PRINCÍPIO NÃO É NORMA (18ª PARTE)

Ao Dr. Renan Nascimento Lira

 

 

1. Em artigo anterior, viu-se que: a) a relação das regras jurídicas entre si tem um caráter sintático, imanente e hierárquico-fundacional [R → R]; b) a relação entre o princípio de direito e as regras jurídicas que tendem a concretizá-lo tem um caráter semântico, transcendente e simpático-insinuativo [P ~ R1, R2, R3, R4…]; c) os princípios de direito não se inter-relacionam, sendo cada um deles umper se stante, um «por si só», um «em si mesmo», um elemento isolado, um independente [P Ø P] (Princípio não é norma – 14ª parte. <https://cutt.ly/9Cficvx>). Descobrir esse caráter inter-relacional é imprescindível para se descobrir se existem e se é possível resolverantinomias nas relações regra-regra, princípio-regra e princípio-princípio. Em geral, os teóricos do direito se limitam a estudar as incompatibilidades que ocorrem dentro do plano (a), isto é, dentro do ordenamento jurídico.

No entanto, é necessário saber se elas existem nos planos (b) e (c) e como se resolvem. Sem que o teórico do direito se curve às especificidades de cada plano, ele tenderá a transplantar inadvertidamente para os planos (b) e (c) os modos de se resolverem as incompatibilidades do plano (a). Em suma, ele tenderá a enxergar um caráter sintático, imanente e hierárquico-fundacional não apenas (a) na relação das regras jurídicas entre si, como também (c) na relação dos princípios de direito entre si e (b) na relação entre os princípios de direito e as regras jurídicas que tendem a concretizá-los. Enxergando-o, ele confundirá os três planos entre si e inserirá a fórceps os princípios de direito no seio do ordenamento jurídico, incorrendo nos dois grandes erros ontológicos da contemporaneidade, que têm provocado na comunidade dos juristas um profundo estado de desorientação metodológica: 1) reduzir o direito ao ordenamento jurídico [= erro do positivismo clássico]; 2) entrever normatividade jurídica nos princípios de direito, tomando o ordenamento jurídico como um sistema normativo composto tanto de regra jurídicas quanto de princípios de direito [= erro do pós-positivismo]. Por isso, é preciso devolver cada relação ao seu plano de origem, entender o caráter íntimo de cada relação, saber se essa relação comporta juízos de incompatibilidade entre os seus polos e descobrir como se resolvem essas eventuais incompatibilidades.

 

2. No plano (a), os critérios para a solução de incompatibilidades entre regras jurídicas se encontram bastante desenvolvidos. Não é objetivo do presente artigo aprofundar-se neles, motivo por que só serão explicados aquien passant. De qualquer forma, visto que no mundo do direito somente as regras jurídicas têm normatividade, as incompatibilidades entre elas são as antinomias propriamente ditas. Afinal, a palavra antinomia vem do gregoἀντί [contradição] + νόμος [norma], significando literalmente «contradição entre normas». Ora, uma antinomia entre duas regras jurídicas pode ser resolvida basicamente a partir do critério cronológico, do critério hierárquico e do critério da especialidade. De acordo com o primeiro critério, a regra jurídica posterior prevalece sobre a regra jurídica anterior [lex posterior derogat priori]; de acordo com o segundo, a regra jurídica superior prevalece sobre a regra jurídica inferior [lex superior derogat inferiori]; de acordo com o terceiro, a regra jurídica especial prevalece sobre a regra jurídica geral [lex specialis derogat generali].

