- Introdução
A Resolução CNJ n.º 345, de 9 de outubro de 2020[1], autorizou a instituição, em todos os tribunais dos País, do chamado “Juízo 100% Digital”.
Nesse breve artigo, analisarei as principais vantagens e desvantagens da adoção dessa sistemática, especialmente em relação às audiências, que são necessariamente realizadas por videoconferência, conforme art. 5º da resolução suprarreferida.
- Sob o ponto de vista legal, a adoção do “Juízo 100% digital” é possível há vários anos
A autorização para informatização do processo judicial como um todo, inclusive o trabalhista, não é algo recente. A Lei n.º 11.419/2006, em seu artigo 1º, já estabelecia que “O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei”. No mesmo sentido, a alteração realizada no art 154, §2º, do CPC/73. Embora desses dispositivos já fosse possível extrair a permissão para a realização de audiências por videoconferência, o art. 236, § 3º do CPC/2015 é ainda mais claro nesse sentido: “Admite-se a prática de atos processuais por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real”.
Portanto, a Resolução CNJ n.º 345, de 9 de outubro de 2020 não inovou no ordenamento jurídico, mas apenas regulamentou a adoção do “Juízo 100% Digital” pelos tribunais do país.
- A Pandemia da Covid-19 e as audiências por videoconferência
Na esteira da Lei n.º 11.419/2006, a informatização do processo judicial avançou a passos largos nos últimos anos. Com a expressa autorização legal, alguns TRT’s criaram sistemas informatizados próprios e, com o intuito de uniformizar a tramitação eletrônica de processos em todo o país, o CSJT publicou a Resolução n.º 136/2014[2], adotando o Pje-JT como a plataforma para a tramitação do processo eletrônico no âmbito da Justiça do Trabalho.
No entanto, a par da autorização legal para que também as audiências fossem realizadas por videoconferência, a realização de tais atos processuais permaneceu no modo “tradicional”, ou seja, com a presença de juízes, membros do MPT, servidores, partes, advogados e testemunhas na sala de audiências “física”, com a posterior juntada da ata de audiência nos autos eletrônicos.
Parece que faz muito tempo, mas até o início de 2020 a oitiva de partes ou testemunhas por videoconferência ocorria em situações pontuais, em geral relacionadas à efetiva impossibilidade de comparecimento de alguém que deveria depor à sede do juízo. Todavia, o cenário mudou radicalmente com a Pandemia da Covid-19, oportunidade em que a necessidade de distanciamento social determinou a suspensão das atividades presenciais em todos os ramos do Poder Judiciário, conforme art. 3º da Resolução CNJ n.º 313, de 19 de março de 2020[3]. A partir de então, as audiências telepresenciais, que eram a exceção, se tornaram a regra, conforme Resolução CNJ n.º 314, de 20 de abril de 2020[4] e Ato Conjunto CSJT.GP.GVP.CGJT nº 6, de 05 de maio de 2020[5].
Em mais de um ano de realização de audiências por videoconferência, já sabemos seus aspectos positivos, que são muitos. Por outro lado, as dificuldades também existem, conforme será abordado nos próximos tópicos.
- Principais vantagens das audiências por videoconferência
4.1 A potencial economia de verbas públicas
Desde que a tramitação eletrônica dos autos avançou, notadamente com o PJe, o atendimento a partes, e especialmente a advogados nas Varas do Trabalho e tribunais diminuiu consideravelmente. Afinal, não há mais necessidade da tradicional carga dos autos, pois tanto a consulta quanto o peticionamento são efetuados de forma remota. Assim, atualmente são as audiências presenciais que geram a maior movimentação de público externo nos prédios do Poder Judiciário.
Nesse contexto, a permanência das audiências por videoconferência tende a diminuir os custos com a manutenção em geral daqueles prédios e, no médio e longo prazo, pode até mesmo tornar possível que as unidades jurisdicionais funcionem em espaços físicos menores (vale ressaltar que várias VT’s do país funcionam em imóveis alugados).
Ademais, magistrados designados, por necessidade de serviço, para atuarem fora de sua jurisdição originários não precisam se deslocar, suprimindo assim o pagamento de diárias.
Em síntese, as audiências à distância tendem efetivamente a gerar economia ao erário. Vale ressaltar, porém, que segundo o art. 5º, parágrafo único, da já citada Resolução CNJ n.º 345, “As partes poderão requerer ao juízo a participação na audiência por videoconferência em sala disponibilizada pelo Poder Judiciário”, o que obviamente gera custos com a aquisição e manutenção de equipamentos, bem como de uma conexão de qualidade à internet.
4.2 Maior comodidade para os participantes do ato
Não há dúvidas de que um dos maiores ganhos proporcionados pelas audiências por videoconferência é a possibilidade de participar do ato a partir de sua residência ou de seu escritório. O estresse dos grandes deslocamentos, especialmente nas médias e grandes cidades, dá lugar ao conforto de estar em casa, muitas vezes de chinelos nos pés.
