarem no jogo, essa ‘lobotomia acadêmica’ não mudará”. DEL NEGRI, André. Direito e ensino jurídico à beira do precipício – tudo que desassossega, cit., p. 36.