Sem embargo, pode haver conflito entre esses critérios. Grosso modo, quando isso ocorre, o conflito se resolve de uma das seguintes maneiras: o critério hierárquico prevalece sobre o critério cronológico [lex inferior posterior non derogat superiori priori]; o critério da especialidade prevalece sobre o critério cronológico [lex posterior generalis non derogat priori specialis]; a depender das circunstâncias, ora o critério hierárquico prevalece sobre o critério da especialidade [lex inferior specialis non derogat superiori generalis], ora o critério da especialidade prevalece sobre o critério hierárquico [lex superior generalis non derogat inferiori especialis]. Ainda assim, todos esses critérios são sabidamente insuficientes para resolver todos os problemas de incompatibilidade dentro do ordenamento jurídico. É o caso, por exemplo, da antinomia entre duas regras jurídicas contemporâneas, gerais e de mesmo nível hierárquico. Nessa hipótese, normalmente, os intérpretes eliminam a incompatibilidade mediante uma interpretação corretiva, conservando as duas regras jurídicas (para um aprofundamento sobre a antinomia entre regras jurídicas, v., p. ex.: BOBBIO, Norberto. Teoria dell’ordinamento giuridico. Torino, G. Giappichelli, 1960, Cap. 3, 3-7).

 

3. No plano (b), nenhum desses critérios tem qualquer serventia. Isso porque não existe propriamente antinomia entre um princípio de direito (que é um imperativo categórico) e uma regra jurídica (que é um imperativo hipotético-condicional). Pudera: princípio de direito não tem normatividade estritamente jurídica; é uma simples idealidade deôntica, um dever-ser ideal, um «estado ideal de coisas». Não é possível haver incompatibilidade interna entre o normativo e o não normativo, dado que não é possível haver incompatibilidade «interna» entre o que está dentro e o que está fora do ordenamento jurídico. Como já explicado em texto anterior, o princípio de direito «inspira ab extrain-spira desde fora, sopra para dentro do ordenamento jurídico para que ao longo dos seus escalões hierárquicos se constitua uma cadeia de regras jurídicas. Elas tendem a concretizar o princípio de direito e, em consequência, tendem a fazer do sistema de direito positivo uma obra moralmente mais adequada. Porque a natureza da influência do princípio de direito sobre as regras jurídicas que o concretizam é isto: uma inspiratio, um sopro para dentro, um vento que insufla, um impulso original, uma recomendação ética, uma sugestão, um sussurro, uma ‘insinuação moral no coração do ordenamento jurídico’» (Princípio não é norma – 14ª parte. <https://cutt.ly/9Cficvx>).

Daí por que é plenamente vencível o «peso insinuativo», a «influência simpática», a «carga sugestiva», o «fardo recomendatório», a «força nomopneica», a «hipotonia» que o conjunto dos princípios de direito [corpus principiorum iuris] exerce sobre o ordenamento jurídico [ordo regularum iuris]. Em outras palavras, a adequação das regras jurídicas aos princípios de direito se condiciona às limitações e à vontade do legislador, o qual tem a discrição quanto ao momento, ao modo e ao grau de realização dos princípios de direito pelas regras jurídicas. Não sem razão, em uma ocasião ou outra, o ordenamento jurídico consente com imoralidades. O atraso legislativo na densificação de um princípio de direito é uma moralização postergada, pois, protelando-se a concretização de um princípio jurídico, protela-se por via reflexa a concretização do princípio moral subjacente. Entretanto, trata-se de uma omissão legislativa tolerável e juridicamente inconsequente, nunca de uma antinomia.

 

4. Se uma sequência de regras legais expressas houver sido editada sob a inspiração de um princípio implícito [«A deve ser»], mas uma revolução moral levar o legislador a enunciar um contraprincípio explícito [«A não deve ser»], as regras pré-revolucionárias permanecerão válidas. Tecnicamente, não haverá qualquer antinomia entre as regras legais preexistentes e o novo princípio que se explicitou na Constituição ou na lei. Todavia, elas serão doravante interpretadas à luz do contraprincípio explícito e, desse modo, terão fatalmente retraídos os seus respectivos âmbitos de aplicação e as suas eficácias sociais. Não obstante, as regras legais editadas sob a inspiração do princípio implícito tenderão a ser formalmente revogadas, uma a uma, por regras legais editadas sob a inspiração do contraprincípio explícito.Passo dopo passo, a «influência simpática», o «peso insinuativo», a «carga sugestiva», a «hipotonia», o «fardo recomendatório», a «força nomopneica» do contraprincípio explícito se encarregará de pressionar moralmente o legislador e de fazer crescer naturalmente no ordenamento jurídico uma nova cadeia de regras em substituição à velha cadeia.

