PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO

UM NOVO NORTE?

PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO

A sociedade é constituída pela pluralidade e por experiências diversas, possibilitando sua riqueza. Ou seja, afasta-se da ideia de homogeneidades ou vivências únicas, denominadas pelas diferenças. Lado outro, neste papel de construção dos marcadores sociais que essas diferenças (gênero, raça, sexualidade, física, classe social, geográfica etc.) são transformadas em estereótipos e “assim produzem preconceito, discriminação e violência”[1].

E, a partir disso, o tecido social é formado, designando os lugares e os papéis sociais. Neste aspecto é importante pontuar que não são elementos dados e, sim, de um processo complexo, mas que, no caso do Brasil, é fruto de uma história constituída por exploração e desigualdades da mão de obra escravagista e indígena.

No azeitamento dessas disparidades as instituições são constituídas. E, aqui, o Poder Judiciário possui importante atribuição de dizer o direito no caso levado à sua apreciação. Ocorre que isso não se dá no mundo abstrato, mas na realidade, regulando aspectos da vida social.

No papel de interpretação e compreensão, Lélia Gonzalez referindo-se aos efeitos violentos do sexismo e, em particular, da mulher negra na nossa sociedade, destaca que “o lugar que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno sobre o racismo e o sexismo”[2]. Neste sentido, a hermenêutica já nos demonstrou que a compreensão deve ser entendida como “uma condição da existência humana, porque as pessoas existem dentro de um contexto histórico”[3].

A partir dessas considerações, no dia 19 de outubro foi lançado o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[4], resultado de estudos realizados pelo grupo de trabalho instituído através da Portaria nº 27 de fevereiro de 2021[5]. A finalidade do protocolo consiste em orientar a magistratura brasileira no julgamento de lides sob a lente de gênero, almejando avanços na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade, ou seja, “uma ferramenta analítica que pretende enxergar e explicar o conjunto de formulações sociais, propriedades e características atribuídas a determinadas pessoas em razão do sexo”[6].

A estrutura do protocolo é estabelecida em três momentos. Inicialmente, são apresentados conceitos básicos para que se possa ter uma melhor compreensão dos temas abordados, tais como: identidade de gênero, questões centrais sobre a desigualdade de gênero e também a reverberação do direito neste âmbito.

Na segunda parte oferece-se um guia para magistradas e magistrados de forma didática e com estabelecimento de alguns questionamentos que podem norteá-los em fases específicas da demanda. Como uma forma de exemplificação, na fase processual, são apresentadas algumas indagações que merecem atenção pela (o) magistrada (o): a instrução processual está reproduzindo violências de gênero institucionais? Perguntas podem estar causando algum tipo de re-vitimização? (ex.: perguntas que exponham a intimidade da vítima, perguntas que revolvam a situações traumáticas)[7].

Ademais, apresenta todo um arcabouço internacional de instrumentos gerais e específicos que devem ser observados e consultados para aplicação no caso concreto, ressaltando a perspectiva interseccional, por exemplo: Carta das Nações Unidas; Declaração Universal dos Direitos Humanos; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; Convenção sobre os Direitos da Criança; Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias; Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado; Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças; Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela); Regras de Pequim: regras mínimas das Nações Unidas para a administração da justiça de menores; Princípios de Yogyakarta; Princípios de Conduta Judicial de Bangalore e Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015).

Também os instrumentos específicos referentes ao gênero, como a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW e seu Protocolo Facultativo; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres – Convenção de Belém do Pará e diversas Recomendações. Além de casos dos sistemas regional e internacional de proteção de direitos: Caso Maria da Penha vs. Brasil, Caso Simone André Diniz vs. Brasil, Caso Alyne Pimentel dentre outros. Logo, buscando uma aproximação da dimensão doméstica ao âmbito internacional.

E, no terceiro momento do documento, são trabalhados assuntos que transversalizam com os diversos ramos do Poder Judiciário (assédio, audiência de custódia e prisões). Por fim, são consideradas algumas peculiaridades atinentes a cada competência jurisdicional: Federal, Estadual, Trabalhista, Eleitoral e Militar.

O protocolo, de forma explícita, destaca que o Poder Judiciário passa a reconhecer as influências que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que estão submetidas as mulheres ao longo da história exercem na produção e aplicação do direito, colocando-se como integrante desta estrutura. Neste sentido, adota a necessidade de criar uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecer direitos de todas as mulheres e meninas[8].

Dessa forma, espera-se que o documento possa ser um sinalizador de avanços para estabelecer ao menos fissuras em uma sociedade sistemicamente patriarcal, na possibilidade de construção de caminhos para “um novo tipo de conhecimento, cujo objeto é a sociedade em sua inteireza, com tudo que ela contém: contradições, desigualdades, iniquidades”[9].

[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. Editora Companhia das Letras, 2019, p. 174.

[2] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções, diálogos. (org.) Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020, p. 76.

[3] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019, p. 142.

[4] Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021, 132 p. Disponível em: http://www.cnj.jus.br. Acesso em: 29 out. 2021.

[5] Portaria Nº 27 de 02/02/2021. Institui Grupo de Trabalho para colaborar com a implementação das Políticas Nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ nº 254/2020 e nº 255/2020, relativas, respectivamente, ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário. DJe/CNJ nº 27/2021, de 3/02/2021, p. 2-3. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3714. Acesso em: 02 de nov. 2021.

[6] Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021, p 14-17. Disponível em: http://www.cnj.jus.br. Acesso em: 29 out. 2021.

[7]Ibidem, p. 55.

[8] Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021, p. 9.  Disponível em: http://www.cnj.jus.br. Acesso em: 29 out. 2021

[9] SAFFIOTI, Heleieth IB. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu, p. 115-136, 2001. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332001000100007. Acessado em: 02 nov. 2021.

Autor

  • Mestranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), vinculada à linha de pesquisa Direitos Humanos e Políticas Públicas. Especialista em Direito Constitucional.

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