Ademais, partes e testemunhas empregadas podem participar do seu local de trabalho. Assim, em vez de perder uma manhã/tarde ou até o dia inteiro de trabalho entre o deslocamento e sua oitiva em si, o afastamento do trabalho ocorre apenas durante a realização da audiência.
Acrescente-se ainda para os escritórios de advocacia localizados nos grandes centros as audiências por videoconferência geram grande economia nas ações que tramitam em locais afastados, pois, até então, ou os advogados se deslocavam, gerando custos de transporte e estadia, ou contratavam os advogados “correspondentes”, ou seja, patronos que atuavam exclusivamente na audiência.
- Das principais dificuldades nas audiências por videoconferência
5.1 Das falhas na conexão à internet
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 82,7% dos domicílios brasileiros possuem acesso à internet. O dado mostra que a inclusão digital tem avançado, embora, segundo a mesma pesquisa, na zona rural o percentual seja apenas de 55,6%[6].
A qualidade da conexão, porém, muitas vezes deixa a desejar.
De fato, não são raras as oportunidades em que a parte, testemunha ou advogado encontram dificuldades para acessarem a sala de audiências virtuais. Também relativamente comuns são as oscilações durante a realização do ato, com quedas, “travamentos”, perda da sincronia entre o som e a imagem e etc.
Vale ressaltar que, em regra, tais dificuldades de conexão tendem a aumentar nas cidades mais afastadas dos grandes centros, que normalmente possuem uma estrutura de telecomunicações inferior.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que os provedores de internet não estão obrigados a entregar ao consumidor 100% da velocidade contratada. É isso mesmo. De acordo com a Anatel, tanto na banda larga fixa, quanto na móvel, deve ser garantido 80% da velocidade na taxa de transmissão média (no decorrer do mês) e 40% na taxa de transmissão instantânea (aferida em determinado momento)[7].
5.2 As dificuldades das partes e testemunhas com o aplicativo utilizado
O Ato Conjunto n.º 54 TST/CJST.GP[8] estabeleceu que todos os TRT’s devem adotar exclusivamente a plataforma Zoom para a realização das audiências por videoconferência.
Embora a plataforma em questão possua ferramentas interessantes, com a “sala de espera”, o seu uso não é exatamente intuitivo, principalmente para quem não tem tanta intimidade com a internet.
Advogados, juízes e secretários de audiências acabam por aprender na base da repetição – afinal, são dezenas de audiências por semana. No entanto, para uma parte ou testemunha – às vezes com pouca instrução – que vai utilizar o sistema pela primeira vez, pode não ser simples o procedimento de instalar o aplicativo no seu celular, acessar a sala de audiências pelo link, habilitar o áudio e vídeo e, por fim, ligar o microfone.
Não raro, secretários de audiência ou os próprios advogados precisam, no decorrer da audiência, entrar em contato com partes ou testemunhas na tentativa de auxiliá-los na utilização da plataforma.
5.3 Maior dificuldade em se garantir a incomunicabilidade de partes e testemunhas que ainda irão depor
Estabelecem os arts. 385, § 2º, e 456, do CPC, a incomunicabilidade de partes e testemunhas que ainda irão depor. As audiências por videoconferência trazem maior dificuldade no exercício dessa vedação legal.
Nessa situação, a continuidade do depoimento – obviamente, com o restabelecimento da conexão, em razão da já citada presunção de boa-fé, pode, em tese, causar a contaminação da prova oral; já o indeferimento do prosseguimento pode causar grande prejuízo à parte que pretendia produzir prova com aquele depoimento.
5.4 Audiências telepresenciais são mais demoradas
Uma das grandes consequências das eventuais instabilidades nas conexões e dificuldades das partes e testemunhas com a plataforma utilizada é que as audiências telepresenciais tendem a ser mais demoradas.
Com efeito, esses fatores já demandam uma maior tolerância do juiz quanto a eventuais atrasos de partes e advogados no início da audiência. Iniciado o ato, é de bom alvitre conferir se todas as testemunhas já conseguiram se conectar – afinal, preferencialmente toda a prova oral é produzida na mesma audiência de instrução.
Se uma testemunha não entrou ainda, pede-se ao advogado ou à parte que entre em contato. Constatado que todas as testemunhas entraram, é recomendável testar a comunicação com todas elas antes de direcioná-las para a sala de espera. Se uma testemunha não conseguiu habilitar o áudio/microfone, alguém (parte, advogado ou secretário de audiências) tenta orientá-la. Por fim, tudo resolvido, prossegue-se com o ato.
Mesmo para quem nunca participou de uma audiência por videoconferência, não é difícil imaginar que todo esse “procedimento preparatório” pode demandar vários minutos, sendo que possíveis instabilidades no decorrer do ato podem tomar vários outros.
Portanto, ainda que parte das audiências virtuais transcorra sem maiores intercorrências, o fato é que, em regra, essa modalidade é mais demorada. Assim, na montagem das pautas, é necessário deixar um intervalo maior entre as assentadas, o que, em última análise, diminui a produtividade dos juízos – especificamente em relação às audiências.
