PROVA EX OFFICIO, BUSCA DA VERDADE E O RESP 1.693.344/RJ

Em 2021, o Superior Tribunal de Justiça proferiu acórdão no Recurso Especial nº 1.693.344/RJ, o qual tratou sobre a prova de ofício. Para além de algumas críticas já realizadas ao julgado[1][2] (as quais concordamos), a conclusão do mencionado julgado nos parece correta, no entanto, seus fundamentos demonstram ser equivocados e não condizentes com os avanços estudos sobre a epistemologia probatória.

Em resumo, a lide julgada pela Segunda Turma do STJ tratava de uma ação civil pública que buscava demonstrar a existência de cartel entre empresas fornecedoras de gases hospitalares. Os pedidos foram julgados improcedentes em razão da ausência de provas, em primeiro e segundo graus de jurisdição, visto que o MP não havia colacionado autos de procedimento administrativo em que tais empresas haviam sido condenadas.

Ao interpor Recurso Especial, o Ministério Público defendeu ampla possibilidade de o juiz produzir prova de ofício e determinar que o CADE juntasse ao caso em julgamento os autos do procedimento administrativo movido em face das empresas. Argumentou que tal possibilidade se daria, também, em nome do livre convencimento motivado.

A Segunda Turma do STJ entendeu que não seria possível a determinação da prova ex officio, vez que “não há que se falar em ampla atividade probatória a cargo do julgador de forma a alcançar diligências que uma das partes, a tempo e a ora, deixou de requerer”. Essa conclusão se mostra correta, vez que não é possível a produção de prova de ofício para que seja sanada inércia da parte em produzir determinada prova, na qual incide a preclusão.[3]

Todavia, os fundamentos utilizados para se chegar a tal conclusão é que se mostram equivocados.

No mesmo parágrafo do trecho acima colacionado, de modo até contraditório, a Segunda Turma consignou que o CPC/73[4]confere ao juiz poder de não se conformar com a verdade apresentada pelas partes, se entender que aquela não se mostra suficiente para se aproximar o máximo da verdade substancial. Porém, o juízo de conveniência quanto as diligências necessárias, justamente por ser ele o destinatário da prova, é exclusivo do julgador”.

O problema de tal fundamento é o de que a prova não possui a função de busca da verdade pelo julgador. Se a filosofia e a epistemologia não conseguiram responder precisamente o que seria a verdade, como essa demarcação se daria em um procedimento judicial pelo juiz? Certo que a busca pela verdade serviria como um mecanismo de o julgador proferir uma decisão solipsista e com critérios subjetivos, na medida em que aquela verdade seria apenas por ele criada, visualizada e revelada.[5]

Essa premissa desatualizada – da busca da verdade no processo -, ignora que a função da prova é a reconstrução fática, em contraditório pelas partes, e somente se alcança a verossimilhança.[6]

No mesmo sentido crítico, Pedro Lube Sperando leciona que “a utilização de valores como verdade e justiça para a dogmática jurídica são apenas enunciados performativos, isto é, expressões instrumentalizadas para um fazer, desprovidas de qualquer significado sujeitável a um controle”.[7]

E o autor arremata que, por se tratar o processo de uma instituição de garantia, a jurisdição não pode utilizar de argumentos alheios ao Direito para tolher direitos das partes discutidos no processo. Ou seja, como acertadamente expõe: “tanto a verdade como a justiça não passam de álibis retóricos a dar subterfúgio a uma atuação, não rara, arbitrária do julgador e, portanto, incompatível com o paradigma constitucional”.[8]

Assim, concluímos com Fernanda Borges sobre a impossibilidade de o juiz buscar a verdade no processo:

 

É importante ressaltar que, em uma processualidade democrática, não deve haver busca incessante pela verdade, como se uma realidade preexistente pudesse ser reconstruída, já que a concepção de verdade de cada uma das partes no processo, assim como a concepção do juiz são absolutamente diversas entre os referidos sujeitos processuais, não se podendo concluir, tecnicamente, qual seria a melhor delas, nem tampouco impor-se uma às outras. Principalmente porque se poderia incentivar uma atitude solipsista por parte do juiz, que seria o único detentor da verdade.[9]

 

Desse modo, as razões de decidir do acórdão em análise, de que o juiz seria o responsável pela busca da verdade, não se apresentam constitucionalmente fundamentados e pode gerar decisões arbitrárias e solipsistas.