Apesar disso, o ritmo, a velocidade, a maneira e a intensidade dessa substituição obedecerão à exclusiva discrição legislativa. Cabe privativamente ao legislador selecionar os princípios morais que farão parte do direito e, uma vez convertidos em princípios jurídicos, decidir sobre a realização deles. O legislador se autovincula nomopneicamente aos princípios morais que introduziu no direito, mas não se obriga coercitivamente a densificá-los mediante regras. Enfim, os princípios impelem mas não compelem o legislador, incitam-no mas não o arrastam. Daí por que, se tiver de editar regras tendo diante de si os princípios X e Y, o legislador terá a discrição de: só concretizar X; só concretizar Y; não concretizar nem X nem Y; fazer uma harmonização entre X e Y, dando prevalência a X; fazer uma harmonização entre X e Y, dando prevalência a Y. Ao juiz jamais se permitirá qualquer ingerência sobre essas escolhas político-legislativas (obs.: a concordância prática que porventura se faça entre princípios não obedece necessariamente à proporcionalidade, a qual se presta a limitar a interferência estatal no âmbito de proteção dos direitos fundamentais).

 

5. No plano (c), entre princípios não pode haver antinomia, nem qualquer outro tipo de incompatibilidade. Se vigem ao mesmo tempo um dispositivo que enuncia um princípio [«A deve ser»] e um dispositivo que enuncia um contraprincípio [«A não deve ser»], então um deles é a enunciação de um algo e o outro é a enunciação de um nada. Um princípioexistee o outro não existe, pois um deles é outrossim um princípio moral e o outro não é (obs. 1: se o legislador revoga dispositivo sobre princípio, que já se tenha desmoralizado no tempo, por dispositivo sobre contraprincípio, não há propriamente revogação: o princípio se apagou espontaneamente por progressiva perda de substrato material moral; logo, o contraprincípio entrou no direito «sem resistência», de modo originário, ocupando o vácuo deixado pelo princípio desaparecido) (obs. 2: se se verifica desacordo moral entre o princípio e o contraprincípio, por precaução prevalece o princípio: in dubio non agere) (obs. 3: na autêntica antinomia, têm existência tanto a regra quanto a contrarregra, embora uma delas exista invalidamente; porém, validade e invalidade não são atributos de princípio, nem eficácia e ineficácia) (obs. 4: não prevalece necessariamente o princípio enunciado na Constituição sobre o contraprincípio enunciado na lei, porquanto não há hierarquia entre um e outro, não se podendo falar em «princípio constitucional», nem em «princípio legal»; a prevalência é só da regra enunciada na Constituição, que é regra constitucional, sobre a regra enunciada na lei, que é regra legal) (obs. 5: não importa se o conflito aparente se dá entre dois princípios explícitos, entre dois princípios implícitos ou entre um princípio explícito e um princípio implícito).

Se o legislador tenta substituir princípio jurídico moral por «contraprincípio jurídico imoral», a substituição não se opera, uma vez que não pode ingressar no direito princípio de juridicidade que não seja igualmente princípio de moralidade. Lembre-se: princípio de direito [PD] é princípio de moral [PM] que recebeu acolhida legislativa implícita ou explícita [AL] (em termos simbólicos: PD = PM x AL). A expressão «(contra)princípio jurídico imoral» é, portanto, uma contradictio in adjecto (para um aprofundamento do tema, v. nosso Princípio não é norma – 17ª parte. <https://cutt.ly/WNS7qUs>).

Autor

  • Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

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