PROVA TESTEMUNHAL, INJUSTIÇA EPISTÊMICA E PRECONCEITO IMPLÍCITO NOS PROCESSOS DE FAMÍLIA

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O tema da prova testemunhal é dos mais desafiadores em termos de direito probatório. Felizmente, já contamos com obras que lançam muitas luzes sobre o tema e sobre a forma como esse meio de prova é tratado no direito brasileiro. Vitor de Paula Ramos, em sua obra sobre Prova Testemunhal[1], traz um panorama muito interessante sobre os lugares comuns relacionados à prova testemunhal, os quais vêm sendo praticados por várias décadas e até mesmo encontram guarida nos códigos processuais.

O autor aborda questões relacionadas ao avanço da psicologia do testemunho, especialmente no que diz respeito às informações sobre a confiabilidade da memória e a forma como as recordações são construídas e acessadas. Além disso, aborda o estado da arte da prova testemunhal no Brasil, constatando algumas bases muito problemáticas acima das quais, em geral, a prova testemunhal está assentada. Desde as posições sobre uma suposta hierarquia da prova testemunhal – o art. 443 do CPC/2015 transmite a ideia de uma prova que terá cabimento por exclusão – passando pela forma como contaminação da testemunha é tratada em nosso ordenamento (havendo a preocupação apenas com o momento da audiência) até o momento crucial da valoração da prova, em que os testemunhos são tratados da mesma forma, ou seja, sem considerar as diferenças no tipo de experiência vivida.

Todas essas questões têm impactos nos processos judiciais, especialmente na forma como a prova testemunhal deve ser tratada. Conforme bem salientado pelo autor, os fatos e as pessoas são diferentes, então, naturalmente, as experiências testemunhadas também o são, não havendo que se falar de testemunho, mas de testemunhos, que podem envolver fatos mais simples, corriqueiros ou instantâneos, até fatos mais complexos e praticados ao longo de tempo significativo.

Exatamente por existirem  “testemunhos” e não “testemunho” é que é preciso reconhecer que a prova testemunhal não deve ser encarada de modo uniforme independentemente do contexto do processo em que é utilizada. Quando se fala em processos que envolvem causas familiares, as problemáticas já intrínsecas à prova testemunhal são ainda mais acentuadas. Em geral, as testemunhas de fatos relevantes ao destrame de ações de família são pessoas que detêm maior proximidade (o que é comumente relacionado a menos “isenção”) com as partes e, até mesmo, com o objeto litigioso do processo.

O problema é justamente que, em se tratando de situações ocorridas no ambiente mais íntimo das pessoas, em seu seio familiar, em determinadas situações a única prova possível é, justamente, a prova testemunhal. Em demandas que envolvem direito de família, em geral, a posição que as partes ocupam no processo estão marcadas por conceitos e estereótipos sedimentados socialmente ao longo de séculos. Maternidade, paternidade, filiação, parentalidade, guarda de menores, papeis de gênero. Porém, o impacto dessas questões não diz respeito somente às partes, mas também às testemunhas. Diante de estudos mais recentes relacionados à injustiça epistêmica, parece ser possível concluir que, por exemplo, em processos que envolvem guarda, alienação parental e violência de gênero, a posição ocupada pela testemunha poderá interferir na credibilidade que lhe será atribuída.

O conceito de injustiça epistêmica é bastante amplo, abrangendo desde a distribuição desigual do conhecimento disponível até a avaliação discriminatória do conhecimento produzido por determinados grupos estigmatizados[2]. No âmbito específico da prova testemunhal, pode ocorrer uma discriminação epistêmica quando pesos diferentes sejam atribuídos a situações semelhantes tendo como critério de diferenciação apenas os estereótipos dos interlocutores.