5.5 Audiências telepresenciais tendem a ser mais cansativas e estressantes
Como já destacado, as audiências virtuais demandam uma série de procedimentos que não existem nos atos presenciais. Não bastasse isso, em razão da distância física, há uma necessidade de maior atenção por parte dos presentes, a fim de que possam compreender, por exemplo, o que diz uma testemunha ou parte.
Por esse e outros motivos – como as já mencionadas oscilações de conexão à internet, as audiências telepresenciais efetivamente costumam ser mais cansativas e estressantes. O fenômeno já possui até nome: Zoom fatique. A expressão coincidentemente faz menção ao aplicativo utilizado na Justiça do Trabalho, mas se refere às reuniões virtuais em geral, e não apenas às audiências. Sobre o tema, trago um excerto de interessante matéria publicada no sítio da Revista Veja[9]:
[…] Para os estudiosos do comportamento humano, o esgotamento pode ser explicado com facilidade. Durante um diálogo, o cérebro não se concentra apenas nas palavras. Ele recolhe – como se fizesse, digamos, um “zoom” – significados adicionais a partir de dezenas de sugestões verbais, como olhares, movimentos do corpo e até a frequência respiratória. Essas manifestações ajudam a criar uma percepção olística do que está sendo transmitido e do que é esperado em resposta do ouvinte. “Como somos animais sociais, perceber essas pistas no contato direto é natural, requer pouco esforço cognitivo e pode estabelecer as bases para relações mais íntimas como a amizade”, afirma o psicólogo carioca Alberto Filgueiras, do Instituto de Psicologia da Uerj. “Contudo, no caso de uma chamada de vídeo, essa habilidade é parcialmente prejudicada”, explica ele. “Além disso, a imagem da galeria onde todos os participantes da reunião aparecem desafia a visão central do cérebro, forçando-o a decodificar tantos indivíduos simultaneamente que nada é absorvido de maneira significativa, o que gera tensão – e estress. […]”
A ainda é cedo para projeções, mas advogados, e notadamente juízes e secretários de audiência frequentemente atuam em dezenas de audiências por semana, e esse ato processual, por si só, já traz uma certa carga de tensão, já que as partes estão em conflito.
Assim, a mim parece que é preciso ter cuidado com as consequências que essa carga de “estresse adicional” decorrente do meio virtual pode, no médio e longo prazo, trazer para a saúde mental de todos os envolvidos.
6 Conclusão
Não se pode negar que o avanço da tecnologia trouxe ganhos para o processo em geral, inclusive o do trabalho. Difícil imaginar, por exemplo, a descontinuidade do PJE e o retorno para os autos físicos, ou a volta dos diários de justiça exclusivamente impressos. Isso sem falar dos vários sistemas eletrônicos utilizados no dia-a-dia, como Bacenjud, Renajud etc.
No entanto, por tudo o que foi exposto nos tópicos anteriores, entendo que as audiências por videoconferência, embora úteis (e até imprescindíveis) nesse momento de Pandemia da Covid-19, ainda trazem diversos problemas de difícil solução.
Logo, passado esse período, o ideal (mesmo adotado o “juízo 100% digital”) seria que a realização de audiências exclusivamente virtuais ficasse restrita às inaugurais (tentativa de conciliação), ou às unas – nos feitos que não demandem prova oral.
Em sendo necessária a designação de uma audiência de instrução, defendo que partes e testemunhas compareçam à sede da Vara do Trabalho para prestarem seu depoimento, com o auxílio e sob a supervisão de um servidor, no que convencionou-se chamar de audiências “mistas”.
[1]Disponível em “https://atos.cnj.jus.br/files/compilado23351420210310604957b2cb035.pdf”. Acesso em 16/08/2021, às 11h30.
[2]Disponível em http://www.csjt.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=8722e5f0-edb7-4507-9dcf-615403790f7c&groupId=955023. Acesso em 16/08/21, às 11h40.
[3]Disponível em https://atos.cnj.jus.br/files/compilado162516202005065eb2e4ec55d06.pdf. Acesso em 17/08/2021, às 11h40.
[4]Disponível em https://atos.cnj.jus.br/files/original071045202004285ea7d6f57c82e.pdf. Acesso em 17/08/2021, às 11h40.
[5]Disponível em https://bibliotecadigital.trt18.jus.br/bitstream/handle/bdtrt18/17722/Port_2020_00855_comp_Port_2021_01021.pdf?sequence=12&isAllowed=y. Acesso em 18/08/21, às 11h50.
[6]Disponível em https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2021/abril/mais-de-82-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet#:~:text=Em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20aos%20tipos%20de,%2C3%25%2C%20em%202018.. Acesso em 19/8/2021, às 9h30.
[7]Disponível em https://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalPaginaEspecialPesquisa.do?acao&tipoConteudoHtml=1&codNoticia=35544. Acesso em 19/8/21, às 9h40.
[8]Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/180234/2020_atc0054_tst_csjt.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 19/8/21, às 10h.
[9]Disponível em https://veja.abril.com.br/tecnologia/zoom-fatigue-o-esgotamento-provocado-pelo-excesso-de-videoconferencias/. Acesso em 24/08/2021, às 14h20.
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