Para fundamentar a impossibilidade da produção probatória ex officio em favor da parte que não produziu a prova a tempo e modo, poderia se ter utilizado de avançados estudos sobre a imparcialidade[10] e, em especial, da impartialidade[11]. Isso porque, se tratam de garantias fundamentais, além de encontrarem alicerce na constitucionalidade e no devido processo.

Ao destacarmos a impartialidade – aspecto objetivo da imparcialidade -, se entende que “o julgador não pode ser parte nem exercer funções de parte”, logo, “juiz impartial é aquele que é distinto do autor e do réu e que não exerce funções de parte”.[12]

Ou seja, não seria possível ao julgador exercer a função de produção de provas em razão da quebra de imparcialidade e impartialidade, já que estaria a favorecer a parte que deveria ter trazido aquela prova aos autos e não o fez. Desse modo, o julgador assumiria um ônus probatório que não tem, já que a produção probatória é função da parte. Com efeito, a determinação de produção de provas de ofício e de modo supletivo pelo julgador se trata de “indevida externação funcional de pré-julgamento (parcial)”.[13]

Desta feita, “negligenciar a impartialidade é arriscar irremediavelmente a imparcialidade”, vez que impedir que o julgador exerça função de parte é o mesmo que garantir o controle sobre a sua imparcialidade.[14]

Tal fundamento se mostra mais condizente com a contemporânea teoria da prova, vez que constitucionalmente adequado à construção do Estado de Direito Democrático, ao ser balizado pelo devido processo e impeditivo de decisões solipsistas, arbitrárias e autoritárias. A busca da verdade como fundamento ainda se revela um discurso retórico, além de incoerente com a própria conclusão do STJ.

[1]  HELLMAN, Renê Francisco. A prova de ofício, a lealdade processual e o contraditório: análise do REsp 1.693.334 – RJ. Contraditor. Disponível em: https://www.contraditor.com/a-prova-de-oficio-a-lealdade-processual-e-o-contraditorio-analise-do-resp-1-693-334-rj/

[2] Em 11 de maio desse ano, tivemos a oportunidade de palestrar no Congresso Processo e Constituição acerca do mencionado REsp, ocasião em que foram tecidas críticas aos fundamentos do julgado: https://www.youtube.com/watch?v=TPDog1BKrOQ. A fala se inicia em 1:25:04.

[3] Sobre o tema da prova de ofício e da preclusão, conferir: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Contraditor. A prova ex officio e a preclusão: a volta dos que não foram. Disponível em: https://www.contraditor.com/prova-ex-officio-e-preclusao-a-volta-dos-que-nao-foram/.

[4] Importante mencionar que a lide em julgamento tratava de violações a artigos do CPC/73, no entanto, mencionados dispositivos possuem equivalentes no CPC/15, o que mantém as críticas ao julgamento atuais, não obstante a alteração da legislação procedimental civil.

[5] No mesmo sentido: BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A prova no processo civil democrático. Curitiba: Juruá, 2013; MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Poderes instrutórios do juiz no Código de Processo Civil e processualidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2022; PAOLINELLI, Camilla Mattos. O ônus da prova no processo democrático. Coleção estudos da Escola Mineira de Processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, v. 03.

[6] PAOLINELLI, Camilla Mattos. O ônus da prova no processo democrático, cit. 241.

[7] SPERANDIO, Pedro Lube. Contra os poderes instrutórios do juiz: a prova ex officio e a quebra de imparcialidade judicial. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021, p.110.

[8] SPERANDIO, Pedro Lube. Contra os poderes instrutórios do juiz: a prova ex officio e a quebra de imparcialidade judicial, cit., p. 113.

[9] BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A prova no processo civil democrático, cit., p. 72-73.

[10] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018; NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e; PEDRON, Flávio Quinaud. Desconfiando da imparcialidade dos sujeitos processuais: um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing. Salvador: JusPodivm, 2018.

[11] SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade: a divisão funcional de trabalho entre partes e juiz a partir do contraditório. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021.

[12] SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade: a divisão funcional de trabalho entre partes e juiz a partir do contraditório, cit., 133-134.

[13] SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade: a divisão funcional de trabalho entre partes e juiz a partir do contraditório, cit., 219.

[14] SPERANDIO, Pedro Lube. Contra os poderes instrutórios do juiz: a prova ex officio e a quebra de imparcialidade judicial, cit., p.149-151.

Autor

  • Mestre e especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Pós-graduando em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral. Membro da ABDPRO, do INPEJ e da ACADEPRO. Advogado e professor

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