A “injustiça testemunhal” seria uma espécie do gênero maior “injustiça epistêmica”, ocorrendo justamente quando a capacidade de uma testemunha de contribuir para a elucidação de determinados fatos que presenciou é questionada com base no pertencimento a determinado grupo social ou étnico. Também pode haver injustiça testemunhal quando o oposto acontece, ou seja, quando a maior credibilidade atribuída a um testemunho se relaciona exclusivamente ao grupo social ao qual pertence. Estamos diante, portanto, de um decréscimo ou de acréscimo de credibilidade com base apenas no pertencimento da testemunha a um determinado grupo social.

Nesse mesmo contexto, pode haver situações no sentido de maximizar determinados “defeitos” que seriam vinculados aos estereótipos de determinados grupos. Por exemplo, uma emoção maior ou uma manifestação de insegurança advinda de uma mulher mãe como testemunha em processo de guarda tendem a ser hiperconsiderados, sendo que a mesma manifestação “emocionada” caso advinda de um homem sem filhos seria considerada não apenas de forma a não comprometer o seu testemunho, mas justamente no sentido contrário, o de aumentar a sua credibilidade. Veja-se: não é difícil visualizar uma emoção manifestada por uma mulher mãe sendo utilizada como fator de decréscimo de credibilidade, enquanto uma emoção manifestada por um homem sem filhos pode ser interpretada como fator de aumento da credibilidade daquela testemunha.

No entanto, esses aspectos que levam à diferenciação entre os pesos de um testemunho com base no grupo ao qual as testemunhas pertencem podem ser mais ou mens evidentes, sendo necessário manejar outros conceitos.

George Marmelstein aponta que existem três modalidades de preconceito que podem orientar comportamentos com teor discriminatório: o preconceito explícito, o preconceito dissimulado e preconceito implícito. Os dois primeiros se manifestam de forma voluntária, consciente, sendo que a diferença é que, no preconceito dissimulado, se busca esconder ou omitir as razões que levaram à conclusão. No preconceito implícito, não há a intenção de discriminar, dizendo respeito a um agir inconsciente[3].

Aquele que age com preconceito implícito pratica um determinado ato prejudicial a determinado grupo sem nem mesmo saber que sua motivação pode estar influenciada por uma associação automática. A formação do preconceito implícito é guiada pela lógica do menor esforço, funcionando como um atalho que é acionado quando há a necessidade de se tomar uma decisão rápida. Exatamente por essas razões relacionadas à dificuldade de identificação do preconceito implícito, este parece ser o mais desafiador do ponto de vista jurídico.

Apesar de o estudo desses conceitos ser mais relacionado ao direito antidiscriminação, este é apenas um dos campos afetados pelo avanço da compreensão acerca dos preconceitos implícitos, podendo ser possível concluir que impacta em questões relacionadas à prova testemunhal. O reconhecimento da existência do preconceito implícito é, conforme Marmelstein, o primeiro passo para compreender sua relevância jurídica.

É urgente refletir sobre os processos de família – tratando-se aqui especificamente da prova testemunhal em tais processos – do ponto de vista dos conceitos trazidos pelos estudos sobre injustiça epistêmica e sobre preconceitos implícitos, tendo em vista o fato de serem demandas profundamente marcadas por estereótipos, os quais afetam não somente as partes, mas também as testemunhas.

Parece ser possível concluir que os processos de família são campo fértil para estereótipos e até mesmo, no âmbito da prova testemunhal, de estereótipo agindo sobre estereótipo: a testemunha pertencente a um determinado grupo é estereotipada especificamente por se manifestar sobre fatos que se relacionam a outros estereótipos a respeito dos quais ela seria “desautorizada” ou “descredibilizada” a se manifestar.

[1] Prova testemunhal – do subjetivismo ao objetivismo, do isolamento científico ao diálogo com a psicologia e a epistemologia. Vitor de Paula Ramos – Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

[2] FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. Oxford University Press: Nova Iorque, 2007.

[3] MARMELSTEIN, George. Discriminação por preconceito implícito. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

Acompanhe a coluna ABDPro no Contraditor.com.

Autor

  • Advogada, professora, mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Interpretação e Decisão Judicial (NUPID-UFC), Presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/CE, vice-presidente da Comissão de Direito Processual da OAB/CE e membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPRO.

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